A
bíblia judaico-cristã narra diversos fatos sobre a criação do
universo e sobre a história da humanidade.
Do
início dos tempos até um século atrás, a narrativa sagrada era
interpretada literalmente pelos sacerdotes e assim era imposta aos
crentes. Prevalecia, pois, a crença geral de que os eventos bíblicos
aconteceram exatamente como revelados aos homens através do livro
sagrado.
A
literalidade bíblica era considerada tão verdadeira que, em épocas
sombrias, quando a religião cristã, além da espiritualidade do
povo, dominava também a política, sequer se podia contestar os
fatos sagrados, sob pena de tipificação do crime de heresia,
passível de punição mediante tortura e morte pela fogueira. No
mundo moderno, a possibilidade de punição por heresia ainda existe
em regimes teocráticos, como os que ocorrem em países muçulmanos.
Contudo,
com o passar do tempo e o avanço da ciência, muitas das crenças
sagradas foram derrubadas por provas científicas incontestáveis.
Tome-se como exemplo a descrição bíblica da criação do universo
em seis dias, mito contrariado por estudos físico-astronômicos que
datam o universo em mais de quatorze bilhões de anos e a Terra em
mais de quatro bilhões de anos. Em outra exemplo, a mítica criação
do homem a partir do barro e da mulher a partir da costela masculina
foi derrubada pela teoria da evolução de Darwin, posteriormente
ratificada por descobertas arqueológicas e estudos de DNA. A
doutrina religiosa do geocentrismo foi afastada pelos estudos de
Copérnico e, posteriormente, Galileu. Por mais que se façam estudos
científicos, nada se encontra que possa comprovar um evento tão
catastrófico como o dilúvio, que, segundo a bíblia, arrasou o
planeta inteiro. Alagamentos tenebrosos, envolvendo todo o litoral do
planeta, são amparados por estudos geológicos, mas não de todas as
terras do planeta. Um evento cataclísmico ocorrido sessenta e cinco
milhões de anos atrás, antes da existência da humanidade, como a
queda do asteroide que supostamente extinguiu os grandes dinossauros
deixou sequelas na delicada pele da Terra, mas em relação a algo
recente como o dilúvio... nada.
A
partir das evidentes contradições entre a mitologia bíblica e as
descobertas da ciência, surgiu um outro tipo de religioso
judaico-cristão: aquele mais instruído e antenado com as
descobertas da ciência. Não podendo fechar os olhos para a ciência,
nem disposto a abrir mão de sua fé, esse religioso culturalmente
mais desenvolvido adotou um novo discurso: a bíblia nunca poderia
ser interpretada literalmente; seus ensinamentos estão codificados
pelo divino e devem se entendidos de acordo com o seu tempo. Ou seja,
Deus é tão sábio que produziu revelações com palavras cuja
hermenêutica é plenamente adaptável a cada tempo.
Os
modernos religiosos desenvolveram teorias religiosas compatíveis com
a ciência, como o design inteligente. Perfeito. Afinal, um Deus
todo-poderoso é mesmo capaz de realizar algo do tipo.
Claro
que há um problema com essa espécie de abordagem. As possibilidades
de interpretação de um texto são praticamente infinitas. Leitores
diferentes são capazes de extrair de uma mesma redação
interpretações tão díspares que pareceriam oriundas de textos
distintos e conflitantes. A multiplicidade interpretativa é tamanha
que é corrente a afirmação de que, assim que a poesia é escrita
pelo poeta e entregue aos olhos ávidos dos leitores, sua mensagem
oculta não mais pertence ao poeta, mas a cada um dos leitores. A
explicação para tamanha variedade de olhares distintos encontra
fundamento no fato de que a interpretação do texto carrega em si a
historicidade do leitor, ou seja, a experiência de vida do
intérprete.
Transportando
essa constatação para a interpretação do texto sagrado,
conclui-se que, ou ninguém jamais saberá qual a interpretação
mais correta, ou seremos obrigados a confiar a tarefa de
interpretação aos escolhidos por Deus.
E
quem seriam os legitimamente escolhidos por Deus? A quem podemos
confiar essa missão divina? Como seria possível identificá-los?
Como saber que os escolhidos estão realmente afirmando a palavra
"Dele" e não "deles"? Quais os verdadeiros
sacerdotes? Qual a verdadeira religião? Quais os efetivos textos
sagrados?
Os
adeptos das religiões fundadas em textos sagrados teriam que possuir
um outro tipo de fé: a fé no intérprete. Isso implica deixar de
ter fé no divino e passar a ter fé no ser humano que diz falar pelo
divino. Pensando bem, sempre foi assim.
Aliás,
remanesce uma questão ainda mais premente: os textos sagrados ainda
revelam o sagrado, depois de tantas compilações, acréscimos,
traduções, manipulações e reduções?
A
mim parece que algo que gera dúvidas tão intensas não é perfeito
e, se não é perfeito, não é de Deus.
Tampouco
cabe falar, para essa missão hermenêutica, no poder da fé, pois
tal poder não é exclusivo de determinada religião, sendo dividido
igualmente entre as diversas crenças. Todo religioso possui fé
inabalável em seu próprio Deus, em seu próprio sacerdote, em seu
próprio livro sagrado e na interpretação desse livro pelos seus
homens santos. Não há razão alguma para crer mais no intérprete
da Bíblia do que no do Corão ou do livro sagrado de alguma religião
esquecida de um povo perdido de uma ilhota da Polinésia.
