sábado, 17 de setembro de 2022

O bolsonarismo sem Bolsonaro

    

    Obs: Texto publicado primeiramente no jornal GGN, em 16/09/2022

    Há um ano as pesquisas eleitorais vêm, consistentemente, indicando que os eleitores brasileiros não renovarão o mandato do atual presidente. Contudo, é preciso adotar a máxima cautela. A eleição somente se vence após a contagem dos votos. O próprio primeiro mandato de Bolsonaro recomenda essa precaução. Além disso, uma vitória sobre Bolsonaro não significa exatamente vencer o bolsonarismo. Vejamos.

    Nos idos de 2016 e 2017, Bolsonaro surge como candidato a presidente vindo do ponto mais profundo das entranhas do baixo clero do parlamento federal, no qual integrava o chamado "centrão", bancada composta por deputados de diversos partidos distintos, todos sem expressividade política individual na Câmara, mas que juntos, legislatura após legislatura, desde a constituinte de 1988, usam a força conjunta de seus votos, e o consequente potencial de travar os projetos do Executivo, para chantagear todos os presidentes eleitos desde então.

    Parlamentar absolutamente medíocre, com um índice de atuação aquém do desidioso, tendo apenas um par de leis de sua iniciativa aprovadas em 30 anos de atividade parlamentar, mesmo essas sendo desimportantes para o povo, conseguiu a incrível façanha de se apresentar como novidade política e vender-se como capaz de comandar a então 8ª economia do mundo. O ditado da raposa se candidatando a cuidar do galinheiro nunca fez tanto sentido.

    O fato dele fazer isso não surpreende, nem deveria. O que causa espécie é ter obtido sucesso na empreitada. De fato, a maioria dos eleitores comprou esse produto defeituoso e o elegeu presidente. Conseguiu seu intento com o suporte de uma campanha política com um teor de virulência inédito, jamais antes visto em eleições no país. Para tanto, sua equipe de campanha soube, malandramente, aproveitar-se da frouxidão interpretativa de magistrados que não souberam, ou não quiseram, aplicar uma hermenêutica jurídica sistêmica para suprir lacunas de leis eleitorais antiquadas, incapazes de lidar com as brechas legais permissivas da novidade que é a imensa capacidade de capilarização de ideias e pensamentos, honestos ou distorcidos, através das redes sociais. As notícias falsas se disseminaram como rastilhos de pólvora, rápidas, incessantes e explosivamente no final do processo. Menos mal que, na eleição de 2022, até aqui, o judiciário parece ter minimizado o problema.

    Seja como for, aquele que era indiscutivelmente um deputado medíocre, conhecido como falastrão, iracundo, obscurantista, tomado por pensamentos e ideias antidemocráticas e higienistas, atingiu um ponto de relevo político com o qual certamente jamais ele mesmo acreditou que alcançaria.

    O antipetismo explica, em parte, a ascensão do bolsonarismo, mas não totalmente, não em sua porção mais significativa. O antipetismo demonstrou ser menos intenso eleitoralmente do que eu mesmo pensava, o que é comprovado pela gigantesca votação em Haddad em 2018, opção de 45% dos eleitores. Importante frisar isso: após mais de uma década de manchetes escandalosas diárias na imprensa corporativa, o que seria capaz de eliminar da vida pública qualquer partido político (veja o exemplo do PSDB em bem menos tempo), o PT recebeu o apoio de quase metade dos eleitores em 2018. Não bastasse isso, na eleição seguinte, essa de 2022, figura sistematicamente como líder das intenções de voto. Demonstração de resiliência partidária maior do que essa não consigo imaginar.

    O que efetivamente explica a eleição de Bolsonaro é a aliança formada entre o bolsonarismo e os interesses da elite, atuando na condição de proprietária dos maiores meios de comunicação do país. Como assim?

    É preciso entender que o bolsonarismo precede Bolsonaro, que apenas emprestou sua imagem e seu nome a um movimento que já existia, e ainda existe, no Brasil e no mundo, pela ascensão da extrema direita. Ele não é a fonte original do pensamento que norteia o movimento, mas meramente um outro bebedor do suco profundo e enraizado do patriarcado branco, macho, cristão no modelo hipocrisia, heterossexual da boca para fora, conservador e elitista.

