O
ser humano é naturalmente gregário e, mesmo antes do surgimento da
fala, havia se habituado a viver em sociedade.
Australopitecos
viviam em bandos estratificados por uma tênue organização do
tecido social, que possuía um chefe, assim como hoje é observado em
grandes primatas, como os chimpanzés.
Entre
os chimpanzés há um líder do bando, o macho alfa (chefe), que é
apoiado por um segmento de outros machos do bando (soldados), que o
auxiliam a impôr sua liderança aos demais membros (cidadãos). Aos
chimpanzés cidadãos resta apenas a responsabilidade pela criação
dos filhotes, catação e extrativismo.
O chimpanzé que aspira ser o
novo líder do bando não necessariamente precisa ser o mais forte e
nem conquistar a liderança através de vitória em enfrentamentos
físicos com o antigo líder. No mais das vezes, basta buscar a
simpatia dos componentes do grupo que dão sustentação ao macho
alfa, os soldados. Através de afagos e outros agrados, conquista a
confiança desse grupo e, reforçado por essa adesão, avoca para si
a liderança, expulsando o antigo chefe sem maior violência.
Extraordinariamente,
os chimpanzés, com esse comportamento, exercitam um rudimento de
política, assim demonstrando que toda sociedade minimamente
complexa, ainda que primitiva, precisa de um mínimo de organização
política.
Isso
se explica pela necessidade que a própria dinâmica da vida grupal
impõe aos indivíduos na tomada de decisões que sejam respeitadas
pela coletividade. Afinal, inexoravelmente o bem da comunidade
implica limitação da liberdade individual. Se cada elemento do
corpo social resolver fazer o que quiser, quando quiser, sem
planejamento, dificilmente seria possível ao grupo obter o alimento
e a segurança de que necessitam.
Política
é justamente a ferramenta através da qual o bando, agora
civilizado, procura a melhor forma de se organizar no atendimento das
necessidades públicas, das demandas sociais.
O
ideal mais elevado da política com P maiúsculo é a conquista da
justiça social, com o máximo possível de liberdade e igualdade
para os indivíduos que integram a dada sociedade.
Aristóteles
enfatizava que o ser humano é um animal político, o que é
verdadeiro, pois dele se exige que negocie com os demais as condições
em que exercitará a vida em sociedade, ou seja, sua cidadania, e
isso é o que significa política.
Ao
lado dessa natureza política, todavia, o ser humano é também um
animal místico.
O
misticismo é uma outra face do poder que, de forma similar à
política mundana, impõe regras morais limitadoras da liberdade
individual como condição de elevação espiritual.
Desde
os tempos mais remotos, mesmo antes do registro histórico, o humano,
ignorante de quase tudo, como ainda, na verdade, continua a ser,
passou a atribuir força sobrenatural aos elementos que testemunhava
na natureza. O sol, a lua, a estrelas, os mares, as tempestades, os
raios, eram eles próprios, embora hoje se saibam fenômenos
naturais, considerados deuses e, por isso, temidos, pois capazes de
interferir no destino - entendido como vida e sobrevivência - da
pessoa humana.
Temerosa,
a humanidade criou ritos de bajulação do divino, com sacrifícios e
oferendas, para pacificá-lo, amansá-lo e fazê-lo simpático ao
interesse próprio do crente.
Nisso,
a humanidade mudou pouco nesses milênios. Até os dias de hoje
persiste o medo atávico do sagrado no seio da civilização.
Não
por acaso, naquelas sociedades primitivas o líder religioso, o xamã,
concentrava em sua própria persona o poder supostamente oriundo da
palavra sacra e também da secular. Tanto era a referência dos
deuses, como da sociedade.
E
não podia ser de outro modo, pois, se aquela pessoa representava o
elo entre o céu e a terra, se lhe era possível receber e
compreender as intenções do próprio poder divino, como lhe negar a
sabedoria sobre os rumos mais adequados a serem perseguidos pela
comunidade, muito menos relevante do que os deuses?
E
assim a ascendência sacerdotal sobre o grupamento social persistiu
longamente pelo tempo, atravessando milênios. Os faraós, e outros
monarcas tão vaidosos quanto, chegaram a afirmar, de si próprios,
não somente terem sido escolhidos pelos deuses para reinar, mas com
frequência que eles próprios eram deuses.
De
uma forma geral no passado, até não muito tempo atrás na história,
os reis atribuíam a posse da coroa a mandamentos sobrenaturais, a
desígnios de Deus. Eram reis por vontade divina.
O
intrincamento entre poder terreno e religioso é tanto que as
próprias estruturas institucionais são similares. Nesse sentido, o
papa da religião católica, por exemplo, é uma representação do
rei dos católicos, com direito a castelo (o Vaticano), coroação
(assunção papal), nobreza (cardeais e bispos), poder absoluto de
legislar e interpretar a legislação (o direito canônico), além de
vassalos (os fiéis).
