sexta-feira, 30 de março de 2012

Ainda sobre as blitzen


Vou dar aqui continuidade ao meu artigo anterior sobre as blitzen da Lei Seca (leia aqui).
Não sou, por princípio, contrário a existência da lei seca em tese. A lei é plenamente justificável, dado que ninguém possui o direito de se colocar livremente em situação de descontrole da própria vontade com potencial de provocar danos a terceiros.
O posicionamento contrário limita-se às realização de blitzen policiais com esse fim, dirigindo-se difusamente à população, sem fundada suspeita e causando os notórios transtornos no deslocamento das pessoas. Toda blitz policial se reveste de evidente caráter fascista, pois trata de sujeitar a totalidade do coletivo à vontade arbitrária e discriminatória do Estado, sem prévia e fundada razão para tal, à margem da lei e da Constituição.
Durante a blitz, o agente policial (os policiais ou agentes de trânsito) ou mesmo a autoridade policial (os delegados de polícia), que não possuem poderes legais e constitucionais para tal, arrogam-se no direito de exigir de qualquer cidadão transeunte, indiscriminadamente, sem fundada suspeita, baseados apenas em suas próprias e subjetivas vontades, que interrompam sua viagem, identifiquem-se e submetam-se a uma revista pessoal e em seus objetos.
Esse ato complexo envolve várias violações a direitos individuais, alguns constitucionalmente garantidos, como o de ir e vir, o da dignidade pessoal (pelo constrangimento da exigência ilegal da retenção pessoal à vista de outras pessoas) e o da privacidade (pela revista ilegítima, sem mandado judicial).
Pode-se argumentar que isso é feito em nome da segurança coletiva, argumento que, todavia, também era utilizado por Hitler, que foi quem elevou a blitz policial ao status de relevância que possui hoje.
Contudo, essa suposta "autorização coletiva", sem base na lei, que hoje a população temerosa concede às blitzen, submetendo-se a ela sem maiores questionamentos, amanhã poderá voltar-se contra o povo num eventual endurecimento político (ascensão de uma direita ou esquerda fundamentalista radical ou mesmo de um novo regime ditatorial militar).
Deve ser afastada a blitz como meio legítimo de atuação policial, restando à polícia a alternativa da inteligência, ou seja, dirigir sua atuação somente àqueles que a merecerem, seja por suspeita fundada ou por existência de elementos de prova.
O cidadão não pode viver sob a ameaça de ser parado, de forma desfundamentada, a qualquer hora pelo aparato policial do Estado.
Constitui indignidade a realização de blitzen contra os cidadãos, organizadas sem inteligência, que não somente turbam o direito do cidadão de prosseguir em seu caminho, como são causadoras de enormes congestionamentos num trânsito que já não é bom.
Pior ainda, possuem o objetivo pueril de tentar, por pura sorte, ao acaso, sem racionalidade, capturar algum criminoso desavisado, situação rara de acontecer, ainda mais nos dias de hoje, com a internet e os celulares conectados a blogs que avisam onde são realizadas.
Em geral o que conseguem é deter uma ou outra pessoa com documentação veicular irregular ou portando arma não registrada, o que não significa necessariamente um perigo para a sociedade (pode ser um comerciante temeroso).
São blitzen confusas, aleatórias e desnecessárias.
É legítimo indagar como, então, deter os motoristas bêbados, questão, entretanto, que é mais ampla. Numa cultura considerada humanamente desenvolvida, como coibir o crime? Como evitar os homicídios, os estupros, os roubos seguidos de morte?
A resposta parece evidente: não há como. Sempre conviveremos com o crime e teremos que aprender a lidar com ele. Como faremos isso é que delineará que tipo de indivíduo e de sociedade pretendemos ser no futuro.
Se a resposta for o endurecimento progressivo do aparato estatal repressivo (anterior ao crime), essa lógica poderá nos fazer retroceder à Idade Média, com a total aniquilação dos direitos e liberdades individuais. É possível imaginar, por exemplo, num delírio paranoico, que a falha das blitzen da Lei Seca conduza à proibição da aquisição de veículos ou à obrigatoriedade de testes semanais ou mesmo diários de presença de álcool no sangue dos motoristas.