    São pessoas que, em linhas gerais e resumidamente, acreditam, consciente ou subconscientemente (em negação), que: (a) mulheres e negros são inferiores, o que implica que as mulheres negras estão naturalmente no patamar mais baixo da sociedade; (b) homossexuais e transgêneros são aberrações antinaturais e devem ser eliminados do convívio social ou silenciados por isolamento, espancamento ou morte; (d) a desigualdade social extrema e a circunstância de que uns poucos são melhores do que a maioria, e portanto devem liderar a apropriação da riqueza coletiva, são fatos inescapáveis da natureza e assim devem ser mantidos, pois a economia e a hierarquia social estabelecida dependem disso; (e) axiologicamente, a ordem, e portanto o patrimônio (dado que a primeira existe para garantir o segundo), se sobrepõe à dignidade humana e deve ser assegurada a qualquer preço, ainda que à base de prisão, tortura e assassinato; (f) não existem direitos históricos a serem garantidos a populações, como negros e povos originários, que no passado foram desumanizadas e espoliadas de todo e qualquer direito, sendo exploradas até a morte ou dizimadas pelos brancos europeus que se espalharam pelo mundo a partir da Idade Moderna e que, por conta desse passivo histórico, até hoje padecem do sofrimento provocado pela marginalização social; (g) todos os espaços naturais, com sua fauna, flora, solo e subsolo, existem em benefício do ser humano e podem ser simples e totalmente destruídos se disso depender a economia; e (h) os que pensam diferente desse padrão perverso são comunistas e, portanto, podem/devem ser silenciados ou eliminados.

    Parte expressiva do povo, que pesquisas indicam ser de 15% dos eleitores1, já eram "bolsonaristas raiz" muito antes de Bolsonaro sequer pensar em se candidatar à presidência. São milhões de brasileiros que nutriam intimamente um pensamento distorcido, contrário às conquistas civilizatórias decorrentes da ascensão do humanismo a partir do Iluminismo, tais como a proteção contra o Leviatã estatal pela via do Estado de Direito, com inviolabilidade total da dignidade da pessoa, repúdio à tortura e ao assassinato político, garantia do devido processo legal, princípio da anterioridade penal, garantia de condição mínima de dignidade da existência em si, fim das penas degradantes e cruéis e outros direitos humanizantes.

    Os bolsonaristas raiz são pessoas que, até determinado ponto no curso de nossa história recente, seguiam, na aparência e na formalidade, os padrões éticos regulares. O monstro interno já os incendiava por dentro, porém encontrava-se aquietado, adormecido no Id de cada mente individual, tolhido pelo superego, pela consciência de que tudo o que pensava era, até então, socialmente tido por desonroso, sequer cabendo ser pensado intimamente, quanto mais escancarado nas redes sociais. Permaneciam inertes porque pesava sobre eles a vergonha de expor publicamente seus preconceitos, insensibilidade e pensamentos retrógrados.

    O que os fez despertar desse sono ético-moral e perder completamente o pudor de expor suas monstruosidades, foi a conquista de um discurso que lhes permitiu finalmente racionalizar, e dissimular, o vício elitista adormecido em suas almas. Foi demais para eles testemunhar o pobre no aeroporto e comprando carro popular zero, a doméstica enviando seu filho à Disney, o aumento da massa salarial com a autonomia que isso traz para o trabalhador. Esses elementos marcam o início da perda de qualquer escrúpulo. Tornou-se premente acabar com um governo cuja natureza socializante era mínima.

    Acentuar o antipetismo foi o caminho natural, não em decorrência de qualquer senso moral, ético ou de respeito à coisa pública. Isso o governo Bolsonaro já demonstrou às escâncaras que não exerce importância alguma na escolha eleitoral. O enriquecimento inexplicável da família Bolsonaro, pobres no início da carreira e com acumulação de patrimônio aparentemente incompatível com as únicas rendas por eles auferidas ao longo de suas vidas, de deputado ou vereador, nada disso tem relevância no voto do bolsonarista raiz. Esbravejam em função de obras realizadas em um sítio e um apartamento que não eram sequer propriedade de Lula, mas fazem pouco caso para a compra de dezenas de imóveis caros em dinheiro vivo, com recusa peremptória e raivosa dos Bolsonaro de meramente falar sobre o assunto. Acham que não devem explicação alguma ao eleitor.

