A
inteligência humana, avançada e racional, produz o pensamento e,
por ser sua criadora, inexoravelmente o vicia na origem, sendo essa
contaminação que faz engendrar, nos seres humanos, o pensamento
antropomórfico, ainda que dissimulado, não aparente. Esse vício de
origem constitui uma característica de toda inteligência e não
propriamente da inteligência dos humanos. Deveras, se as formigas
possuíssem inteligência consciente e racional, certamente seus
pensamentos tenderiam a imaginá-las como os seres mais importantes
do planeta, provavelmente criados à imagem e semelhança da Grande
Formiga, criadora de todos os formigueiros e que sobre elas reina no
formicéu.
Embora
seja a inteligência humana a causa do surgimento da razão e da
produção de conhecimento, trata-se de um atributo de valor dúbio.
Não há fundamento algum para, por princípio, afirmá-la como um
elemento incontroversamente positivo ou sem o qual a vida dos humanos
seria pior.
É
inegável que a inteligência permitiu uma multiplicação
vertiginosa dos humanos. Ainda que se considere isso um efeito
positivo da inteligência, existem diversos seres sem inteligência
alguma que nos superam no quesito multiplicação descontrolada, como
microorganismos, insetos e roedores, por exemplo.
Contudo,
a própria multiplicação irrazoável, descontrolada, dos seres
humanos deve ser encarada como um sinal de pouca inteligência e não
de muita. A superpopulação tornou-se um fardo para a própria
humanidade. São bilhões e bilhões de humanos somando trilhões e
trilhões de necessidades a serem satisfeitas, cada individualidade
contendo em si suas próprias demandas materiais e espirituais,
claramente inviáveis de serem atendidas. Demandas impossíveis de
serem satisfeitas em iguais condições geram violência, o que é
sinal de estupidez e não de alta intelectualidade.
Pode-se
argumentar que, a partir da inteligência humana, surgiu a
maravilhosa medicina, capaz de curar doenças que, antes, matavam
milhões. Isso é verdade. O benefício presente é indiscutível e
cada pessoa curada é um milagre da inteligência. Porém, qual será
o custo a longo prazo? As curas da medicina interromperam o fluxo
natural da evolução humana pela seleção natural, que, se é
incapaz de salvar indivíduos, é o instrumento mais eficaz de
proteger a espécie. A ação natural da evolução salvaria da morte
os resistentes às doenças, os quais transmitiriam aos seus
descendentes essa mesma resistência. Sem menosprezar o evidente
valor da medicina, não fosse sua intervenção, em pouco tempo
histórico suas curas seriam dispensáveis, bastando lembrar que as
mortes pela gripe espanhola foram sendo reduzidas a cada nova
epidemia, cada uma sempre menos agressiva que a anterior. Quanto
custará aos humanos, em quantidade de vidas, a supressão da
evolução? A evolução dos microorganismos não cessou. Eles estão
à nossa espreita, tornando-se cada vez mais super-resistentes, os
antibióticos cada vez menos eficazes.
Ao
lado disso, a inteligência produziu um fenômeno com efeitos
contrários e inversamente proporcionais aos benefícios da medicina.
Os milhões que por ela foram salvos são apenas um pequeno
contrapeso em um dos pratos da balança. No outro prato devem ser
pesados os milhões e mais milhões que foram mortos pelo produto
mais refinado da inteligência: as guerras e suas armas cada vez mais
tecnológicas.
A
inteligência possibilitou um inacreditável avanço nas técnica de
agricultura e, com isso, uma melhor alimentação para um número
percentualmente maior de pessoas, não se pode discutir. Num mundo
pré-histórico, entretanto, desprovido de inteligência racional e
sem agricultura, jamais se registrou uma quantidade de animais
irracionais mortos de fome, por culpa da própria ação, em maior
número do que os bilhões de seres humanos que, durante a história
da civilização, morreram esquálidos, com o esqueleto à mostra sob
a pele, ao lado de grandes e verdejantes fazendas dos nobres e
milionários ou vizinhos a grandes fábricas de alimentos. A África
de um milhão de anos atrás certamente não matou de fome mais seres
vivos, hominídeos ou não, do que a de hoje, com toda a imensa
inteligência do ser humano.
