domingo, 9 de março de 2014

Mutações


Encontrei, por acaso, uma antiga colega de trabalho, a quem não via há quase dez anos. Cumprimentei-a efusivamente, mas notei sua aparente frieza. Como éramos muito próximos na época em que trabalhamos juntos, indaguei-a se não estava me reconhecendo. Sua resposta perturbou-me pela sinceridade e coerência: "Eu conheci você, dez anos atrás, hoje não o conheço mais".
Num primeiro momento, uma resposta como essa pode soar algo grosseira, basta, porém, uma breve reflexão, pensar um pouco mais profundamente, para perceber que ela está coberta de razão. De fato, quem permanece a mesma pessoa após dez anos?

Heráclito, o filósofo grego da fluidez, do fluxo incessante de mutabilidades, dizia que um mesmo ser humano não se banha duas vezes no mesmo rio, pois, na segunda oportunidade, já não será molhado pelas mesmas águas, nem será o mesmo homem. A pessoa que, depois de um tempo, entra nas águas do rio que leva o mesmo nome que o anterior, não mais carregará consigo as mesmas convicções e questionamentos que a identificavam no passado. Mesmo fisicamente, praticamente todas as células que compunham o corpo com o qual se banhou a primeira vez terão morrido, sendo substituídas por novas. Então, se o corpo é novo e mente é nova, o que poderia haver de comum entre o antigo ser e o atual?
Sim, minha colega estava certa. Certamente eu não era mais a mesma pessoa que ela conheceu, assim como ela não mais era quem eu achava que ela era. Isso não significa produzir um juízo de mérito sobre quem seria a melhor pessoa, a do passado ou a do presente. Mudanças tanto ocorrem para o bem, como para o mal. Significa apenas que, no momento em que nos reencontramos, após um tempo muito longo, sentíamos quase como se fôssemos estranhos. Caso nos reaproximássemos, seria como se estivéssemos nos conhecendo novamente, deveríamos reaprender sobre nossas qualidades e defeitos, bem como identificar interesses comuns e distintos.
Isso, porém, não se tornou necessário, dado que o reencontro, infelizmente, limitou-se a esse reencontro fortuito, não houve outra ocasião.
Contudo, se, ao contrário do que nos aconteceu, nossa convivência não tivesse cessado em tempo algum, ainda assim seríamos diferentes do que éramos dez anos antes. Contudo, por conta da convivência ininterrupta, teríamos vivenciado as paulatinas mutações e delas teríamos inteiro conhecimento.
A convivência impede a estranheza, evita as surpresas.
Se o tempo é, por uma de suas faces, o remédio que tudo cura, pela outra, gêmea da primeira, é o veneno que mata o mais forte dos sentimentos. Não existe, propriamente, uma diferença entre remédio e veneno, é apenas uma questão de intensidade.
Se ficarmos longe tempo o bastante, esqueceremos nossa própria língua, assim como tudo o que amamos ou que odiamos. Esqueceremos até de nós mesmos, de quem fomos.
Quanto mais o tempo passa, mais tenho a sensação de que aquela criança de que me recordo ter sido jamais fui eu. Cada vez mais difusa a memória, mais similar fica a um sonho, ou mesmo a um pesadelo, do que a qualquer realidade antiga minha compatível com a de hoje. Ainda assim, recordo-me bem desse "eu" que fui em cada época de minha vida e são essas lembranças que fazem a ligação do eu-antigo com o eu-novo e me passam a falsa impressão de que esse "eu" sempre foi o mesmo.
Por vezes tenho a impressão que herdei recordações de um estranho que habitava um antigo corpo que já morreu e que não é o meu. É quase como se, a cada noite dormida, despertasse um novo ser humano com a memória de outro que se foi, muito parecido com aquele que foi dormir, mas um pouco diferente.
Ao fim de um certo tempo, o acúmulo dessas pequenas diferenças gera alguém completamente distinto, mas que carrega o mesmo nome e quase o mesmo corpo e o mesmo rosto. A diferença é tamanha que chego a acreditar que tenho mais semelhanças ideológicas com minhas filhas do que com o menino que fui um dia.
Carrego mais um sentimento de dó do que de saudade daquele menino. Suas lembranças, que herdei, são sofridas. Tento, porém, não culpá-lo, ou às suas circunstâncias, demasiadamente pelo que sou. Muitas oportunidades foram surgindo, muitas esquinas foram dobradas, e em cada uma delas a opção foi feita pelos diversos eu-atual que existiram, alguns muito tempo depois do eu-menino que se foi.
Já que o ser humano está em constante devir, sempre em mutação, indaga-se: é possível algum domínio sobre essas mudanças? Pode a pessoa agir ativamente para se tornar melhor?
São perguntas difíceis para as quais talvez não existam respostas adequadas. O frágil ser humano, diante do mundo, é facilmente solapado em suas pretensões. A vida é muito mais forte do que qualquer pessoa e muitas vezes a empurra por caminhos pelos quais ela jamais pensou trilhar. E isso a modifica independentemente de sua vontade.
Porém, pode-se ao menos tentar atuar de alguma forma para melhorar como pessoa. De que forma? Certamente não existem fórmulas universais milagrosas, como procuram vender os autores de livros de autoajuda. Uma maneira que parece razoável e lógica, aconselhada por pensadores, é se esvaziar de sentimentos negativos. Sentimentos como raiva, a inveja, a mágoa, o sentimento de vingança, a cobiça, a ganância, agem contra a própria pessoa que os nutre.
A vingança bem sucedida não é capaz, nem nunca será, de produzir a mesma paz que se obtém do perdão sincero dado por alguém a quem o magoou.
Outro meio eficaz é adquirir conhecimento, sempre capaz de aperfeiçoar o ser humano. Para muitos, o exercício da caridade e do altruísmo podem ser o caminho. Alguns encontrarão no amor a alguém, na entrega, o melhor jeito de melhorar.
Saber que o ser humano está sempre em mutação oferece um outro consolo: se não é possível consertar todos os estragos do passado, é possível melhorar o seu autor, evitando repeti-los no futuro.
Dentre outras coisas, a mudança pode trazer sabedoria.
É uma esperança muito boa.

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