    Em um interessante e recente vídeo, uma pessoa indaga a diversos bolsonaristas sobre o que Bolsonaro fez que mais lhes agradou. Eles balbuciam coisas sem nexo, pedem ajuda aos coleguinhas do lado, mas nada souberam dizer com exatidão. Um deles disse que "ainda que não tivesse feito nada, já seria bom". Perfeito exemplo de que o discurso ético ou de falta de eficiência era mera desculpa para expelir um governo de esquerda que prejudicava a exploração do trabalho, a possibilidade de pagar salários de fome.

    Tem-se, assim, que 15% dos eleitores sempre foram bolsonaristas, mesmo antes de Bolsonaro. Para esses, não há salvação externa a eles. Não são passíveis de convencimento senão através do próprio crescimento intelectual, se houver. Permanecerão assombrando a sociedade.

    Porém, e quanto aos demais 40% que votaram nele no 2º turno de 2018? Esses foram bolsonaristas de ocasião, sem convicção e sem fidelidade no voto. Já votaram no PT e em grande parte devem voltar a fazê-lo. São pessoas que, à época, estavam totalmente desiludidas ou descrédulas no que toca à validade e legitimidade do sistema. Seguiram nessa direção equivocada por conta de uma gigantesca e prolongada empreitada midiática institucional que buscou difundir a ideia de negação de valor à política, na equivalência negativa de todos os políticos de todos os partidos e, em sequência, na judicialização e criminalização da política, colocando os magistrados no exercício indevido de funções que pertencem aos eleitores e aos políticos por eles eleitos.

    Muitos podem indicar pontos distintos de inflexão no curso do rio civilizatório que marcou a adesão do poder midiático, carregando consigo grande parte da população, a um caminho que desembocaria no apoio a um indivíduo despreparado como Bolsonaro. Pessoalmente, embora reconhecendo que a degeneração do sistema se iniciara anteriormente, sendo o mensalão já um seu produto, costumo marcar esse ponto de acirramento sem retorno no episódio fraudulento da bolinha de papel lançada na cabeça de José Serra, então candidato a presidente pelo PSDB, na eleição de 2010. Nesse evento, percebi perplexo que a grande imprensa tinha perdido de vez o senso do ridículo e de respeito pela honradez da atividade essencial que exerce. Ali ficou marcado para mim o início da guerra de terra arrasada que a mídia travaria contra os partidos de esquerda e, principalmente, contra o PT. Não haveria mais concessões, piedade ou julgamento justo em relação ao inimigo, a esquerda brasileira. A partir desse evento, somente fuzilamentos de reputação, admitindo-se inclusive a insensibilidade com a eliminação física, sendo exemplo a do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, que sucumbiu, não somente aos desmandos da Polícia Federal e da Justiça Federal, mas principalmente ao estrépito social insuportável das manchetes escandalosas que fulminaram a honradez de uma vida acadêmica inteira sem mácula alguma.

    Finalmente venceram, em 2018, mas foi uma vitória de Pirro. Estupefatos, como não deveria ter ficado nenhum jornalista minimamente bem informado, testemunharam as ignomínias características e naturais desde sempre em Bolsonaro, serem materializadas em seu governo. Discurso da violência, práticas antiambientais, expurgo das pautas identitárias, incontáveis brigas e rompimentos entre eles próprios, evidentes sinais de corrupção do clã Bolsonaro e de amigos e colaboradores próximos, destruição da economia, despreocupação no trato diplomático com países amigos do Brasil, absoluta insensibilidade social na vida (corte de programas sociais e redução geral do amparo governamental) e na morte (centenas de milhares de brasileiros mortos pelo descaso com a pandemia). Nada disso deveria ter surpreendido os jornalistas. Bolsonaro disse a vida toda o que faria.

