Escrito originalmente em 29/10/2018 e não publicado
Noite
de domingo,
dia 28 de outubro de 2018. Nas
ruas, o
povo comemora e
fogos de artifício espoucam incessantemente. Pessoas
gritam a plenos pulmões palavras de ordem
e de guerra,
numa imensa euforia coletiva, que poderia
ser definida como histérica.
Para
quem
não
soubesse do que se trata, pareceria a comemoração da vitória
brasileira numa copa do mundo ou os
alegres festejos
do réveillon. Porém,
trata-se
de outra coisa.
Desfiles
militares que
se
juntam aos populares em alguns locais, como em Niterói, para
festejar o resultado revelam
que
os festejos possuem uma dimensão diferente. O
povo comemora alegremente a eleição de
um
novo presidente da República, o
ex-capitão do exército brasileiro e atual
deputado
federal Jair
Messias Bolsonaro, eleito
com quase 58 milhões de votos. O
candidato da oposição, Fernando Haddad, obteve 47 milhões de votos
e outros 42 milhões de eleitores decidiram pela abstenção.
Bolsonaro
foi eleito, pois, por 39% dos eleitores (147 milhões) ou 28% da
população brasileira (209 milhões). Ou seja, foi rejeitado ou não
aprovado expressamente por 61% dos eleitores ou 72% da população.
Embora
mais
conhecido por
Jair
Bolsonaro, o seu nome do meio parece representar melhor as esperanças
sebastianistas que
nele
depositam
seus
eleitores e que
explicam a
catarse coletiva iniciada tão logo anunciada
a
sua vitória. Uma
festa de recepção para o novo
Messias.
Festas
comemorativas
catárticas
como
essa, realizadas por pessoas vestidas e pintadas de verde e amarelo,
não
são novidades no cenário político brasileiro. Foi assim com a
eleição de Fernando Collor de Mello e também após o impeachment
de Dilma Roussef. Nesses casos, à euforia seguiu-se a frustração e
o arrependimento pela adesão aos movimentos que conduziram a tais
resultados.
No
sábado, dia 27, um dia antes da eleição, o
momento político indicava uma
possibilidade concreta de virada
em
favor de Haddad,
inclusive por conta da adesão, nos últimos momentos da campanha, de
figuras que
até então haviam silenciado sobre a própria opção, algumas com
imenso apelo popular, como artistas e youtubers, e outras
conhecidas como adversárias
do petismo, como Joaquim Barbosa e Rodrigo Janot. Imaginou-se
que tais adesões fossem capazes
de sensibilizar a parcela mais antenada
e também a mais
conservadora dos eleitores.
E, de
certa forma, foram. Haddad
recebeu uma espetacular votação, que o coloca numa condição
especial para a liderança da oposição no país e também em
situação vantajosa para a próxima eleição. Ao
não ter
entrado em contato com Bolsonaro para parabenizá-lo
pela
vitória,
Haddad de
modo nenhum personificou
a
figura do mau
perdedor. Quem
de nós parabenizaria
um declarado candidato a algoz, alguém
que violentamente e sem razão alguma o ameaça de prisão?
Seja
como for,
os votos recebidos por Haddad não foram suficientes.
Não deu, paciência, são
coisas da democracia. Essa
etapa está superada.
A eleição acabou e um presidente foi escolhido. E
agora?
Num
primeiro momento, imediatamente após a eleição, o resultado deve
ser contestado judicialmente. As evidências de interferência
financeira, no
escândalo do “zapgate”,
são gritantes e, se confirmadas, deveriam
impedir
a posse de Bolsonaro. Ninguém pode ser beneficiado pela própria
torpeza, diz a ordenamento
jurídico.
Não se trata de irresignação com o processo democrático, como
ocorreu com Aécio Neves e os que o seguiram após a eleição de
Dilma Roussef, mas garantir o império da lei e da democracia. A
indevida intromissão do poder financeiro no processo democrático
desequilibra
o valor individual da participação política e
o degenera. Bolsonaro não pode ser considerado um presidente eleito
legitimamente, segundo a normatividade pátria, se não for afastada
essa sombra que pairará sobre o seu governo.
Ajuizada
a ação de impugnação, é legítima a manifestação popular nas
ruas, em defesa de um lado e do outro, para estimular o poder
judiciário a tomar a decisão correta. A democracia assim autoriza.
Todavia,
sacramentado
judicialmente
o
resultado, o que fazer em seguida?
Manter
um estado de beligerância ininterrupto, como fizeram com o PT, é
prejudicial para todos. Ainda que compreensivelmente entristecidos e
frustrados com a decisão, os eleitores de esquerda devem entender
que uma
decisão coletiva
foi
tomada, constituindo um imperativo ético-moral aceitar a voz das
urnas representativa da opção do outro pelo candidato que a ele
pareceu representar os próprios anseios. Vale recordar ter sido
justamente a irresignação com o processo democrático que conduziu
à cisão política no seio da sociedade a partir da eleição de
Dilma Roussef, em 2014. Não se pode criticar o adversário por uma
postura e, posteriormente, adotar a mesma conduta, o
que seria
hipocrisia. Um espírito efetivamente democrata se desvela
na derrota, não na vitória.