Em
virtude do apanágio da inteligência, os humanos se imaginam no
domínio da natureza, um tolo e grandioso engano. A natureza conta os
dias em milhões e os anos em bilhões. Humanos são mero sopro
temporal nesse calendário. Se algum incômodo chegarmos a provocar,
como aparentemente estamos provocando no clima, a deusa Gaia agirá
como sempre agiu: eliminará o incômodo e seguirá o seu rumo. O ser
humano é incapaz de matar o planeta, o inverso é fácil e rápido.
A
inteligência torna os humanos arrogantes ao ponto da cegueira e da
paralisia mesmo em relação às coisas mais evidentes, como a
extrema e injusta desigualdade dos homens. Nas sociedades sem
inteligência, como a das abelhas, por exemplo, os indivíduos
trabalham pelo bem comum. Na sociedade que se percebe inteligente, o
trabalho é para o bem privado.
Seres
humanos inventam ditos para afirmar que o trabalho enobrece, mas não
se indaga sobre quem está se tornando um nobre. O trabalhador
certamente não. A maioria, empobrecida, vê-se na contingência de
ter que despender sua força física e mental, por baixo salário, em prol de um enriquecimento brutal e desnecessário de alguns poucos. Esses poucos, ricos,
se apropriam do trabalho alheio e embora seres humanos como os
trabalhadores, são beneficiados individualmente com mais direitos sobre os bens
produzidos coletivamente pela sociedade. Direitos garantidos por lei aos que
enobrecem com o trabalho do outro, uma contrafação da alteridade.
A
inteligência faz aceitar passivamente a abdicação de nosso direito
natural ao planeta. Os seres vivos não inteligentes não obedecem
ordens que os impeçam de vagar pelo mundo, somente obstáculos
físicos os detêm. Para os humanos serem tolhidos em sua liberdade
de caminhar pelos quatro cantos do planeta basta uma ideia, uma
gaiola sem grades, uma cerca sem arame chamada passaporte.
A
inteligência torna tolos a maioria dos humanos. Uma pequeníssima
minoria, os poderosos, cria o conhecimento que será disseminado como
cultura de massa, com valores morais e éticos adequados aos seus
interesses. Criada essa ideologia de dominação, ela é sutilmente
imposta à sociedade pela religião, pela filosofia e, enfim, pela
educação. A grande maioria dos humanos, explorados e pobres, mas
que se pensam inteligentes, adotam tais valores como se tivessem
nascido de seu próprio raciocínio, assim suportando com resignação
a própria miséria e infortúnio.
A
inteligência consegue convencer os miseráveis de que é mais nobre
morrer de fome do que atacar o patrimônio excessivo do rico. Animais
irracionais podem não possuir inteligência, mas não são idiotas,
não morrem de fome por um vago e falso ideal de honra. Se um outro
intenta retirar-lhes o naco de carne da boca eles rosnam e atacam. Se
a ninhada grita, o albatroz rouba o peixe que estava na boca da
gaivota. Por isso, animais não acumulam para várias gerações. O
gasto energético não compensa, se outro animal não o roubar, o
alimento acumulado em demasia apodrecerá.
A
soberba da inteligência conduz os seres humanos a aceitar a
injustiça sob o pálio da manutenção da ordem e da paz. Seres que
se consideram inteligentes e acabam por agir como a rã que, colocada
em água fria na panela, não nota o gradual aquecimento e consente
com o banho, enquanto vai se tornando o prato do dia.
A
inteligência não é um bem ou um mal em si mesma. Ela é como um
pitbull cuja genética ruim leva à violência, mas que pode ser
treinado para se tornar um animal tranquilo.
A
inteligência brilhará e cumprirá o seu destino a partir do momento
histórico em que se tornar sublime; quando passar a ser utilizada
para o fim supremo e sua única razão de ser, que é a de conferir
aos humanos uma tomada de consciência quanto ao seu verdadeiro papel
nesse planeta.
Não
a ridícula atuação de supostos criadores de riqueza ou de
multiplicadores da própria espécie, mas a nobre condição de
guardiões da criação, de toda a criação, com todos os seus
seres, representada inclusive, e talvez principalmente, pela pessoa
que está ao lado, revirando o lixo em busca do que comer, ou pelo
animal cujo habitat foi reduzido a uma ínfima porção, insuficiente
para sua sobrevivência.
A
inteligência nos brinda com a razão e essa não é capaz de
imaginar qualquer outro motivo para a existência da própria
inteligência que não seja o de permitir o conhecimento da criação
e dela nos maravilharmos, compreendendo, afinal, que, na verdade,
jamais saímos do paraíso. Nós, de fato, o estamos destruindo.
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