Nos capítulos anteriores1, estipulou-se um marco interpretativo para as noções ontológicas autorais pertinentes aos conceitos de indivíduo e sociedade. Nesse, se dará prosseguimento à elucidação de significados importantes para a compreensão da cena social e política, sempre em tópicos breves (alguns brevíssimos), esclarecendo apenas o suficiente para permitir a compreensão do plano geral.
Nesse mister de desvelar o significado de palavras e expressões, deve ser considerado que inexiste homogeneidade na conduta, pensamentos, ideias e ações das pessoas que formam as coletividades. As inclinações individuais são as mais diversas possíveis, com gradientes em todas as direções. Adotar, por sua vez, a conduta média do indivíduo como parâmetro para a análise da ação geral é capaz de traduzir-se em equívoco indutivo. Média, sabidamente, conduz a distorções do real, sendo por isso recomendável evitar generalizações. Por exemplo, suponha-se duas únicas pessoas comparecendo simultaneamente a um serviço de saúde pública; a primeira, com 1,50 m e 100 Kg de peso, apresentará um IMC (índice de massa corporal) de 44,44, sendo considerada com quadro de obesidade grave; a segunda, com 2 m de altura e 50 Kg de peso, terá IMC de 12,5, apresentando magreza extrema. Ambos necessitam de cuidados médicos imediatos, embora por motivos opostos. Entretanto, se considerada a média dessas duas pessoas, a altura será de 1,75 m, com peso de 75 Kg, gerando um IMC médio de 24,49, considerado normal pela medicina, de modo que os dois seriam abandonados por um hipotético serviço de saúde que fosse disponibilizado unicamente em consideração à média dos pacientes presentes.
Idêntica distorção permeia completamente os dados médios obtidos no seio de uma população, sendo de pouca ou nenhuma utilidade para calibrar as políticas públicas. Um exemplo gritante dessa distorção reside na apuração da renda média nacional do brasileiro, apurada em R$ 1.439,00 no ano de 20192, momento em que o salário-mínimo era de R$ 998,00. Ocorre que o Distrito Federal obteve a maior renda média regional, de R$ R$ 2.685,76, enquanto a do Maranhão foi de R$ 635,59, a menor do país, menos da metade da média nacional, equivalendo a cerca de 60% do salário-mínimo. Os maranhenses certamente pouco se importam para o fictício ganho médio nacional, preocupados que estão em conseguir abrigo e alimento com pouco mais de seiscentos reais. Ademais, uma renda média baixa como a maranhense já embute, em si, a certeza de que grande parte da população local não aufere renda alguma. Eis o problema da média: conforta algumas consciências, fornece desculpas aos hipócritas, porém descreve meras ilusões.
Por outro lado, é bastante difícil equacionar o problema da multiplicidade quase infinita de possibilidades comportamentais com a necessidade de analisar a ação coletiva, formada justamente por essa pletora de sujeitos. Por conta disso, adverte-se o leitor que sempre que se fizer referência a algo no modo geral, genérico, estar-se-á pretendendo limitar o alcance da assertiva a um determinado objeto que, superando a média estrita, reflita uma tendência com inclinação majoritária, conforme dados estatísticos. Se, em algum momento, a generalização vier acompanhada da palavra “média”, esse será o entendimento embutido no vocábulo. Contudo, disso não decorrerá contaminação para a totalidade da coisa referida, ficando desde já reconhecida a notável capacidade do indivíduo de se fazer distinto dos demais. A expressão genérica “ser humano”, por exemplo, não pretenderá abrigar toda a humanidade, de Buda a Nero, de Gandhi a Hitler, referindo-se estritamente ao ser humano majoritário, ainda que em margem bastante próxima ao que se poderia chamar de “médio”. Por isso, uma assertiva pertinente ao comportamento da classe média deve ser entendida como inscrita no conjunto preponderante de pensamento e ação dos integrantes dessa classe. Seres humanos comuns não costumam ser nem Buda nem Hitler.
