A
elite de todas as sociedades que foram ou são consideradas mais
adiantadas no aspecto civilizatório, historicamente enriqueceu e foi
alçada ao poder de forma violenta e não sustentável, ou seja,
através da exploração irracional das riquezas naturais e humanas.
Essa
avidez inevitavelmente conduziu à escravidão (ou algo similar) e à
exaustão e devastação das riquezas naturais em cada local por onde
chegava o explorador humano.
No
passado, quando confrontada com essa realidade, ou seja, com a
exaustão local, a elite simplesmente expandia seus horizontes
exploratórios, seja através de caravanas para lugares distantes ou
por meio de viagens ultramarinas, conquistando novos territórios e
submetendo populações antes desconhecidas.
A
primeira elite a tentar globalizar seu poderio econômico, a que
inaugurou esse modelo, foi a europeia. Durante aquele momento
histórico, porém, o capital era sedentário, ou seja, fixava-se no
local onde ocorreria a exploração do ser humano e da natureza.
Ainda que fosse possível a existência da figura que Bauman denomina
de “proprietário ausente”, ou seja, do investidor que não
permanecia no local do investimento, o dono da riqueza estava
submetido às vicissitudes locais, tendo que lidar, pessoalmente ou
através de prepostos a seu mando, com as situações locais que
ocorriam em sua fábrica ou em sua fazenda.
Ocorre
que, atualmente, não existem mais fronteiras desconhecidas que
salvem o capital da insustentabilidade local. Não há para onde
enviar novas caravelas. O planeta, enquanto território a ser
explorado, foi integralmente conquistado. Então, as caravanas e as
viagens oceânicas não constituem mais o meio adequado para a
expansão da voracidade humana.
A
desmesurada cobiça do capital, porém, não arrefeceu, tornando-se
necessário descobrir um novo meio de prosseguir com o ímpeto
exploratório. Experiências históricas, do tipo vivido pelos
antigos habitantes da ilha de Páscoa ou pelos astecas, evidenciam
que a percepção do desastre jamais foi capaz de tornar a elite mais
sábia, mais cuidadosa. Pelo contrário, são pródigos os exemplos
históricos de que as sociedades humanas sempre caminharam
impassivelmente para a aniquilação evidente. Então, para onde ir?
A
conquista do espaço interplanetário ou interestelar, por ora, é só
um devaneio. A solução haveria de estar aqui mesmo, nesse planeta
agora tornado uma pequena aldeia. A genial (ou seria diabólica?)
resposta, sublimemente detectada por Baumann, foi a modificação do
movimento até então natural do capital. Antes sedentário, passou à
condição de nômade.
A
elite percebeu que, embora não existam mais novos territórios a ser
conquistados, as condições econômicas e sociais dos diversos
territórios autônomos são abissalmente diferentes. Alguns
encontram-se em condições mais propícias à exploração do que
outros, na medida em que a sua necessidade, ou desespero, é superior
à de outros.
Desse
modo, Zigmunt Bauman defende que o capital, antes sedentário, passou
a ser nômade com o advento da globalização.
Com
o devido respeito pelo ilustre pensador polonês, cujas obras admiro
profundamente, discordo apenas um pouco dessa visão. Creio que o
nomadismo sempre esteve no espírito das iniciativas humanas em busca
de poder e riqueza.
Nesse
sentido, penso que sempre foi e continua sendo o enfoque principal do
movimento da riqueza, antes e depois do capitalismo. De fato, o que
mudou radicalmente foi a velocidade em que praticado esse nomadismo.
Por
motivos puramente técnicos, o capital se viu aprisionado no local
durante séculos, uma vez que a produção e os ganhos decorrentes
estavam plenamente vinculados ao solo (fábrica, fazendas,
empregados, etc). A causa do tectonismo do capital era, então,
involuntária.
Entretanto,
a dinâmica do avanço tecnológico, inicialmente aos poucos e
paulatinamente de forma mais veloz, vai conferindo ao capital os
meios para escapar de sua prisão de imobilidade, primeiro com
caravanas, depois, com caravelas, então com aviões, até que logrou
alcançar a velocidade da luz, com as fibras óticas e o advento da
interligação dos computadores do mundo.
Essa
libertação espacial ainda proporcionou uma outra possibilidade ao
dono do capital, muito importante para compreender a política dos
dias atuais, que é a possibilidade de investir em projetos ou
títulos longínquos, antes simplesmente desconhecidos dado o
distanciamento.