Até
o final da Idade Média, a interferência da religião nas coisas do
Estado era total. Na maioria dos países muçulmanos, essa
interferência plena ainda ocorre nos dias de hoje. Isso porque o
Corão, ao contrário da bíblia judaico-cristã, é um livro sagrado
que regula todos os aspectos da vida do ser humano, inclusive a
administração do Estado. O resultado disso é a possibilidade de
surgimento, como têm surgido com velocidade preocupante, de
teocracias autoritárias, apesar de toda a propalada modernidade
cultural e avanços científico e tecnológico.
Com
a evolução da civilização, houve um natural e progressivo
distanciamento daquele medo original das coisas da natureza.
A
ciência jogou luz sobre a escuridão da ignorância e os seres
humanos perceberam que os astros e os demais fenômenos da natureza
são explicáveis racionalmente, não se tratando cada um deles de um
deus ou ainda de uma manifestação raivosa do divino.
A
partir do avanço científico, testemunha-se uma equivalente redução
do poder dos sacerdotes sobre a vontade das pessoas, fundado que era
no medo e na incerteza sobre o além-vida. Medo que aos poucos é
mitigado pelo uso da razão, que amplia a experiência crítica do
indivíduo.
Esse
fatores históricos conduziram à implementação do laicismo.
Nos
países do ocidente, a partir da constatação dos excessos
praticados pela intromissão indevida das diversas religiões nas
questões de Estado, provocativos de acirramentos político-religiosos
e de insegurança e terror social (representado, por exemplo, pela
inquisição), a sociedade humana civilizada entendeu que era
fundamental e salutar a separação entre Estado e religião.
Adotou-se o laicismo, fundou-se o Estado laico, desapegados das
estruturas religiosas arcaicas. Em contrapartida, como compensação
pela perda de poder, as religiões receberem a neutralidade do Estado
no que concerne à liberdade da prática religiosa por seus cidadãos.
Como outra compensação, isenção fiscal. Em grande parte dos
países, igrejas não pagam tributos.
O
Estado laico pretende conferir valor e materialização a
experiências sociais que, até então, pertenciam quase
exclusivamente ao mundo das ideias, como a liberdade de consciência
e de opinião, igualdade entre cidadãos e democracia. Tudo isso era
pretensão da filosofia laica que dificilmente seria alcançada em
sociedades submetidas ao obscurantismo religioso, sempre sedento de
opressão.
Entretanto,
embora seja indiscutível que o temor reverencial nutrido pelas
pessoas em relação aos deuses tenha sido atenuado à medida do
implemento da razão, ele ainda existe. Justamente em função desse
medo latente, o discurso religioso na política deve ser evitado.
O
discurso político proferido por um sacerdote é desigual em relação
ao discurso do profano, gerando um desequilíbrio na política que
desfavorece os ideais da civilização.
É
desigual porque eivado de força sobrenatural, transcendental.
Um
sacerdote ou uma religião desonesta não hesitará em atribuir a
Deus os seus próprios interesses escusos, como, aliás, não faltam
exemplos modernos, notadamente no campo da arrecadação de dinheiro.
Indubitável
que o sacerdote é também um cidadão e, como tal, possui direito à
liberdade de opinião e de expressão. Porém, isso somente é válido
fora do púlpito, em sua condição de cidadão, jamais misturando o
discurso político com o de sacerdote. Do púlpito sagrado, compete
ao sacerdote respeitar os limites do laicismo, não lhe sendo
permitido recomendar ao crente que adote essa ou aquela corrente
político-partidária, esse ou aquele candidato.
Ao
arrogar-se o direito de recomendar uma candidatura, por exemplo, cujo
âmbito é político e não sagrado, o sacerdote está conferindo ao
político, por reciprocidade, o perigoso direito de adentrar pelo
terreno religioso.
Cabe
indagar, por exemplo, se seria ético o político, utilizando de sua
prerrogativa de parlamentar, recomendar aos seus partidários que se
afaste de determinada religião por ser perniciosa.
Indo
um pouco mais longe, ao misturar política e religião, o sacerdote
pode estar autorizando que o agente político proponha uma legislação
específica contrária a essa religião, sob o fundamento de
interesse público, por exemplo.
Nossa
Constituição atual desautoriza qualquer espécie de restrição à
liberdade religiosa. Basta, porém, uma emenda constitucional para
modificar esse status.
Pau
que dá em Chico, dá em Francisco, já sabiamente afirma o velho
ditado.
Outrora,
Estado e religião se confrontaram violentamente, sempre com prejuízo
para a sociedade.
Sacerdote
se imiscuir na política, seja como cabo eleitoral, seja como
candidato, é algo anacrônico, démodé, ultrapassado desde a Idade
Média pelo laicismo. Seria melhor para todos mudar o rumo dessa
prosa ou proselitismo.
Mantenha-se
o combinado já há muito tempo: sacerdote fala de Deus e político
fala do Estado, um não fala do outro e ficam todos em paz.
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