Assim definidos os parâmetros e já desenhados os contornos interpretativos de indivíduo e sociedade, passaremos ao significado de meritocracia, elite, classe média, poder, política, democracia, economia, capitalismo, globalização, neoliberalismo e geopolítica.
A perfeita compreensão desses temas, todavia, envolve, como pré-requisito, o conhecimento da noção já por nós estabelecida de senso comum3, pois necessário à promoção da redução fenomenológica (exclusão das camadas de erro) imprescindível à superação das inevitáveis resistências intelectuais à apreensão do real que subjaz às aparências.
Contudo, apenas por cautela, antecipando-me a alguma preguiça sempre presente nesse novo mundo “twiterizado” de 280 caracteres, entendo melhor repisar, ainda que com brevidade, o que foi dito.
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Senso comum
A noção de senso comum ou atitude natural foi sintetizada com maestria pelo saudoso Zygmunt Bauman, em seu livro Em busca da política4, como sendo um “caldo de cultura para opiniões tolas e infundadas que se disfarçam de conhecimento verdadeiro”. Senso comum é contracientífico (negacionista, ou seja, opinião leiga que se opõe à verdade científica estabelecida), acientífico (desprovido de fundamento científico) ou, minimamente, paracientífico (utiliza conhecimento produzido pela ciência, porém sem metodologia específica quanto ao objeto). Em todo caso, trata-se do oposto de ciência, encontrando limites nos sentidos e nas percepções compartilhadas, sempre falhos. A ciência já demonstrou que o cérebro, com o propósito de dar sentido ao mundo, constrói internamente a imensa maioria do que sentimos e percebemos, sem necessária vinculação com a realidade. Diversos testes de ilusão de ótica, como o denominado “Sala de Ames”, comprovam definitivamente isso5. Além disso, como já dito anteriormente6, existem estudos científicos indicando que pelo menos 95% do que fazemos decorre de ação cerebral inconsciente7. Enfim, não é possível fundar o conhecimento meramente em sentidos e percepções, o que invalida a costumeira alegação de que, simplesmente por possuir idade avançada e já ter presenciado muita coisa, a pessoa está apta a descrever a realidade tal como ela é. Não está, de modo nenhum; quase certamente descreverá a realidade tal como o poder quer que seja.
Em oposição, a ciência utiliza racionalmente a inteligência através da metodologia, envolvendo, sempre que possível, pesquisa de profundidade, investigação, levantamento, estudo de caso, estudo de campo e repetição. A ciência verdadeira persegue a realidade ontológica da coisa examinada, sem se preocupar com as limitações dos sentidos, percepções que, como dito, podem ser falsas, ou com o que as pessoas acham que ela seja. Sem metodologia e pesquisa, a crítica não se eleva além do primeiro degrau da escada do conhecimento, que é a especulação ignorante orientada pelo senso comum.
O conceito atual de senso comum acaba por se confundir, indevidamente, com o de ideologia política, embora a ideologia em si tenha surgido com um propósito verdadeiramente científico, qual seja, o de estudo ou ciência das ideias. Vale dizer, a ideologia teria o intuito epistemológico de organizar e fiscalizar as ideias produzidas pela ciência verdadeira, separando o joio do trigo. Com o passar do tempo, porém, embora o significante tenha permanecido o mesmo, seu significado foi degenerado e, pode-se dizer, invertido, sucumbindo a um processo irreversível de deterioração, intencionalmente produzido pelos interesses de dominação. Percebendo o potencial para a manipulação da opinião pública, os ideólogos da dominação deixaram de estudar as ideias e passaram a fabricá-las, direcionando a vontade popular em benefício próprio (individual ou, principalmente, de classe). A ideologia, pois, é a matriz de todo senso comum.
