quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A tese do Lula neoliberal*

 

A partir da situação de Lula livre, inocente e elegível, seus opositores viram-se na contingência de construir novos discursos deslegitimadores da pessoa e da expressividade política do ex-presidente, já que o mero bordão “Lula está preso, babaca” perdeu toda a sua força. Por conta disso, tornou-se imperiosa a criação de uma nova base de sustentação discursiva para a negativação da figura do ex-presidente, como forma de manter acesa a chama da retórica política de seus detratores, como modo de estimular aliados e eleitores.

Um desses novos discursos é o que denomino de “tese do Lula neoliberal”. Trata-se de uma assertiva que bate de frente com a rotulação, por décadas a fio, de “Lula comunista”, o que se manteve, inclusive, durante seus dois mandatos presidenciais. Não se pode acusar seus detratores de não terem imaginação. “Lula comunista não cola mais? Então, a partir de agora, ele é neoliberalista”. Aliás, parcela substancial desses críticos de ocasião defendiam, no passado, políticas econômicas neoliberais para a salvação do país. Ao que parece, com Lula não pode. Definitivamente, são pessoas ousadas, sem temor algum de exposição ao ridículo. Entretanto, deixemos de lado tais contradições lógico-discursivas e passemos ao exame da “acusação”. Afinal, em algum momento Lula aderiu ao neoliberalismo, antes, durante ou depois de ter sido presidente?

De pronto, cabe destacar que, apesar da propaganda de décadas, Lula nunca foi comunista, inclinando-se para a social-democracia, para o centro do espectro político. Seus oito anos de governos espantam qualquer dúvida acerca disso. Contudo, se é para definir sua coloração a partir desses limites toscos que utilizam para desqualificá-lo, ele está mais para comunista do que para neoliberal; muito mais. Sua preocupação social é reconhecida mundialmente.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Polarização, falsa polarização e terceira via*

Este artigo, assim como os dois anteriores e o próximo que será publicado no blog, constitui mera divisão do longo texto publicado no dia 10 de agosto de 2021, intitulado “Lula: efeitos políticos da inocência”.

Tornou-se moda rejeitar a polarização Bolsonaro x Lula. Trata-se da velha e falaciosa escandalização do banal ou criação de factoide. A palavra “polarização”, em seu sentido literal, envolve a noção de coisas situadas em polos opostos.

Contudo, quando transportada para o campo semântico da crítica política nem sempre representa exatamente um cenário de disputa entre os extremos do espectro político. Imagine-se uma hipotética disputa eleitoral que envolva somente dois candidatos, um representando o centro moderado, aglutinando forças políticas para a obtenção de vitória eleitoral sobre um tirano que se encontra no poder, e o outro candidato sendo o próprio tirano e seus asseclas tentando a recondução. Um cenário desse tipo, caracterizado pela divisão do eleitorado em dois posicionamentos distintos e antagônicos, é, por definição, polarizada, embora o candidato moderado não represente o extremo político oposto ao do tirano.

Nesse sentido, que não é o que a imprensa majoritária sustenta, sem dúvida alguma, uma disputa eleitoral entre Lula e Bolsonaro seria polarizada. A polarização, porém, não se daria entre os extremos políticos da direita e da esquerda. Seria uma luta que envolveria, de um lado do ringue, a esperança no incremento de felicidade coletiva, conhecimento, educação, ciência e prosperidade; e, do outro, a certeza da prevalência e ampliação do que já se vê: tristeza social, ignorância orgulhosa, obscurantismo, mal-estar coletivo e aumento da miséria. Para resumir, seria uma polarização capaz de definir o sucesso da civilização ou sua derrocada, a barbárie.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

A tentativa de retorno ao esgoto jornalístico*

A vitória eleitoral do PT, em 2002, deu início a um processo de deterioração do jornalismo, marcado pela escandalização de um lado só, contínuas distorções da realidade, com manipulação da verdade, construção de factoides e assassinato de reputações. Toda ação positiva do governo era ocultado, com progressiva disseminação da falsa ideia de que todos os problemas do Brasil possuíam um só nome (Lula) e uma só coloração (o vermelho do PT). Tal posicionamento, principalmente da imprensa majoritária, embora não propagandeado aos quatro ventos, tampouco era negado, tendo sido publicamente assumido em algumas oportunidades, como a contida na fala da então presidente da Associação Nacional de Jornais, Judite Brito, da Folha de São Paulo, que, em entrevista ao jornal O Globo, declarou que, ante a fragilização da oposição no Brasil, cabia aos meios de comunicação ocupar a posição oposicionista no país.

