O
cantor Gusttavo Lima, apresentando-se em um show em Bauru, São
Paulo, num evento com cerca de quarenta mil espectadores, quebrou sua
guitarra no palco e, depois, atirou os pedaços para a plateia. Um
dos pedaços atingiu uma menina de dez anos, que necessitou de
atendimento hospitalar. Os pais da menina registraram a ocorrência
numa delegacia policial. Porém, após a visita do cantor, desistiram
do processo e estenderam uma faixa, em sua residência, afirmando
amá-lo.
Por
conta desse episódio, alguns comentaristas de blogs criticaram, não
somente o fato em si de uma criança de dez anos estar num evento
desse porte e de o cantor ter agido, como agiu, de forma imprudente,
mas o próprio valor artístico da música do Gusttavo Lima e de
outros do mesmo estilo, como Luan Santana e Michel Teló.
Não manifestarei opinião sobre a conduta do cantor e dos pais da
menina, pois são pertinentes às suas vidas particulares que, em princípio, não possuem interesse específico para a coletividade.
Vou
restringir minha análise à crítica negativa produzida de forma
genérica quanto ao valor artístico dos cantores do segmento musical
dos sertanejos universitário.
Concordo
com os que consideram que vivenciamos um momento histórico-social
que, depois da cultura e da contracultura, deveria ser chamado de
microcultura ou aculturalismo. Parece que, quanto mais rasteiro,
melhor. Porém, a crítica dirigida a um específico indivíduo que
representa a cultura de um povo deve ser produzida de forma
extremamente cautelosa, sob o risco de parecer, ou mesmo ser, mera
externalização de arrogância pessoal ou de classe.
Se
um escritor vende milhares de livros, se um cantor atrai milhares de
espectadores, merece algum respeito e possui algum talento. Sim,
porque a arte não é somente aquilo de que gostamos e tampouco é
somente aquilo que produz sensações reconfortantes, agradáveis. A
arte pode incomodar e causar desconforto. Aliás, a contracultura
manifestou-se através dessa espécie desconfortável de produção
artística.
Uma
pessoa possui o direito de não gostar do Gusttavo Lima, mas deve
respeito às outras pessoas que o apreciam. É direito inalienável
de toda pessoa escolher a arte que a toca.
Em
todas as épocas tivemos os artistas da elite, os artistas do povo e
os artistas marginalizados, os "malditos", estes de quem
nem elite, nem povo, gostavam.
A
personagem Mafalda, dos quadrinhos do Quino, afirmou que é melhor
ser uma simples música dos Beatles do que todo um longplay da Sarita
Montiel. Essa frase é reveladora do profundo abismo que há entre o
gosto popular e o da elite refinada.
Por princípio, detesto
refinamentos. Eles são a ponta do iceberg da prepotência. Favor não
confundir refinamento desnecessário com a sempre indispensável
elegância que, de um certo modo, é o seu contrário. Refinamentos
foram historicamente produzidos para produzir e marcar divisões
ficcionais de classe. Quer se diferenciar da turba ignara? Faça um
curso de degustação de vinhos e deite falação sobre o aroma
terroso do buquê, a nota acentuada ao final da língua evocando uma
espécie de tâmara que só existe no sul da Turquia ou outras
baboseiras quetais. Aprenda a comer com vinte talheres e dez copos. À
mesa, ponha um guardanapinho de seda no colo e use-o apenas para
limpar os cantos da boca. Quer parecer culto e erudito? Evoque
similaridades entre algum fato ocorrido e algo escrito por
Shakespeare ou Dostoievski, critique os livros do Paulo Coelho e fale
mal de todos os livros de autoajuda.
Antes
o povo gostava de rock e era "o horror, o horror". Depois,
o horror da elite branca, madura, rica e bem educada buscou margens,
sucessivamente, na disco, no sertanejo, no pagode, no funk e agora é
no sertanejo universitário. O povo gosta? Então é baixaria e
desprovido de valor intrínseco de arte.
Não
é caso de produzir apologia a todas as modalidades artísticas, mas
de chamar a atenção para a diversidade de gosto estético em
relação a praticamente toda e qualquer arte produzida. Pode-se
gostar de um Reembrandt e detestar um Picasso, amar os Bee Gees e não
os Beatles, Mozart e não Wagner, Machado de Assis e não Joyce,
Chico Buarque e não Tom Jobim.
Considerar
que arte é somente aquilo do que se gosta embute uma tentativa de
projeção do ego, uma autovalorização que se busca obter através da
desvalorização da opinião alheia, da desconsideração do gosto do outro, da diminuição do sentimento
do próximo. É a negação da alteridade e a profanação do sagrado
solo da subjetividade.
Toda
vez que o produto do trabalho de alguém, na dimensão simbólica de
representação do conteúdo sentimental da visão da realidade, emociona o
outro, impacta, isso é arte por definição. Se a obra humana,
exteriorizando um real permeado pelas paixões íntimas do autor,
encontra eco emocional na alma do outro, ainda que de uma só pessoa,
esse eco é justamente o elemento que irá defini-la como arte. Essa
é a distinção entre o mero produto do trabalho e a arte. O
primeiro, por vezes, pode ser indispensável ao físico, mas não
toca o sentimento espiritual de ninguém (talvez de um narcisista
deslumbrado).
A
arte atravessa os limites da matéria e apaixona.
Diferentemente
do que pensam alguns filósofos, não é a razão que explicará a
vida. É a arte que sempre será a razão para a vida e lhe dará
sentido.
Se
a obra de Gusttavo Lima emociona as pessoas a ponto de quarenta mil
delas se reunirem para ouvi-lo, isso é o que basta para conferir-lhe
o status de artista.
Não
gostar é um direito, descaracterizá-la como arte é elitismo e
arrogância.
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