Atualmente, os ideólogos da dominação utilizam uma nova ferramenta para impedir a percepção da realidade: a construção do vazio de pensamento na forma de uma avalanche incessante de informações verdadeiras e falsas. Com isso, buscam tornar impossível a reflexão e avaliação crítica dos conteúdos recebidos. A atividade mental fica restrita à recepção das informações, sem tempo para a mastigação e digestão do que foi recebido, atividades essenciais à formação do conhecimento. O objetivo é a criação de um exército de zumbis sem reflexão, movidos apenas pela necessidade incontrolável de destruir todo e qualquer cérebro ainda vivo e pensante que encontrem pela frente.
Na pirâmide do conhecimento, o senso comum é representado pela base larga, acessível à maioria das pessoas e majoritariamente extraído de experiências sensoriais subjetivas. Por outro lado, o estreitíssimo topo é formado pela ciência verdadeira, cujo conteúdo advém de experiências metodologicamente realizadas, passíveis de repetição e de refutação, com resultados que independem, ao menos em princípio, dos sentidos e das percepções humanas. O senso comum oferece, evidentemente, algum suporte positivo no desenlace da vida diária, como quando estabelece a ordenação das pessoas em filas de atendimento, apesar da inexistência de lei específica que assim determine. Porém, para os efeitos da análise da realidade e da crítica política, não somente deve ser evitado, mas combatido, dados os seus efeitos deletérios sobre a expressividade da vontade coletiva. Entretanto, com boa vontade e persistência, é possível escapar da hegemonia discursiva que modela o senso comum e estimula o vazio de pensamento.
Podemos, agora, passar ao tema principal.
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Meritocracia
Como prometido anteriormente8, retomamos nesse tópico a análise do conceito de meritocracia. No capítulo “Sociedade – parte I – O produto do processo civilizatório”, dissemos ser ridícula a invocação de princípios meritocráticos em favor de herdeiros. Mérito individual, se algum houvesse, seria de cada uma das pessoas que deram origem à riqueza acumulada; os herdeiros são meros beneficiários do acaso, recebendo graciosamente o produto do trabalho (ou do roubo ancestral) realizado – muito antes de nascerem – por um número indefinido de pessoas, sequer necessariamente ascendentes seus.
Nesse ponto, reconheço que, por longo tempo, até pelo menos há uns dez anos, apoiei a ideia da meritocracia. A valoração da pessoa a partir de elementos objetivos de aferição, previamente estipulados e impessoais, como provas e concursos, era uma ideia bastante atraente, além de envaidecedora, pois eu mesmo nasci praticamente na miséria e dela logrei sair. Essa circunstância parecia me conferir um valor especial. Estava enganado, claro; apenas tive sorte.
Uma análise intelectual honesta há de concluir que não há mérito pessoal se, na origem (tempo, local e família), as condições são distintas. Desse modo, meritocracia verdadeira dependeria de um impossível cenário de igualdade absoluta entre os concorrentes. Ainda assim, sempre haveria o acaso de uma distinção genética capaz de conferir um elemento de favorecimento a alguém, como força ou inteligência, o que tampouco é mérito individual. É possível imaginar duas pessoas nascidas no mesmo dia, em situações sociais absolutamente idênticas, todavia, uma chamada Usain Bolt, que nasce com uma genética apropriada para corridas de velocidade, e outra chamada José Lento, que recebe uma herança genética propiciadora de uma musculatura muito menos potente. José Lento treina corridas durante dez horas diárias durante dez anos. Usain Bolt, por sua vez, treina apenas duas horas diárias por dois anos. Quem, dos leitores, apostaria no infatigável José Lento nos cem metros rasos contra Usain Bolt? Não se trata de negar valor a Usain Bolt, mas de entender que sua velocidade não é somente uma questão de dedicação aos treinos, mas de ter tido a sorte de nascer com uma musculatura ideal para receber os benefícios desse treinamento. Meritocracia, nesse caso, dependeria de uma disputa entre Usain Bolt e outra pessoa com idêntica herança genética, hipótese na qual o mais empenhado nos treinos obteria a vitória por merecimento individual. Impossível, claro, definir tal igualdade de origem.
