Quando
o primeiro ser humano descobriu ser possível trocar bugigangas com
outro ser humano que morava distante, iniciou-se o processo de
integração comercial que hoje chamamos de globalização. Trata-se,
pois, de um fenômeno humano que não é recente, caracterizado pela
construção de teias de interligação comercial e cultural entre as
diversas localidades .
A
rota da seda, séculos antes de Cristo, já era um passo firme em
direção ao aglutinamento das forças econômicas. As caravelas de
especiarias, idem. Nesse sentido, Marco Polo, que seguiu a rota da
seda em direção à China no século XIII, foi um precursor.
O
que hoje usualmente é denominado de “globalização”, constitui,
na verdade, a rápida e crescente aceleração do processo primitivo
de integração que passou a ocorrer a partir do final do século XX
e início do XXI, explicada pela extrema redução nos custos e
aumento na velocidade dos transportes e, principalmente, das
comunicações.
A
integração dos povos a partir dos interesses do comércio, porém,
não se limitou a incrementar as forças meramente econômicas.
Envolveu, ainda, a troca de experiências em elementos políticos,
culturais, enfim, dos diversos conhecimentos e técnicas da
humanidade. Isso porque a necessidade de realizar o comércio pôs os
seres humanos de um determinado povoamento em contatos com outros, de
povoamentos distantes, o que acendeu a natural curiosidade do ser
humano sobre tudo que envolva novidades.
A
partir desse contato, inicialmente com intuito apenas comercial,
houve um crescente intercâmbio de capital e de pessoas, que passaram
a migrar de um local para outro, em princípio timidamente e, depois,
com voracidade.
Todavia,
a palavra moderna para o fenômeno antigo - globalização - adquiriu
um certo glamour, recebendo status de algo, não somente inevitável,
mas também salutar para a humanidade. As questões que se impõem
indagar são: será mesmo benéfica para a humanidade? Quem lucra com
a globalização? Quem perde?
Não
existem respostas seguras para esses questionamentos, donde decorre
imperiosa necessidade de reflexão sobre o fenômeno que aí está,
aparentemente inescapável e que possui implicações severas no
cotidiano de praticamente todas as pessoas.
A
análise de tais questões impõe verificar, antes, se há algum
contraponto à globalização.
Há
e é ainda mais antigo. Trata-se da “localização”. Enquanto a
globalização se preocupa com a construção de artérias entre
todas as localidades do mundo, a localização é seu oposto,
focando-se na construção de laços entre os indivíduos que habitam
a comunidade.
O
ser humano, em princípio, não parece ter evoluído para ser
culturalmente global, no sentido de adotar um comportamento homogêneo
em todos os cantos do planeta. Talvez se possa dizer isso do ser
humano instintual, mas não do cultural. Em cada localidade onde se
estabelece, o ser humano tende a adotar os significados e os valores
da comunidade. A comunidade, desde sempre, foi o centro de construção
das convenções sociais. Essa localização conferia ao ser humano
um senso de pertencimento. Aquele era o seu local, sobre o qual tudo
sabia e, por conta disso, onde podia circular livremente, sem medo de
ser surpreendido por imposições desconhecidas.
Isso,
de fato está mudando com a integração global das comunicações,
principalmente através dos produtos culturais disseminados pela
indústria cultural de massa, como a televisão, o cinema e,
principalmente, nos dias de hoje, a internet.
A
partir do conhecimento da cultura alienígena, o local, o autóctone,
movido por curiosidade e muitas vezes por inveja, comportamento
natural no ser humano, passa a tentar copiar aquele padrão. Esse
movimento de aculturamento se inicia, em geral, pelos rebeldes, que
lançam mão de valores simbólicos de outra cultura como signo de
distinção das outras pessoas do local. Com a massificação dos
novos hábitos, a absorção da cultura estrangeira atinge os
próprios conservadores, como mecanismo de homogeneização ao padrão
local, agora modificado pelo efeito globalizador da comunicação de
massa.
Ainda
que se admita que a mudança cultural para um padrão estabelecido de
cima para baixo exista, seria essa alteração saudável para o ser
humano? Qual o custo para o indivíduo de perder a referência local
de significado e de valor?
Aparentemente,
o custo é a perda de identidade com o próximo e, consequentemente,
a desagregação do tecido social. Se não me identifico com meu
vizinho, por que manter com ele qualquer relacionamento? Melhor
trancar-me em casa, acessar a rede social e manter relacionamentos
virtuais com aqueles cujos valores se identificam com os meus.
