Vou
dar aqui continuidade ao meu artigo anterior sobre as blitzen da Lei
Seca (leia aqui).
Não
sou, por princípio, contrário a existência da lei seca em tese. A
lei é plenamente justificável, dado que ninguém possui o direito
de se colocar livremente em situação de descontrole da própria
vontade com potencial de provocar danos a terceiros.
O
posicionamento contrário limita-se às realização de blitzen
policiais com esse fim, dirigindo-se difusamente à população, sem
fundada suspeita e causando os notórios transtornos no deslocamento
das pessoas. Toda blitz policial se reveste de evidente caráter
fascista, pois trata de sujeitar a totalidade do coletivo à vontade
arbitrária e discriminatória do Estado, sem prévia e fundada razão
para tal, à margem da lei e da Constituição.
Durante
a blitz, o agente policial (os policiais ou agentes de trânsito) ou
mesmo a autoridade policial (os delegados de polícia), que não
possuem poderes legais e constitucionais para tal, arrogam-se no
direito de exigir de qualquer cidadão transeunte,
indiscriminadamente, sem fundada suspeita, baseados apenas em suas
próprias e subjetivas vontades, que interrompam sua viagem,
identifiquem-se e submetam-se a uma revista pessoal e em seus
objetos.
Esse
ato complexo envolve várias violações a direitos individuais,
alguns constitucionalmente garantidos, como o de ir e vir, o da
dignidade pessoal (pelo constrangimento da exigência ilegal da
retenção pessoal à vista de outras pessoas) e o da privacidade
(pela revista ilegítima, sem mandado judicial).
Pode-se
argumentar que isso é feito em nome da segurança coletiva,
argumento que, todavia, também era utilizado por Hitler, que foi
quem elevou a blitz policial ao status de relevância que possui
hoje.
Contudo,
essa suposta "autorização coletiva", sem base na lei, que
hoje a população temerosa concede às blitzen, submetendo-se a ela
sem maiores questionamentos, amanhã poderá voltar-se contra o povo
num eventual endurecimento político (ascensão de uma direita ou
esquerda fundamentalista radical ou mesmo de um novo regime
ditatorial militar).
Deve
ser afastada a blitz como meio legítimo de atuação policial,
restando à polícia a alternativa da inteligência, ou seja, dirigir
sua atuação somente àqueles que a merecerem, seja por suspeita
fundada ou por existência de elementos de prova.
O
cidadão não pode viver sob a ameaça de ser parado, de forma
desfundamentada, a qualquer hora pelo aparato policial do Estado.
Constitui
indignidade a realização de blitzen contra os cidadãos,
organizadas sem inteligência, que não somente turbam o direito do
cidadão de prosseguir em seu caminho, como são causadoras de
enormes congestionamentos num trânsito que já não é bom.
Pior
ainda, possuem o objetivo pueril de tentar, por pura sorte, ao acaso,
sem racionalidade, capturar algum criminoso desavisado, situação
rara de acontecer, ainda mais nos dias de hoje, com a internet e os
celulares conectados a blogs que avisam onde são realizadas.
Em
geral o que conseguem é deter uma ou outra pessoa com documentação
veicular irregular ou portando arma não registrada, o que não
significa necessariamente um perigo para a sociedade (pode ser um
comerciante temeroso).
São
blitzen confusas, aleatórias e desnecessárias.
É
legítimo indagar como, então, deter os motoristas bêbados,
questão, entretanto, que é mais ampla. Numa cultura considerada
humanamente desenvolvida, como coibir o crime? Como evitar os
homicídios, os estupros, os roubos seguidos de morte?
A
resposta parece evidente: não há como. Sempre conviveremos com o
crime e teremos que aprender a lidar com ele. Como faremos isso é
que delineará que tipo de indivíduo e de sociedade pretendemos ser
no futuro.
Se
a resposta for o endurecimento progressivo do aparato estatal
repressivo (anterior ao crime), essa lógica poderá nos fazer
retroceder à Idade Média, com a total aniquilação dos direitos e
liberdades individuais. É possível imaginar, por exemplo, num
delírio paranoico, que a falha das blitzen da Lei Seca conduza à
proibição da aquisição de veículos ou à obrigatoriedade de
testes semanais ou mesmo diários de presença de álcool no sangue
dos motoristas.