O discurso dominante, todavia, tenta legitimar uma meritocracia fundada em pontos de partida desiguais, o que é absolutamente injusto. Pessoas socialmente privilegiadas, egressas das classes média e alta, dado o capital econômico e cultural de que dispõem, possuem uma probabilidade de atingir o ápice possível do sucesso profissional muito superior ao daquelas oriundas das classes pobre e miserável; isso não representa meritocracia alguma, mas privilégio herdado. Sob tal ótica deturpada, meritocracia deve ser entendida como a sorte de não ter nascido como representante da quinta geração de miseráveis moradores de favelas. Em artigo escrito para o jornal GGN9, tive a oportunidade de apontar a propriedade com que o sociólogo Jessé Souza (2015) tematizou a questão da meritocracia. Segundo ele10, a crença ingênua na ideologia da meritocracia é capaz de transformar “privilégio social” em “talento individual”. Para ele, “vencer na vida” é algo, “na enorme maioria dos casos, já pré-decidido por vantagens acumuladas desde o berço”.
O enfrentamento reflexivo quanto ao equívoco da crença do valor meritocrático, na forma como abordado por Jessé Souza, passa pela compreensão dos conceitos de habitus e de capital social pertinentes à classe social de nascimento, desenvolvidos por Pierre Bourdieu, sociólogo francês.
No livro Sociologia – Questões da atualidade11, a professora e cientista social Cristina Costa pontifica que o sociológico francês Pierre Bourdieu denomina de habitus o modo peculiar de reprodução de pensamento comum aos indivíduos de cada classe social. É através do habitus que ocorre a incorporação, pelos indivíduos de uma determinada classe social, do capital simbólico dessa classe, constituído pelos valores, gostos e ideias compartilhados pelos indivíduos que a integram. A inculcação ideológica do habitus ocorre desde o nascimento, a partir das instituições naturais à classe social herdada, iniciando-se pelos pais e prosseguindo na escola, nas relações de amizade, na religião, no trabalho e nos demais círculos sociais característicos da classe.
A colonização do indivíduo pelo capital simbólico da classe a que pertence implica a produção de formas similares de percepções, sensações, pensamentos, sentimentos e ações pertinentes à estrutura social na qual foram aculturadas. O habitus é, por assim dizer, uma homogeneização de pensamento e ação, uma certa identidade de comportamento.
Por outro lado, capital social, como definido pelo próprio Bourdieu, é “o agregado dos recursos efetivos ou potenciais ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conhecimento ou reconhecimento mútuo”12. Traduzindo: o capital social se materializa através da rede de interrelações pessoais que cercam o indivíduo desde o nascimento, de modo que depende inexoravelmente do acaso. A pessoa nascida na classe rica terá um capital social mais poderoso do que a nascida na classe média e esta, por sua vez, será favorecida frente aos pobres e miseráveis. A compreensão de ambas as noções – habitus e capital social – importa em profunda revaloração do que seja efetivamente meritocracia, entendida como a comparação entre os desempenhos individuais na perseguição das riquezas coletivamente disponibilizadas. No rigor reflexivo, somente duas pessoas oriundas da mesma classe social, com desenvolvimento da infância e da adolescência em situações familiares e sociais bastante similares, poderiam ser comparadas à luz do princípio meritocrático. Fora isso, falar em meritocracia é simples demonstração de indigência ou desonestidade intelectual.
