terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O bolsonarismo conta com o som do silêncio

 

O “Som do silêncio” é uma lindíssima e eterna canção de Simon and Garfunkel cuja letra cala fundo nas almas sensíveis. Tradução de um pequeno trecho:

E, na luz nua, eu vi, dez mil pessoas, talvez mais.

Pessoas falando sem conversar,

Pessoas ouvindo sem escutar,

Pessoas escrevendo canções cujas vozes nunca compartilham.

Ninguém ousa perturbar o som do silêncio.


Tolos, disse eu, vocês não sabem

O silêncio cresce como um câncer

Ouça minhas palavras para que eu possa te ensinar

Pegue meus braços para que eu possa te alcançar.

Mas minhas palavras caíram como gotas de chuva silenciosas

E ecoaram nas fontes do silêncio.

Sábias palavras dessa dupla genial. Sem dúvida, o silêncio em relação ao mal permite, como um câncer, crescimento e metástase para todo o corpo social. Aliás, segundo consta, essa mesma questão, ou seja, as implicações do "som do silêncio" na pulverização do mal banal, perturbou o pastor Martin Luther King, que, refletindo sobre o assunto, disse que sua preocupação não era com "o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética”, mas com “o silêncio dos bons". Claro, o pastor utilizou de um eufemismo para amenizar as consequências lógicas do pensamento. Alguém que silencia sobre o mal não poderia jamais ser classificado como "bom", de modo que seria impossível logicamente o "silêncio dos bons".

Atualmente, grande parte da população assiste passivamente ou quase o retorno de práticas medievais, como se o espetáculo bárbaro não fosse capaz de nos atingir a todos. Há um silêncio obsequioso sobre o elogio à violência e ao armamento coletivo, apesar de, ou por isso mesmo, saber-se que esse apelo é mais forte justamente entre as pessoas que comungam de pensamentos antidemocráticos e que seriam capazes de iniciar uma carnificina em nome do próprio pensamento político, sem respeito algum à democracia. Além disso, o retorno às pautas de costumes da Idade Média, homofóbicas, racistas, misóginas e totalitárias, sempre sustentadas na religião, no “amor de Cristo”, recebem críticas tímidas, quase como se os autores não quisessem incomodar.

A maioria pensa não ser alvo da intolerância e da violência bolsonarista, essa é a razão da ausência ou moderação na crítica. O que talvez não saiba ou, se sabe, tenha resolvido esconder em algum canto da memória, é que, historicamente, os primeiros alvos do autoritarismo são os classificados como "inimigos"; depois, porém, atinge-se qualquer um que se torne um incômodo, por mínimo que seja. O pai miliciano não gostou do namorado da filha? Sem problema, basta executar o garoto e inventar uma desculpa qualquer, como, p.ex., que era comunista, afinal encontraram com ele um volume d’O Capital, o mesmo que puseram em sua bolsa. A Globo está começando a sentir-se como o namorado da filha do miliciano. Quando se der conta de que perderá a briga, talvez não tenha mais tempo para fugir de seu destino trágico, alguns diriam irônico. Ou, quem sabe, não se importa, reconhecendo a sua condição de escorpião, como na fábula. “Essa é a minha natureza”, pensará enquanto assiste à demolição de suas instalações.

O que ocorreu recentemente nos EUA, a invasão do Capitólio, e agora, no Brasil, com esse deputado bolsonarista tresloucado que resolve ofender a democracia e as instituições, deveria acender todos os alarmes possíveis de que estamos no limiar de um retrocesso inimaginável há poucos anos.

E que ações vemos nos formadores de opinião majoritários, nos detentores dos mandatos populares e na imprensa corporativa? Pelo que se percebe, somente atos de cumplicidade. Alguma crítica insossa às ofensas vinculadas aos costumes (à falsa moral ou moralismo), uma defesa hipócrita da democracia e uma promessa de que “as medidas cabíveis serão tomadas”. No plano da realidade, porém, nada que ponha em risco o projeto neoliberal, justamente o ponto axial do novo barbarismo.

Um congressista de reconhecida natureza violenta e fascista, segundo consta conhecido nos corredores do parlamento como “idiota”, utiliza a democracia para tentar derrubá-la e pululam nos jornalões defesas apaixonadas à liberdade de expressão. Como se um direito, qualquer um, não estivesse submetido a limites estritos. Sem contar que muitos deles fizeram questão de não vincular o tresloucado diretamente a Bolsonaro, apesar da imensa proximidade de ambos.

Desde o início do bolsonarismo, os principais atores da cena pública, a mídia corporativa, os parlamentares e os magistrados, parecem pensar que poderão domar as feras quando assim se fizer necessário. O que vemos, a cada dia, é um movimento de natureza fascista que vai fincando os pés em terreno cada vez mais sólido, mais armado, mais seguro. Esses atores, obviamente, não respeitam o que nos ensina a História. Ninguém jamais foi capaz de reconduzir a besta de volta à jaula depois de solta. Não sem muito sangue, sem muita tragédia.

Coisas assim, como essa insensibilidade social dos poderosos donos da mídia, vão minando aos poucos a confiança do povo, não somente na política, mas na própria noção de humanidade, no otimismo coletivo indispensável ao desenvolvimento e à felicidade comum, à fé na bondade que se pensa inerente aos seres desenvolvidos.

O que resta, então? Talvez a esperança de que o devir seja menos trágico do que se pode supor; que surja uma luz tão intensa que seja capaz de nos recolocar nos trilhos; um farol a nos guiar. Não personificada em uma pessoa, claro. Não se deve colocar a esperança da humanidade em falsos Messias.

Essa bússola de esperança deveria emergir de uma espécie de epifania coletiva surgida no vislumbre do abismo. Pois é quando a trilha na selva parece perdida, quando estamos desorientados, é justamente nesse momento que se deve prestar atenção aos conselhos da natureza, à experiência, pois a sombra que cria o musgo é a mesma que nos indica o norte.

Nesse momento, a experiência histórica da natureza humana está aconselhando a cortar o mal pela raiz, a pôr fim, agora, a essa ainda pequena experiência bolsonarista. Deixem esse tronco enrobustecer mais um pouco e nem mesmo um trator o arrancará do chão.

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