domingo, 23 de março de 2014

A Bíblia I


A bíblia judaico-cristã narra diversos fatos sobre a criação do universo e sobre a história da humanidade.
Do início dos tempos até um século atrás, a narrativa sagrada era interpretada literalmente pelos sacerdotes e assim era imposta aos crentes. Prevalecia, pois, a crença geral de que os eventos bíblicos aconteceram exatamente como revelados aos homens através do livro sagrado.
A literalidade bíblica era considerada tão verdadeira que, em épocas sombrias, quando a religião cristã, além da espiritualidade do povo, dominava também a política, sequer se podia contestar os fatos sagrados, sob pena de tipificação do crime de heresia, passível de punição mediante tortura e morte pela fogueira. No mundo moderno, a possibilidade de punição por heresia ainda existe em regimes teocráticos, como os que ocorrem em países muçulmanos.

Contudo, com o passar do tempo e o avanço da ciência, muitas das crenças sagradas foram derrubadas por provas científicas incontestáveis. Tome-se como exemplo a descrição bíblica da criação do universo em seis dias, mito contrariado por estudos físico-astronômicos que datam o universo em mais de quatorze bilhões de anos e a Terra em mais de quatro bilhões de anos. Em outra exemplo, a mítica criação do homem a partir do barro e da mulher a partir da costela masculina foi derrubada pela teoria da evolução de Darwin, posteriormente ratificada por descobertas arqueológicas e estudos de DNA. A doutrina religiosa do geocentrismo foi afastada pelos estudos de Copérnico e, posteriormente, Galileu. Por mais que se façam estudos científicos, nada se encontra que possa comprovar um evento tão catastrófico como o dilúvio, que, segundo a bíblia, arrasou o planeta inteiro. Alagamentos tenebrosos, envolvendo todo o litoral do planeta, são amparados por estudos geológicos, mas não de todas as terras do planeta. Um evento cataclísmico ocorrido sessenta e cinco milhões de anos atrás, antes da existência da humanidade, como a queda do asteroide que supostamente extinguiu os grandes dinossauros deixou sequelas na delicada pele da Terra, mas em relação a algo recente como o dilúvio... nada.
A partir das evidentes contradições entre a mitologia bíblica e as descobertas da ciência, surgiu um outro tipo de religioso judaico-cristão: aquele mais instruído e antenado com as descobertas da ciência. Não podendo fechar os olhos para a ciência, nem disposto a abrir mão de sua fé, esse religioso culturalmente mais desenvolvido adotou um novo discurso: a bíblia nunca poderia ser interpretada literalmente; seus ensinamentos estão codificados pelo divino e devem se entendidos de acordo com o seu tempo. Ou seja, Deus é tão sábio que produziu revelações com palavras cuja hermenêutica é plenamente adaptável a cada tempo.
Os modernos religiosos desenvolveram teorias religiosas compatíveis com a ciência, como o design inteligente. Perfeito. Afinal, um Deus todo-poderoso é mesmo capaz de realizar algo do tipo.
Claro que há um problema com essa espécie de abordagem. As possibilidades de interpretação de um texto são praticamente infinitas. Leitores diferentes são capazes de extrair de uma mesma redação interpretações tão díspares que pareceriam oriundas de textos distintos e conflitantes. A multiplicidade interpretativa é tamanha que é corrente a afirmação de que, assim que a poesia é escrita pelo poeta e entregue aos olhos ávidos dos leitores, sua mensagem oculta não mais pertence ao poeta, mas a cada um dos leitores. A explicação para tamanha variedade de olhares distintos encontra fundamento no fato de que a interpretação do texto carrega em si a historicidade do leitor, ou seja, a experiência de vida do intérprete.
Transportando essa constatação para a interpretação do texto sagrado, conclui-se que, ou ninguém jamais saberá qual a interpretação mais correta, ou seremos obrigados a confiar a tarefa de interpretação aos escolhidos por Deus.
E quem seriam os legitimamente escolhidos por Deus? A quem podemos confiar essa missão divina? Como seria possível identificá-los? Como saber que os escolhidos estão realmente afirmando a palavra "Dele" e não "deles"? Quais os verdadeiros sacerdotes? Qual a verdadeira religião? Quais os efetivos textos sagrados?
Os adeptos das religiões fundadas em textos sagrados teriam que possuir um outro tipo de fé: a fé no intérprete. Isso implica deixar de ter fé no divino e passar a ter fé no ser humano que diz falar pelo divino. Pensando bem, sempre foi assim.
Aliás, remanesce uma questão ainda mais premente: os textos sagrados ainda revelam o sagrado, depois de tantas compilações, acréscimos, traduções, manipulações e reduções?
A mim parece que algo que gera dúvidas tão intensas não é perfeito e, se não é perfeito, não é de Deus.
Tampouco cabe falar, para essa missão hermenêutica, no poder da fé, pois tal poder não é exclusivo de determinada religião, sendo dividido igualmente entre as diversas crenças. Todo religioso possui fé inabalável em seu próprio Deus, em seu próprio sacerdote, em seu próprio livro sagrado e na interpretação desse livro pelos seus homens santos. Não há razão alguma para crer mais no intérprete da Bíblia do que no do Corão ou do livro sagrado de alguma religião esquecida de um povo perdido de uma ilhota da Polinésia.