Os poucos exemplos que demonstrariam o cumprimento da promessa meritocrática, representada pelo acesso de egressos das classes desfavorecidas a emprego e renda dignas capazes de efetuar o resgate da pobreza e da miséria, não se trata, nem de acaso, nem de inevitabilidade. Trata-se de sucesso da elite num propósito pensado e planejado, qual seja, a construção de exemplos individuais de superação que sejam, eles próprios, replicadores e defensores da promessa e, portanto, do sistema como um todo. Apresentados como modelos de superação de toda e qualquer dificuldade, são fiadores da validade da promessa e fortalecem a noção de mérito e de esforço individual, imprescindíveis para a manutenção do estabelecido, ou, dito de outro modo, para que as coisas permaneçam como estão, reduzindo a pressão sobre o alcance da percepção de que o verdadeiro valor a ser observado numa civilização é a prevalência do bem comum, da melhoria social enquanto agrupamento. Esses pontos fora da curva cumprem o objetivo de confirmar a ideia de meritocracia, proporcionando a falsa impressão de que o sucesso de um número estatisticamente desprezível de pessoas é possível para todas as demais milhões e milhões de outras que, apesar de todo o esforço pessoal que delas se poderia exigir, não logram alcançar o mesmo resultado. Mais ou menos como se fosse possível a qualquer jogador de futebol, pelo mero talento e esforço pessoal, alcançar o status de Pelé ou de Maradona. A renovação da promessa suaviza as tensões sociais através de uma esperança fadada ao fracasso para a imensa maioria dos humanos. A paz social, por esse meio, é garantida pela esperança de acerto na loteria meritocrática.
Numa discussão com um jovem sobrinho, pobre, que acredita firmemente na meritocracia, argumentei que ele poderia estudar o quanto quisesse que não lograria alcançar o objetivo que tinha em mente: ficar rico. Maldade minha? Descrença na capacidade intelectual do sobrinho? Não, pelo contrário, amo meu sobrinho, quero-lhe bem e o considero bastante inteligente e esperto, não bastassem sua beleza e simpatia (sou suspeito, sei disso). Minha declaração fundou-se exclusivamente nas estatísticas: é mais fácil um raio cair duas vezes na cabeça de uma pessoa pobre do que ela conseguir se erguer do abismo da desigualdade social ainda que se esforce muito.
A ilusão de mérito recompensado é disseminada por aqueles poucos que lograram ser excluídos da miséria, passando a integrar a classe média, e pelos ainda muito menos numerosos que enriqueceram. Tais indivíduos, no fundo, meros sortudos, passam a ter a prepotente sensação de que não devem nada a ninguém ou à comunidade. Supõem que suas conquistas são fruto exclusivo do próprio esforço pessoal e inteligência (ou seja, mérito), sem colaboração alguma da ação coletiva passada e presente da sociedade onde nasceram e vivem. Acreditando nisso, imaginam que, se conseguiram, todos podem conseguir, sem necessidade de interferência do Estado e dos gastos sociais daí decorrentes, com a consequente necessidade de tributação. Inscientes de seu verdadeiro papel e significado, e temerosos de retornar à miséria, esforçam-se por manter o próprio status, colaborando com a propaganda ao vangloriar-se dos discutíveis méritos pessoais, fornecendo o próprio exemplo como significativo do valor do sistema. A colaboração desses afortunados também decorre do que denomino de "opulência frívola", ou seja, a busca frenética pela satisfação dos próprios e autodirecionados desejos, com total alienação e desprezo pelas condições sociais de seu local e de sua época. Na condição de "modelos de superação", tais pessoas auxiliam no esquecimento dos excluídos, taxados de “losers”, pessoas sem as qualidades necessárias para sair da lama e que, por conta disso, devem ficar à míngua, não somente agonizando, mas com o sentimento de culpa pelo próprio fracasso.