O jornalista Luis Nassif, em sua séria de reportagens “O caso de Veja”, analisou com profundidade esse fenômeno de anti-jornalismo, para tanto utilizando a revista Veja como exemplo, a mesma publicação que o saudoso Paulo Henrique Amorim apelidou, jocosamente, de “detrito sólido de maré baixa”. Claro que não foi somente essa revista que resolveu chafurdar nesse lodaçal, servindo somente de modelo, pois se tratava do maior semanário do país e possuía um passado com boa reputação. Disse Nassif2:

Gradativamente, o maior semanário brasileiro foi se transformando em um pasquim sem compromisso com o jornalismo, recorrendo a ataques desqualificadores contra quem atravessasse seu caminho, envolvendo-se em guerras comerciais e aceitando que suas páginas e sites abrigassem matérias e colunas do mais puro esgoto jornalístico.

No bojo da séria, cuja leitura se recomenda, Nassif aponta os vícios do antijornalismo, a motivação de seu surgimento e aponta caminhos a seguir.

domingo, 22 de agosto de 2021

O aumento na inquietação de militares*

 

Este artigo, e os próximos três que serão publicados no blog, constituem mera divisão por tópicos do longo texto publicado no dia 10 de agosto de 2021, intitulado “Lula: efeitos políticos da inocência”, cujo link é fornecido no final.

A liberdade e posterior inocência judicial de Lula, com consequente possibilidade de sua candidatura em 2022, produziu um visível e injustificável aumento de inquietação nas forças armadas. A insatisfação dos militares com uma possível vitória de Lula é injustificável porque o petista foi, na história recente, o presidente que mais se empenhou pela valorização das forças armadas. A jornalista Eliane Cantanhêde, do jornal Estado de São Paulo, da qual se pode dizer tudo, menos que seja esquerdista ou simpatizante de Lula, assim se manifestou recentemente sobre o assunto1:

Uma das dúvidas que mais incomodam o ex-presidente e pré-candidato de 2022 Luiz Inácio Lula da Silva é por que, afinal, os militares têm tanto ódio dele e do PT. Uma dúvida justa, justíssima, porque os dois mandatos de Lula foram de paz na área militar, com o Ministério da Defesa forte, boas relações entre presidente e comandantes militares e capacitação e reaparelhamento das Forças Armadas. É inegável, é fato.

Além de injustificáveis, tais manifestações possuem, via de regra, um elevado teor antidemocrático, sendo oriundos principalmente de militares reformados. Embora analistas percebam um quadro de maior tranquilidade dentre os militares ativos, essa percepção é bastante insegura, dado que o regramento militar os impede peremptoriamente de publicar manifestação sobre assuntos de natureza político-partidária. Desse modo, o grau de tranquilidade ou intranquilidade dentre os ativos é um elemento incerto, pois suas manifestações não se tornam públicas. É claro que declarações públicas de alguns ex-militares nos transmitem uma certa tranquilidade quanto ao clima entre os militares ativos. É o caso do general Santos Cruz, que integrou o governo no início, mas após deixá-lo tornou-se um crítico contumaz do ex-chefe.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Afeganistão: os talibãs e sua política terrivelmente religiosa

 

    Vinte anos depois da invasão americana, o Afeganistão volta a ser dominado politica e militarmente pelos talibãs. Repetem-se as cenas de desespero vistas quando do fracasso americano no Vietnã, décadas atrás, em Saigon.

    Ontem (15/08/2021), pessoas em desespero tentavam fugir de Cabul por qualquer meio que fosse. Aviões com capacidade inferior a duzentos passageiros alçaram voo com mais de oitocentas pessoas a bordo. Ao menos três foram vistas caindo de um avião em pleno voo; não se sabe se foram jogadas ou se a queda decorreu de terem se agarrado ao trem de pouso. A aflição dessas pessoas, sua agonia e sofreguidão pela fuga é evidente e quem quer que se considere humano deve lamentar a existência de um poder estatal tão pernicioso que conduz pessoas a um desespero de tal magnitude que o vislumbre da morte pareça mais palatável do que a simples submissão em vida.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Lula: efeitos políticos da inocência

Esta é a segunda parte do artigo sobre a libertação de Lula e os efeitos políticos daí decorrentes. O primeiro pode ser acessado aqui.