É totalmente impossível imaginar um regime absolutamente despótico que fuzile os motoristas que ousaram beber uma lata de cerveja?
O meio que aparenta ser mais adequado seria o aperfeiçoamento da ação policial preventiva (anterior ao crime), o que exige o uso da inteligência e a redução da impunidade, com valorização da polícia e da justiça.
Certas pessoas defendem as blitzen da Lei Seca sob o argumento, melancólico, de que perderam parentes e amigos por culpa de bêbados dirigindo. Claro que estão se referindo aos efeitos posteriores do delito, coisa que a realização de blitz não conseguirá jamais resolver.
O Brasil possui milhões e milhões de veículo trafegando. É inimaginável a realização de tantas blitzen, em tantos dias e horários, ao ponto de serem capazes de impedir muitos bêbados dirigindo.
Seria como imaginar que delegacias próximas a agências bancárias impediriam novos assaltos. Ou que pardais de trânsito impeçam motoristas de, logo após o radar, voltar a acelerar a duzentos por hora. Ou que vigilantes em campi universitários impeçam estupros de estudantes.
A máxima segurança possível de imaginar não foi capaz de impedir o assalto ao Banco Central em Fortaleza.
Seres humanos sempre estarão propensos a comportamentos fora dos padrões aceitos pela sociedade, inclusive os comportamentos considerados criminosos, e nada os fará desistir de adotar esse padrão. O que fazer?
A solução passa, como dito, pela inteligência e bons policiais, bem treinados e equipados. Tentar alcançar o infrator antes ou durante o crime e, caso não seja possível, pela aplicação de punição no maior número possível de casos. O número ótimo é de cem por cento.
A certeza da punição, mais do que sua severidade, é o melhor meio de incutir nas demais pessoas o receio de repetir o comportamento.
A legislação pode ser melhorada nesse sentido, por exemplo com a obrigatoriedade do teste de alcoolemia em todos os acidentes de trânsito e toda vez que o agente tiver fundada suspeita de que o indivíduo está alcoolizado (hoje a lei não garante ao Estado esse direito).
As blitzen da Lei Seca são ilegais não somente pelo simples fato de serem blitzen, pois toda blitz é ilegal, mas por visar o constrangimento geral dos cidadãos de forma indiscriminada, sem fundada suspeita, a interromper sua viagem e realizar o teste de bafômetro. O art. 277 da Lei Seca, que é seu fundamento de validade, assim não autoriza.
É possível argumentar que blitz não é invenção brasileira e existe em outros países. De fato, a invenção aparentemente é nazista e possivelmente existe em outros países, conclusão essa que de forma nenhuma resulta em sua legitimação.
Blitz sem um alvo específico, direcionada a todos os cidadãos indiscriminadamente, com propósito de encontrar um ilícito na sorte, constitui constrangimento que viola os direitos dos cidadãos.
Não cabe submeter toda a coletividade ao arbítrio do Estado para tentar, no acaso, na mais pura sorte, encontrar os poucos recalcitrantes. Seria como obrigar todos os clientes dos bancos a serem revistados antes de entrarem nas agências e também na saída, como meio de evitar novos assaltos. Um absurdo completo.
Trata-se de um poder excessivo, além da lei, que se está conferindo ao Estado para interferir nas vidas dos cidadãos. Constitui algo perigoso demais, certamente mais preocupante do que os motoristas bêbados.
A indagação que se impõe responder é: até que ponto o Estado possui o direito de restringir nossa liberdade? Qual o limite? Em que momento essa interferência estatal será considerada intolerável? Nesse momento, será possível fazê-lo retroceder? Será que, atingido esse ponto, ultrapassado esse limite, a população será capaz de "dobrar" um Estado fascista que já se acostumou a atropelar as liberdades individuais em nome de um suposto bem comum?
Parecem questões relevantes para as quais, contudo, não existem respostas.

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