Para finalizar, vale transcrever o pensamento de Eduardo Moreira sobre o tema, principalmente por ser, ele próprio, banqueiro e investidor reconhecidamente de sucesso e, portanto, um capitalista. Em trecho de seu livro “O que os donos do poder não querem que você saiba”13, ele compara, dura e cruamente, a propaganda de um sabonete antibacteriano com a da meritocracia, utilizando, para tanto, a hipótese de um ajudante de pedreiro chamado “Seu Zé”, que, trabalhando e estudando arduamente, conseguiu enriquecer:
Costumo comparar o capitalismo com aqueles sabonetes que trazem no rótulo a mensagem de que matam 99% das bactérias e germes. Imagine todas as bactérias defendendo o uso desse sabonete! É exatamente assim que funciona o capitalismo. Incrível!
E a comparação com o sabonete é ótima para mostrar a primeira grande artimanha publicitária desse sistema. O capitalismo usa o 1% das bactérias que sobrevivem como seus garotos-propaganda! Pronto, se elas sobrevivem é porque o sistema dá chances. Assim, ele tira a responsabilidade da desigualdade e concentração de renda do sistema... e a joga para as pessoas.
…
Em primeiro lugar, as pessoas esquecem que existem milhares, talvez milhões de pessoas, que, assim como Seu Zé, também estudaram e trabalharam de maneira correta e incansável, mas simplesmente não chegaram lá. Seu Zé é somente uma excrescência incrivelmente útil ao sistema capitalista. Matematicamente falando, é como se as pessoas estivessem confundindo causa e efeito, imaginando que todos que fazem como Seu Zé têm sucesso, quando a verdade é que os pouquíssimos que tiveram sucesso talvez tenham feito o mesmo que Seu Zé.
Em resumo, a ideia de meritocracia é um engodo criado pelo sistema para a manutenção do poder e da riqueza sob controle estrito, sem alteração significativa de domínio.
No próximo artigo, veremos, sempre brevemente, outros conceitos importantes para a interpretação da realidade, como elite, classe média, poder, política e democracia. Até lá!
Notas:
1 – Esta é a oitava parte da série “Indivíduo, sociedade e a interpretação da realidade”. Os textos possuem um encadeamento lógico, porém permitem a leitura autônoma. Os links para os que desejarem a leitura das sete primeiras partes estão disponibilizados no final do artigo.
2 – Conforme notícia do site Poder 360, disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/renda-domiciliar-per-capita-no-brasil-foi-de-r-1-439-em-2019-segundo-ibge/. Acesso em 15/12/2020.
3 – Como visto no capítulo “Sociedade – parte II – O surgimento da sociedade civil e do Estado de Direito”.
4 – BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política, Zahar, 2000.
5 – Leia o verbete “Sala de Ames” na Wikipedia, em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sala_de_Ames, disponível em 30/07/2021.
6 – Vide o tópico “O indivíduo: egoísmo, altruísmo e sua dívida simbólica”.
7 – Matéria no site do GloboNews sobre o físico e escritor Leonard Mlodinow, disponível em http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2012/10/tudo-em-nosso-mundo-e-construcao-da-nossa-mente-diz-fisico.html, em 23/12/2019.
8 – Vide capítulo “Sociedade – parte I – O produto do processo civilizatório”.
9 – VALLEY, Marcio. “Cinco anos sem a esquerda no governo; o que era ruim, piorou”, em https://jornalggn.com.br/destaque-secundario/cinco-anos-sem-a-esquerda-no-governo-o-que-era-ruim-piorou-por-marcio-valley/amp/
10 – SOUZA, Jessé. A Tolice da Inteligencia Brasil: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015, pág. 197.
11 – COSTA, Cristina, Sociologia – Questões da atualidade, Moderna, 2010.
12 – BOURDIEU, Pierre, “The forms of capital” in: Richardson, J. G. (org.), Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education, Greenwood, 1985.
13 – MOREIRA, Eduardo. O que os donos do poder não querem que você saiba, Civilização Brasileira, 2020.
Links para os sete artigos anteriores: O indivíduo, parte I, O indivíduo, parte II, O indivíduo, parte III, O indivíduo, parte IV, Sociedade, parte I, Sociedade, parte II e Sociedade,parte III.
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