Pelo
lado
individual,
é
hora de desarmar
os
espíritos, chegou
o tempo da
distensão emocional.
São
muitos
os
brasileiros saturados
de tanta discórdia e divisão paralisantes da
dinâmica
social.
Há
um evidente prejuízo de toda a sociedade com o acirramento da
política. O
outro deve
deixar
de ser
encarado como um
representante do mal e
passar a ser compreendido como
alguém cuja visão do
bem social é
distinta
e que,
em
vista
disso, busca encaminhamentos
e soluções
políticas
igualmente
distintas.
Nenhuma
pessoa sã é
a favor da corrupção, da miséria ou da criminalidade. Não
se está falando de reatamento de relações rompidas, o
que deve ser avaliado intimamente
por cada um,
ou de concordância com a opinião do outro, mas simplesmente de
aceitação da diferença. O mínimo que se exige de uma pessoa
civilizada é que entenda que o diferente existe e, mesmo que não
seja possível manter alguma
relação
de afinidade,
deve ser suportado sem animosidades, sem brigas.
Além
disso, o
tempo é de exercício
da
sensatez, da
tolerância e do
comedimento. Antes
da eleição, justificava-se plenamente
uma
feroz oposição
à ascensão
política de Bolsonaro ante
a
percepção
de que
ele
trazia em si
um
incrível potencial de autoritarismo político e de intencionalidade
de redução
de conquistas
civilizatórias importantes para a sociedade. O
resultado da eleição, por
si só,
não afasta essa névoa
obscura,
que
persistirá pairando sobre o povo
e sobre as instituições.
Todavia, se
isso era uma possibilidade que se tentava evitar de forma justa,
nunca
significou
inevitabilidade de concretização
do
temor totalitarista.
O
futuro ainda está em aberto, sujeito a alternativas e
passível de submissão a pressões populares e, quem sabe, das
instituições democráticas, principalmente se a imprensa resolver
finalmente cumprir o papel histórico que lhe compete.
Uma
vez eleito, a oposição ao governo Bolsonaro
não
pode ser fundada
em mera irresignação ou histeria,
não
pode ser desfundamentada,
baseada em
meras
possibilidades
e
com o objetivo de “ser contra tudo o que está aí”.
A
oposição popular e também a parlamentar há
de ser propositiva ou
possuir o objetivo
de contrariar
ações
concretas consideradas
prejudiciais ao povo.
Os
candidatos podem
ser muitos,
as
orientações políticas diversas, mas
o país é um só. Independentemente
das preferências eleitorais, todos estão embarcados no
navio Brasil na
condição de passageiros
do mesmo destino. O naufrágio não escolhe eleitores desse
ou daquele candidato,
sacrificando
indistintamente a
todos. O sucesso ou o fracasso do governo atinge
todos.
Desse
modo, o desejo individual
pela
bem-aventurança da administração do governo
eleito
culmina
por se tornar o
desejo
coletivo
de
produção do bem
da
sociedade.
Tendo
isso em vista, a Bolsonaro deve ser concedida, como foi aos
presidentes que o antecederam no período da Nova República, à
exceção de Dilma em seu segundo mandato, uma
trégua pós-eletiva, como
uma espécie de estágio probatório. No
discurso da vitória, ele prometeu
defender a democracia e a Constituição. Que
seja assim, que
a
história revele
ter sido
ele apenas
um falastrão insensato em
sua vida pública enquanto desmuniciado de poderes efetivos.
Tomara
a
alegria que
se vê nas
ruas,
representativa
de uma
esperança que
parece desesperada,
produza
uma energia humana capaz de tocar
o espírito de Bolsonaro e induzir
a uma
nova
etapa
política
no país.
Mas,
que
ninguém se
engane:
a
probabilidade maior é que assim não seja. O passado
de Bolsonaro o condena em função do discurso autoritário, violento
e preconceituoso. Não
é possível, por
mera fé, confiar
na
mudança de caráter de uma
pessoa com mais de 60 anos, que verbalizou coisas absurdas por
décadas, simplesmente
por ter sido eleito. Pelo
contrário, a presunção é de que, tendo chegado ao poder,
implementará as barbaridades que sempre disse que faria. Por
conta disso, mais
do qualquer outro presidente na história do país, ele deve ser
vigiado diuturnamente pelo povo e pelas instituições. Cada passo
seu, cada movimento político, deve ser fiscalizado não somente
quanto ao objetivo mais imediatamente visível, mas também ao
mediato que eventualmente
oculte
intenções maléficas
subjacentes.
E,
se percebido um movimento antidemocrático ou contra os interesses do
povo, por mínimo que seja, as ruas devem ser tomadas.
Boa
sorte ao governo do presidente Bolsonaro, mas
que
não se sinta muito confortável para fazer o que bem entender. Não
viole
os princípios da democracia. A
partir de agora, 47
milhões
de olhares,
no
mínimo,
estarão direcionados
atentamente
para o
seu comportamento.
E
essa conta poderá crescer com as possíveis decepções.
O
povo não
permitirá o avanço do fascismo.
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