A
partir dessa possibilidade, a briga do capital foi para libertar-se
das amarras da legislação local. Haveria, portanto, de ser
popularizada a ideia de que as legislações dos países, sendo
agradáveis ao capital, ou seja, tornando menos rígidas as regras
para a entrada e, principalmente, a saída do fluxo monetário,
possibilitaria o enriquecimento do país e de seu povo. Tudo isso
dito em nome da modernidade, da globalização e do avanço social. O
empreendimento foi um sucesso.
Não
sou economista, mas arrisco dizer que o pontapé inicial na
empreitada da desregulamentação do capital iniciou-se com Bretton
Wodds, em meados da década de 1940, e consolidou-se provavelmente
com o neoliberalismo de Reagan e Thatcher.
Em
pouco menos de meio século, um espirro histórico, virtualmente
todas as legislações dos países do mundo foram alteradas e
passaram a permitir o nomadismo do dinheiro, pavimentando a estrada
do que hoje denominamos globalização.
Como
adverte Baumann, a globalização é direito concernente
exclusivamente ao capital especulativo. O chão da fábrica e o povo
continuam sob o jugo da “localização”, que é, aliás, um
requisito essencial para o sucesso da globalização.
Não
é possível imaginar um sucesso tão estrondoso para o atual
movimento especulativo financeiro num cenário no qual o trabalhador,
e não somente o capital, pudesse escolher o território onde colocar
a sua mão-de-obra à disposição. Esse é o horror e o pesadelo da
elite financista, muito bem afastado pelas políticas imigratórias
altamente restritivas dos países mais ricos.
Hoje,
os Estados são reféns dos especuladores. Qualquer ameaça à livre
movimentação do dinheiro implica imediata fuga para um território
livre, com os riscos inerentes à fuga de capital, mais ou menos como
ocorreria num banco no qual a maioria dos correntistas resolvesse,
repentinamente, sacar os valores depositados. O banco fatalmente
quebraria.
O
atual modelo exploratório, em princípio, é capaz de se sustentar
até a exaustão total da natureza e o consequente aniquilamento
humano, pois o movimento do dinheiro por territórios diferentes em
momentos distintos, em tese, permite a criação de flutuações
locais ou ondas de carência que, ora atrairão, ora repulsarão, o
capital.
Assim,
os governos nacionais, de gerentes dos próprios sistemas econômicos,
passaram à condição de refém dos interesses dos conglomerados
financeiros, que, agora, sequer estão preocupados com a área
produtiva. O que importa agora são os juros que eventualmente possam
ser ganhos no que eles denominam de "investimentos", papéis
que, frequentemente, não estão vinculados à fabricação de sequer
um alfinete.
Ocorre
que o principal instrumento de desenvolvimento de uma sociedade é a
economia, fonte da riqueza nacional, donde decorre, como pontifica
Bauman, que a política se encontra quase que totalmente esvaziada de
seu poder real. E esse vazio há de ser preenchido por alguma outra
pauta política. Assim, o discurso político se volta para questões
egoístas e concernentes, não à saúde da sociedade, mas aos
indivíduos que a compõem em sua dimensão atomizada. Cai-se,
portanto, no patrimonialismo puro (corrupção), em benefício dos
próprios políticos, e no aprofundamento dos abismos existentes nos
discursos antagônicos em relação a questões importantes, como
racismo, aborto, homofobia e outros que são os assuntos que pautam
as discussões públicas atualmente. Tais questões saem de uma
dimensão racional de análise do bem comunitário e resvalam para a
vala comum do discurso do ódio e do segregamento.
Importante
ainda ressaltar que esses valores atomizados são de certa forma
homogêneos em torno do planeta, o que aponta para uma possível
explicação para a coincidência nas pautas reivindicatórias em
torno do mundo, como nas chamadas "primaveras".
É
claro que o esvaziamento do conteúdo efetivamente político da
discussão pública não se dá sem a colaboração preciosa de
valores (ou desvalores) que foram agregados paulatinamente na mente
do povo, principalmente através da indústria do entretenimento,
como a apreciação do outro sob a ótica dos objetos que possui e o
terror da insegurança pública superdimensionada. Isso, porém, é
assunto para outro momento.
Por
tudo isso, infelizmente, ao menos no momento, não se verificam as
condições políticas globais necessárias à domesticação e
enquadramento civilizatório do capital. Por ora, os indicativos são
de que a acumulação absolutamente desnecessária e irracional da
riqueza por uma parcela ínfima da população (menos de um por cento
concentra cerca de noventa por cento da riqueza) nos conduzirá ao
desastre.
Aparentemente,
estamos condenados a repetir a ilha de Páscoa.
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