Lula está livre, leve e solto, em condições de disputar as eleições de 2022. Quais os impactos políticos dessa sua nova condição? Para os opositores, certamente tristeza e frustração, pois, sem dúvida, para eles uma eleição com Lula condenado, preso e, portanto, inelegível, era mais acalentadora. Afinal, trata-se de quem já é uma das maiores figuras políticas da história do país e indiscutivelmente a maior ainda em atuação. Qual aspirante à presidência desejaria enfrentar um oponente desse naipe? Não que seja imbatível; não é. Porém, sua força política junto à população, implicando imensa possibilidade de influência no resultado eleitoral, inclusive a própria vitória, caso candidato, é inegável. Isso amedronta não somente os demais candidatos, mas também os tubarões da economia, desejosos de manter a economia sob o regime neoliberal de Paulo Guedes, bem como os histéricos que se assustam com a possibilidade de encontrarem comunistas embaixo de suas camas ou dentro de seus armários.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Lula e sua jornada: prisão, liberdade e inocência

Num cenário político que se move acelerada e freneticamente, a partir de comoções diárias, costumeiramente negativas, as situações que abordarei serão consideradas por alguns como pertencentes a um passado remoto. Contudo, entendo não ser possível a um contador de histórias que inicie sua narrativa pelo meio ou pelo final da tragédia sem prejuízo da perfeita compreensão da aventura ou desventura que deseja passar adiante. Por isso, mesmo correndo o risco de ser cansativo, começarei pelo começo.

Essa história é sobre Lula e sua jornada: prisão, liberdade e inocência. Aqui, abordarei os fatos em si da prisão, liberdade e posterior retorno à condição de inocência. Em outro a ser publicado, já em construção, pretendo comentar os efeitos políticos dessa nova condição de inocência. A divisão se justifica, em grande medida, por minha assumida prolixidade, que disfarço sob o nome de incapacidade para escrever textos curtos sobre assuntos complexos, mas também pela extensão do assunto. Há muito a ser dito.

O pano de fundo dessa história é um cenário político no qual os atores com os papéis mais relevantes e essenciais no drama possuem plena ciência da extensão de seus poderes e deveres, de modo que bem sabem que poderiam livrar o país da tragédia ainda em andamento, mas, ou não se importam ou se omitem por covardia ou ambição. Vamos a ela, a história, ponto a ponto.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Conceitos-chave para a interpretação da realidade -- Parte I

Nos capítulos anteriores1, estipulou-se um marco interpretativo para as noções ontológicas autorais pertinentes aos conceitos de indivíduo e sociedade. Nesse, se dará prosseguimento à elucidação de significados importantes para a compreensão da cena social e política, sempre em tópicos breves (alguns brevíssimos), esclarecendo apenas o suficiente para permitir a compreensão do plano geral.

Nesse mister de desvelar o significado de palavras e expressões, deve ser considerado que inexiste homogeneidade na conduta, pensamentos, ideias e ações das pessoas que formam as coletividades. As inclinações individuais são as mais diversas possíveis, com gradientes em todas as direções. Adotar, por sua vez, a conduta média do indivíduo como parâmetro para a análise da ação geral é capaz de traduzir-se em equívoco indutivo. Média, sabidamente, conduz a distorções do real, sendo por isso recomendável evitar generalizações. Por exemplo, suponha-se duas únicas pessoas comparecendo simultaneamente a um serviço de saúde pública; a primeira, com 1,50 m e 100 Kg de peso, apresentará um IMC (índice de massa corporal) de 44,44, sendo considerada com quadro de obesidade grave; a segunda, com 2 m de altura e 50 Kg de peso, terá IMC de 12,5, apresentando magreza extrema. Ambos necessitam de cuidados médicos imediatos, embora por motivos opostos. Entretanto, se considerada a média dessas duas pessoas, a altura será de 1,75 m, com peso de 75 Kg, gerando um IMC médio de 24,49, considerado normal pela medicina, de modo que os dois seriam abandonados por um hipotético serviço de saúde que fosse disponibilizado unicamente em consideração à média dos pacientes presentes.