Há
uma outra paralaxe a ser considerada quanto ao assunto: a
interpretação mais rústica do texto sagrado, a literal, somente
deixou de ser passivamente aceita por aqueles religiosos mais
educados. De fato, a massa religiosa, a imensa maioria das pessoas
que acreditam nos homens sagrados que comandam os templos, é formada
por pessoas de baixa instrução. Esta massa continua a aceitar os
fatos tais e quais postos na bíblia, ou seja, na literalidade. Basta
comparecer a um culto religioso qualquer para perceber que não há
qualquer esforço significativo do sacerdote para mudar esse cenário.
Ainda
que isso soe ridículo para a elite intelectual, a maior parte dos
religiosos ainda crê que Deus criou o mundo em seis dias, viemos de
Adão e Eva, houve um dilúvio e Noé salvou todos os animais do
mundo num arca de tantos côvados.
A
respeito do dilúvio, abra-se um parênteses para ressaltar que a
bíblia é omissa a respeito de animais que, à época, eram
desconhecidos na Eurásia e no Oriente Médio, como, por exemplo, os
animais endêmicos da América e outras localidades que, então, não
tinham sido descobertas e não constavam dos mapas do mundo
conhecido. O fato é que eles se salvaram, portanto devem ter
embarcado. A propósito disso, é intrigante tentar desvendar como
animais provenientes desses locais chegaram à Arca ainda em tempo de
se salvarem. Afinal, estavam distantes milhares de quilômetros da
região da Palestina e ilhados em locais separados do mundo conhecido
por centenas, às vezes milhares, de quilômetros de mar. Como será
que os macacos prego da América do Sul, os lêmures de Madagascar ou
os cangurus da Austrália chegaram à Arca? Se nadaram um oceano
inteiro, qual seria o propósito de embarcarem, se poderiam enfrentar
o dilúvio a nado?
Quanto
aos religiosos mais instruídos, existem os que resistem à ciência,
como os adeptos do criacionismo.
Há
uma diferença gritante entre acreditar e acreditar cegamente. A fé
cega, de ocorrência extremamente comum ao longo da história, possui
um enorme potencial de prejudicialidade para a humanidade, dela
decorrendo diretamente acontecimentos deletérios como as cruzadas, a
inquisição, os confrontos hindu x muçulmanos na Índia, as
contendas entre católicos e protestantes na Irlanda, a atual guerra
santa dos muçulmanos, a guerra do ocidente contra os muçulmanos, a
guerra da Bósnia, os problemas entre palestinos e israelenses, etc.
Claro,
sempre se poderá dizer que tais eventos não são exclusivamente
religiosos. Pode ser, mas não é menos verdade que o elemento
religioso é crucial para impedir ou retardar soluções
político-diplomáticas pacíficas. Todos os grupos de pessoas
reunidas em busca de poder costumam ser deletérios para a
humanidade, o grupo, porém, que busca esse poder arvorando-se em
representante da voz do próprio Deus será sempre pior. Isso porque,
se é certo que as pessoas tendem a duvidar das intenções de seus
governantes, igualmente é certo que temem duvidar de quem representa
o divino. Por respeito ao divino, participarão de guerras e
sacrificarão a própria vida, como os kamikases japoneses ou os
atuais homens-bomba muçulmanos.
A
fé crítica é menos pior, pois torna o crente capaz de melhor
resistir a comandos evidentemente disparatados de uma vontade divina
supostamente cheia de amor pela humanidade mas que clama por sangue.
É
importante esclarecer que a menção feita aos problemas da fé, cega
ou não, refere-se apenas ao tipo de fé em algum Deus que seja
representado na Terra exclusivamente por uma específica religião,
ou seja, a fé numa religião institucionalizada. A mera fé em Deus
de todos os seres, desvinculada de templos, sem livros sagrados
exclusivos, sem ritos repetitivos e ilógicos, sem a necessidade de
custear prédios e sacerdotes não parece capaz de ameaçar a
convivência pacífica entre os seres humanos.
Todavia,
a fé crítica culmina por criar um religioso que acredita apenas
parcialmente nos dogmas de sua igreja, o que é algo um tanto
paradoxal, mas ainda preferível à cegueira. O religioso crítico
muçulmano, por exemplo, tende a duvidar da promessa de possuir
dezenas de virgens no paraíso, o que dificulta sobremaneira, ou
mesmo impede, o trabalho de convencê-lo a atirar um avião num
arranha-céu. O crente cristão crítico tranquilamente faz sexo sem
qualquer intenção de procriar, com camisinha ou utilizando remédios
anticoncepcionais, e nem sequer pensa em confessar isso ao sacerdote,
não porque tenha algum pudor, mas simplesmente porque não enxerga o
próprio comportamento como pecado, embora a situação viole
diretamente o catecismo católico.
Como
é possível conciliar a existência de cristãos homossexuais com a
doutrina da igreja? Eles existem a partir da religiosidade crítica,
que enfrenta os dogmas de forma racional, porém sem perda de um
milímetro de fé.
Essa
religiosidade crítica, questionadora das verdades de fé
estabelecidas em concílios fechados de homens comuns interessados,
vem ampliando suas bases a partir do elastecimento do alcance da
educação para cada vez mais pessoas.
Com
o tempo, o destino da interpretação dos textos sagrados, qualquer
deles, possivelmente findará na total eliminação da literalidade.
A
partir daí, quando assumirá a imaginação, o fim do cristianismo
poderá ser idêntico ao dos deuses do Olimpo.
continuação: A Bíblia II - Adão e Eva
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