Encontrei,
por acaso, uma antiga colega de trabalho, a quem não via há quase
dez anos. Cumprimentei-a efusivamente, mas notei sua aparente frieza.
Como éramos muito próximos na época em que trabalhamos juntos,
indaguei-a se não estava me reconhecendo. Sua resposta perturbou-me
pela sinceridade e coerência: "Eu conheci você, dez anos
atrás, hoje não o conheço mais".
Num
primeiro momento, uma resposta como essa pode soar algo grosseira,
basta, porém, uma breve reflexão, pensar um pouco mais
profundamente, para perceber que ela está coberta de razão. De
fato, quem permanece a mesma pessoa após dez anos?
Heráclito,
o filósofo grego da fluidez, do fluxo incessante de mutabilidades,
dizia que um mesmo ser humano não se banha duas vezes no mesmo rio,
pois, na segunda oportunidade, já não será molhado pelas mesmas
águas, nem será o mesmo homem. A pessoa que, depois de um tempo,
entra nas águas do rio que leva o mesmo nome que o anterior, não
mais carregará consigo as mesmas convicções e questionamentos que
a identificavam no passado. Mesmo fisicamente, praticamente todas as
células que compunham o corpo com o qual se banhou a primeira vez
terão morrido, sendo substituídas por novas. Então, se o corpo é
novo e mente é nova, o que poderia haver de comum entre o antigo ser
e o atual?
Sim,
minha colega estava certa. Certamente eu não era mais a mesma pessoa
que ela conheceu, assim como ela não mais era quem eu achava que ela
era. Isso não significa produzir um juízo de mérito sobre quem
seria a melhor pessoa, a do passado ou a do presente. Mudanças tanto
ocorrem para o bem, como para o mal. Significa apenas que, no momento
em que nos reencontramos, após um tempo muito longo, sentíamos
quase como se fôssemos estranhos. Caso nos reaproximássemos, seria
como se estivéssemos nos conhecendo novamente, deveríamos
reaprender sobre nossas qualidades e defeitos, bem como identificar
interesses comuns e distintos.
Isso,
porém, não se tornou necessário, dado que o reencontro,
infelizmente, limitou-se a esse reencontro fortuito, não houve outra
ocasião.
Contudo,
se, ao contrário do que nos aconteceu, nossa convivência não
tivesse cessado em tempo algum, ainda assim seríamos diferentes do
que éramos dez anos antes. Contudo, por conta da convivência
ininterrupta, teríamos vivenciado as paulatinas mutações e delas
teríamos inteiro conhecimento.
A
convivência impede a estranheza, evita as surpresas.
Se
o tempo é, por uma de suas faces, o remédio que tudo cura, pela
outra, gêmea da primeira, é o veneno que mata o mais forte dos
sentimentos. Não existe, propriamente, uma diferença entre remédio
e veneno, é apenas uma questão de intensidade.
Se
ficarmos longe tempo o bastante, esqueceremos nossa própria língua,
assim como tudo o que amamos ou que odiamos. Esqueceremos até de nós
mesmos, de quem fomos.
Quanto
mais o tempo passa, mais tenho a sensação de que aquela criança de
que me recordo ter sido jamais fui eu. Cada vez mais difusa a
memória, mais similar fica a um sonho, ou mesmo a um pesadelo, do
que a qualquer realidade antiga minha compatível com a de hoje.
Ainda assim, recordo-me bem desse "eu" que fui em cada
época de minha vida e são essas lembranças que fazem a ligação
do eu-antigo com o eu-novo e me passam a falsa impressão de que esse
"eu" sempre foi o mesmo.
Por
vezes tenho a impressão que herdei recordações de um estranho que
habitava um antigo corpo que já morreu e que não é o meu. É quase
como se, a cada noite dormida, despertasse um novo ser humano com a
memória de outro que se foi, muito parecido com aquele que foi
dormir, mas um pouco diferente.
Ao
fim de um certo tempo, o acúmulo dessas pequenas diferenças gera
alguém completamente distinto, mas que carrega o mesmo nome e quase
o mesmo corpo e o mesmo rosto. A diferença é tamanha que chego a
acreditar que tenho mais semelhanças ideológicas com minhas filhas
do que com o menino que fui um dia.
Carrego
mais um sentimento de dó do que de saudade daquele menino. Suas
lembranças, que herdei, são sofridas. Tento, porém, não culpá-lo,
ou às suas circunstâncias, demasiadamente pelo que sou. Muitas
oportunidades foram surgindo, muitas esquinas foram dobradas, e em
cada uma delas a opção foi feita pelos diversos eu-atual que
existiram, alguns muito tempo depois do eu-menino que se foi.
Já
que o ser humano está em constante devir, sempre em mutação,
indaga-se: é possível algum domínio sobre essas mudanças? Pode a
pessoa agir ativamente para se tornar melhor?
São
perguntas difíceis para as quais talvez não existam respostas
adequadas. O frágil ser humano, diante do mundo, é facilmente
solapado em suas pretensões. A vida é muito mais forte do que
qualquer pessoa e muitas vezes a empurra por caminhos pelos quais ela
jamais pensou trilhar. E isso a modifica independentemente de sua
vontade.
Porém,
pode-se ao menos tentar atuar de alguma forma para melhorar como
pessoa. De que forma? Certamente não existem fórmulas universais
milagrosas, como procuram vender os autores de livros de autoajuda.
Uma maneira que parece razoável e lógica, aconselhada por
pensadores, é se esvaziar de sentimentos negativos. Sentimentos como
raiva, a inveja, a mágoa, o sentimento de vingança, a cobiça, a
ganância, agem contra a própria pessoa que os nutre.
A
vingança bem sucedida não é capaz, nem nunca será, de produzir a
mesma paz que se obtém do perdão sincero dado por alguém a quem o
magoou.
Outro
meio eficaz é adquirir conhecimento, sempre capaz de aperfeiçoar o
ser humano. Para muitos, o exercício da caridade e do altruísmo
podem ser o caminho. Alguns encontrarão no amor a alguém, na
entrega, o melhor jeito de melhorar.
Saber
que o ser humano está sempre em mutação oferece um outro consolo:
se não é possível consertar todos os estragos do passado, é
possível melhorar o seu autor, evitando repeti-los no futuro.
Dentre
outras coisas, a mudança pode trazer sabedoria.
É
uma esperança muito boa.
Nenhum comentário :
Postar um comentário