    Todavia, ao contrário dos jornalistas, a desfaçatez e insensibilidade de Bolsonaro não passou despercebida pelo povo. O bolsonarismo tornou-se, com incrível rapidez, um polo de repulsa política muito mais intenso do que o antipetismo que esses mesmos jornalistas alimentavam.

    Nesse momento, aparentemente, tudo indica que Bolsonaro perderá a eleição. Torçamos para que as pesquisas estejam certas. Contudo, ainda que se confirmem, isso não significa o fim do problema. O bolsonarismo viverá, acalentado por militares que não respeitam a farda que vestem; por pastores evangélicos que vociferam contra ensinamentos explícitos de Jesus; e por parte da classe média que não suporta ver pobre no aeroporto.

    É preciso cuidar para que jamais retorne ao poder.

    A extrema direita, sozinha, não se elege; necessita do apoio de não bolsonaristas, os desesperançados. Justamente por conta disso, é imperioso não permitir que o povo se desespere à visão da geladeira vazia, do filho doente sem hospital, da criança sem escola. Um auxílio governamental mínimo - nem me refiro a um estado de bem-estar social em seu esplendor - deve constituir não somente uma representação de nosso altruísmo social, mas também uma parede de dignidade capaz de interromper o levante fascista que se alimenta dos escombros da miséria humana.

    Outro ponto importante que os parlamentares devem considerar é a aprovação de uma emenda constitucional pondo um ponto final na extensão dos poderes militares. Eles devem ser colocados em seu devido lugar na caixinha institucional, ou seja, submissão absoluta, irrestrita e indiscutível aos três poderes da república, executivo, legislativo e judiciário, sem possibilidade de recusar o comando de nenhum deles e sem que qualquer dos poderes possa utilizar a força militar contra os outros dois, salvo por expressa decisão judicial fundamentada e irrecorrível. Os militares precisam pôr na cabeça, de uma vez por todas, que crises políticas devem ser resolvidas através de um processo político do qual eles não são parte. Além disso, há de ser impedido qualquer modo de interpretação constitucional e legislativa que confira aos militares o exercício de um poder moderador que eles não têm. Para tanto, o próprio texto constitucional deve tipificar, com detalhamento, os crimes políticos militares de insubordinação, indisciplina, participação em golpes e outros atos antidemocráticos e insurreição armada, bem como respectivas penas, com julgamento extra muros militares para evitar o inevitável corporativismo, podendo ser no STF ou no Senado.

    O Brasil precisa pôr um ponto final na afeição que os militares historicamente demonstram pela intromissão no processo político. Esse papel não é o deles.

    Em paralelo a isso, precisa-se começar a pensar em definir, na lei, os limites de atuação política de sacerdotes, seja no púlpito ou na própria vida privada. A interferência religiosa na política está atingindo proporções perigosas. São muitos os sacerdotes histéricos que utilizam o púlpito para proselitismo político, com o agravante de se dizerem portadores da voz de Deus. Isso é inconcebível num estado laico. A laicidade não deve ser somente formal, mas materialmente exigível. O sacerdote, atuando como tal, não pode inflamar politicamente os fiéis, assim como, em sua vida privada, não pode invocar seu deus e seus livros sagrados ao debater politicamente. Permitir isso é dar ao ministro religioso a possibilidade de manipular, como muitos tem ostensivamente manipulado, o discurso religioso em favor do tipo de política que deseja ver escolhida pelo povo, o que viola o princípio laico. Em nome do interesse público e da própria liberdade religiosa (pois a ascensão de uma religião ao poder pode restringir as demais, como é prova os sucessivos ataques de evangélicos às religiões de matriz africana), isso deve ser proibido.

    Essas são medidas iniciais que penso capazes de mitigar o perigo fascista e autoritário.

    Bolsonaro pode estar prestes a ser vencido e assim esperamos. Vamos aguardar o resultado das urnas. O bolsonarismo, porém, continua forte e ainda irá nos rondar, sorrateiro, por muito tempo. Toda cautela na prevenção do autoritarismo é pouca.



Notas:

1 – Conforme matéria O que é ser bolsonarista?, publicada no site da BBC News Brasil, em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62490534. Acesso em 15/09/2022.

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