E
a longo prazo? Será possível que o custo disso seja um desabamento
psicológico acarretado pela solidão em meio à multidão? Afinal, o
ser humano necessita, ou não, de contato físico uns com os outros?
Tocar, abraçar e beijar, atos cuja prática a virtualidade impede,
são necessários ou mesmo possíveis num mundo globalizado?
A
necessidade do ser humano por uma identidade cultural local é
tamanha que, num movimento em sentido contrário ao da globalização,
recrudescem nas grandes metrópoles ações comunitárias
multiculturalistas que lutam pela preservação do acervo histórico
das tradições culturais locais. Aliás, as grandes metrópoles cada
vez mais apresentam feições semelhantes umas com as outras,
agasalhando valores simbólicos muito parecidos, assim aproximando-se
do conceito de não-lugar, ou seja, lugares cosmopolitas destinadas
ao fluxo, ao trânsito, no qual as pessoas não possuem ligações
culturais umas com as outras, justificando sua presença no local
apenas por alguma necessidade transitória.
A
globalização das comunicações causou um dilúvio de informações
e não há um Noé para construir uma arca de salvação. O
afogamento é inevitável para todos que não aprenderem a nadar
nesse mar tempestuoso de informações desarrumadas.
Nesse
oceano de informações atomizadas e não organizadas, quem constrói
a agenda das discussões públicas é a mídia que, por sua vez,
também está globalizada e atende aos interesses da elite global.
Nesse sentido, somente constarão da pauta de notícias, das
manchetes, os assuntos que atendam aos interesses das corporações.
E as corporações não possuem mais pátria ou qualquer sentido de
pertencimento. Bauman (Globalização: as conseqüências humanas.
1999) pontifica que está criada a figura do “proprietário
ausente”, ou seja, aquele cujas posses e interesses não mais
possuem qualquer vinculação com territórios e seus respectivos
agentes políticos.
Há
dúvida se os governos dos Estados-nação ainda possuem poder
político de fato ou se já foram completamente subjugados pelas
forças econômicas. Num episódio como a invasão do Iraque pelas
forças americanas, não é possível definir com clareza quais foram
os interesses realmente determinantes da ação estatal. Teria sido o
fardo do homem branco de disseminar os sentidos de democracia,
liberdade e justiça? Ou o interesse pelo petróleo e pelas obras de
infraestrutura? Ou, ainda, algo mais sinistro? Mesmo em ações
atribuídas a forças não estatais, como as terroristas, pairam
dúvidas sérias sobre os interesses econômicos que a elas estão
ocultos. O que estaria por trás da derrubada das torres gêmeas? É
possível honestamente imaginar que possui natureza religiosa? Teria
sido ação terrorista de fato ou uma ação de bandeira falsa? Em
outro exemplo, seriam Obama e Putin os verdadeiros protagonistas do
problema da Ucrânia ou não passariam de títeres ou drones
controlados à distância segura por poderosos anônimos?
Reconhecido
que a mídia obedece a prioridades determinadas pela elite
globalizada, que por sua vez materializa, como nos fala Bauman, a
figura do proprietário ausente e totalmente apático aos interesses
locais, parece claro que suas manchetes refletirão esses interesses,
sendo ingenuidade presumir uma autêntica liberdade de imprensa.
Tem-se,
pois, que a agenda cultural e política imposta pela mídia,
reverberada pela voz da população, põe questões sob discussão
que dificilmente encontra eco nas verdadeiras necessidades públicas.
Disso decorre que o povo muitas vezes busca avidamente por respostas
e soluções para demandas que são vendidas nas manchetes como
essenciais e urgentes, mas que na realidade são secundárias ou
mesmo ilusórias.
Há
um antigo ditado que diz que a maior mentira do diabo é fazer crer
que ele não existe. Ou, numa versão mais intelectual, a partir de
Bauman (idem), deixar de formular as questões certas ou responder ao
tipo errado de questões ajuda a desviar os olhos das questões
verdadeiramente importantes. Algo como dois inteligentes antílopes
discordando sobre a qualidade da elegante travessa em que serão
servidos aos leões.
Talvez
seja melhor desviarmos os olhos do planeta inteiro e olharmos um
pouco para o nosso vizinho.
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