Há uma outra paralaxe a ser considerada quanto ao assunto: a interpretação mais rústica do texto sagrado, a literal, somente deixou de ser passivamente aceita por aqueles religiosos mais educados. De fato, a massa religiosa, a imensa maioria das pessoas que acreditam nos homens sagrados que comandam os templos, é formada por pessoas de baixa instrução. Esta massa continua a aceitar os fatos tais e quais postos na bíblia, ou seja, na literalidade. Basta comparecer a um culto religioso qualquer para perceber que não há qualquer esforço significativo do sacerdote para mudar esse cenário.
Ainda que isso soe ridículo para a elite intelectual, a maior parte dos religiosos ainda crê que Deus criou o mundo em seis dias, viemos de Adão e Eva, houve um dilúvio e Noé salvou todos os animais do mundo num arca de tantos côvados.
A respeito do dilúvio, abra-se um parênteses para ressaltar que a bíblia é omissa a respeito de animais que, à época, eram desconhecidos na Eurásia e no Oriente Médio, como, por exemplo, os animais endêmicos da América e outras localidades que, então, não tinham sido descobertas e não constavam dos mapas do mundo conhecido. O fato é que eles se salvaram, portanto devem ter embarcado. A propósito disso, é intrigante tentar desvendar como animais provenientes desses locais chegaram à Arca ainda em tempo de se salvarem. Afinal, estavam distantes milhares de quilômetros da região da Palestina e ilhados em locais separados do mundo conhecido por centenas, às vezes milhares, de quilômetros de mar. Como será que os macacos prego da América do Sul, os lêmures de Madagascar ou os cangurus da Austrália chegaram à Arca? Se nadaram um oceano inteiro, qual seria o propósito de embarcarem, se poderiam enfrentar o dilúvio a nado?
Quanto aos religiosos mais instruídos, existem os que resistem à ciência, como os adeptos do criacionismo.
Há uma diferença gritante entre acreditar e acreditar cegamente. A fé cega, de ocorrência extremamente comum ao longo da história, possui um enorme potencial de prejudicialidade para a humanidade, dela decorrendo diretamente acontecimentos deletérios como as cruzadas, a inquisição, os confrontos hindu x muçulmanos na Índia, as contendas entre católicos e protestantes na Irlanda, a atual guerra santa dos muçulmanos, a guerra do ocidente contra os muçulmanos, a guerra da Bósnia, os problemas entre palestinos e israelenses, etc.
Claro, sempre se poderá dizer que tais eventos não são exclusivamente religiosos. Pode ser, mas não é menos verdade que o elemento religioso é crucial para impedir ou retardar soluções político-diplomáticas pacíficas. Todos os grupos de pessoas reunidas em busca de poder costumam ser deletérios para a humanidade, o grupo, porém, que busca esse poder arvorando-se em representante da voz do próprio Deus será sempre pior. Isso porque, se é certo que as pessoas tendem a duvidar das intenções de seus governantes, igualmente é certo que temem duvidar de quem representa o divino. Por respeito ao divino, participarão de guerras e sacrificarão a própria vida, como os kamikases japoneses ou os atuais homens-bomba muçulmanos.
A fé crítica é menos pior, pois torna o crente capaz de melhor resistir a comandos evidentemente disparatados de uma vontade divina supostamente cheia de amor pela humanidade mas que clama por sangue.
É importante esclarecer que a menção feita aos problemas da fé, cega ou não, refere-se apenas ao tipo de fé em algum Deus que seja representado na Terra exclusivamente por uma específica religião, ou seja, a fé numa religião institucionalizada. A mera fé em Deus de todos os seres, desvinculada de templos, sem livros sagrados exclusivos, sem ritos repetitivos e ilógicos, sem a necessidade de custear prédios e sacerdotes não parece capaz de ameaçar a convivência pacífica entre os seres humanos.
Todavia, a fé crítica culmina por criar um religioso que acredita apenas parcialmente nos dogmas de sua igreja, o que é algo um tanto paradoxal, mas ainda preferível à cegueira. O religioso crítico muçulmano, por exemplo, tende a duvidar da promessa de possuir dezenas de virgens no paraíso, o que dificulta sobremaneira, ou mesmo impede, o trabalho de convencê-lo a atirar um avião num arranha-céu. O crente cristão crítico tranquilamente faz sexo sem qualquer intenção de procriar, com camisinha ou utilizando remédios anticoncepcionais, e nem sequer pensa em confessar isso ao sacerdote, não porque tenha algum pudor, mas simplesmente porque não enxerga o próprio comportamento como pecado, embora a situação viole diretamente o catecismo católico.
Como é possível conciliar a existência de cristãos homossexuais com a doutrina da igreja? Eles existem a partir da religiosidade crítica, que enfrenta os dogmas de forma racional, porém sem perda de um milímetro de fé.
Essa religiosidade crítica, questionadora das verdades de fé estabelecidas em concílios fechados de homens comuns interessados, vem ampliando suas bases a partir do elastecimento do alcance da educação para cada vez mais pessoas.
Com o tempo, o destino da interpretação dos textos sagrados, qualquer deles, possivelmente findará na total eliminação da literalidade.
A partir daí, quando assumirá a imaginação, o fim do cristianismo poderá ser idêntico ao dos deuses do Olimpo.

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