É
totalmente impossível imaginar um regime absolutamente despótico
que fuzile os motoristas que ousaram beber uma lata de cerveja?
O
meio que aparenta ser mais adequado seria o aperfeiçoamento da ação
policial preventiva (anterior ao crime), o que exige o uso da
inteligência e a redução da impunidade, com valorização da
polícia e da justiça.
Certas
pessoas defendem as blitzen da Lei Seca sob o argumento, melancólico,
de que perderam parentes e amigos por culpa de bêbados dirigindo.
Claro que estão se referindo aos efeitos posteriores do delito,
coisa que a realização de blitz não conseguirá jamais resolver.
O
Brasil possui milhões e milhões de veículo trafegando. É
inimaginável a realização de tantas blitzen, em tantos dias e
horários, ao ponto de serem capazes de impedir muitos bêbados
dirigindo.
Seria
como imaginar que delegacias próximas a agências bancárias
impediriam novos assaltos. Ou que pardais de trânsito impeçam
motoristas de, logo após o radar, voltar a acelerar a duzentos por
hora. Ou que vigilantes em campi universitários impeçam estupros de
estudantes.
A
máxima segurança possível de imaginar não foi capaz de impedir o
assalto ao Banco Central em Fortaleza.
Seres
humanos sempre estarão propensos a comportamentos fora dos padrões
aceitos pela sociedade, inclusive os comportamentos considerados
criminosos, e nada os fará desistir de adotar esse padrão. O que
fazer?
A
solução passa, como dito, pela inteligência e bons policiais, bem
treinados e equipados. Tentar alcançar o infrator antes ou durante o
crime e, caso não seja possível, pela aplicação de punição no
maior número possível de casos. O número ótimo é de cem por
cento.
A
certeza da punição, mais do que sua severidade, é o melhor meio de
incutir nas demais pessoas o receio de repetir o comportamento.
A
legislação pode ser melhorada nesse sentido, por exemplo com a
obrigatoriedade do teste de alcoolemia em todos os acidentes de
trânsito e toda vez que o agente tiver fundada suspeita de que o
indivíduo está alcoolizado (hoje a lei não garante ao Estado esse
direito).
As
blitzen da Lei Seca são ilegais não somente pelo simples fato de
serem blitzen, pois toda blitz é ilegal, mas por visar o
constrangimento geral dos cidadãos de forma indiscriminada, sem
fundada suspeita, a interromper sua viagem e realizar o teste de
bafômetro. O art. 277 da Lei Seca, que é seu fundamento de
validade, assim não autoriza.
É
possível argumentar que blitz não é invenção brasileira e existe
em outros países. De fato, a invenção aparentemente é nazista e
possivelmente existe em outros países, conclusão essa que de forma
nenhuma resulta em sua legitimação.
Blitz
sem um alvo específico, direcionada a todos os cidadãos
indiscriminadamente, com propósito de encontrar um ilícito na
sorte, constitui constrangimento que viola os direitos dos cidadãos.
Não
cabe submeter toda a coletividade ao arbítrio do Estado para tentar,
no acaso, na mais pura sorte, encontrar os poucos recalcitrantes.
Seria como obrigar todos os clientes dos bancos a serem revistados
antes de entrarem nas agências e também na saída, como meio de
evitar novos assaltos. Um absurdo completo.
Trata-se
de um poder excessivo, além da lei, que se está conferindo ao
Estado para interferir nas vidas dos cidadãos. Constitui algo
perigoso demais, certamente mais preocupante do que os motoristas
bêbados.
A
indagação que se impõe responder é: até que ponto o Estado
possui o direito de restringir nossa liberdade? Qual o limite? Em que
momento essa interferência estatal será considerada intolerável?
Nesse momento, será possível fazê-lo retroceder? Será que,
atingido esse ponto, ultrapassado esse limite, a população será
capaz de "dobrar" um Estado fascista que já se acostumou a
atropelar as liberdades individuais em nome de um suposto bem comum?
Parecem
questões relevantes para as quais, contudo, não existem respostas.
Nenhum comentário :
Postar um comentário