O
capitalismo visto em sua face atual, bem como o ideário econômico
que lhe dá sustentação, parece, por vezes, incompreensível para
as pessoas comuns, como eu.
É
isso mesmo, é incompreensível de fato e não é à toa, mas
propositalmente, para passar a impressão de que as medidas
econômicas, privadas ou públicas, são adotadas com o nobre
objetivo de atender ao bem comum.
Algo
como o famoso "deixar o bolo crescer para depois dividir".
Tudo isso é falso como uma nota de três reais.
As
teorias econômicas modernas e pós-modernas possuem um único
objetivo: produzir uma justificação teórica, acadêmica, para a
acumulação de mais riqueza por aquele que já é rico ou, no
limite, para proteção dessa riqueza contra perdas.
A
ideia central que justifica a economia é muito simples e os jargões
econômicos e o linguajar difícil são meros artifícios retóricos,
sofismáticos, que buscam dar ares de cientificidade à fraude
econômica perpetrada em desfavor da quase totalidade da humanidade.
Nesse
ponto devo ressaltar que não sou economista. Estou aqui exercitando
exclusivamente a minha intuição.
A
ideia central é essa: o único produtor de riqueza é o trabalho,
através da transformação da natureza; a riqueza total é uma só,
cujo valor, dividido por um arbitrário número, é representado pela
moeda; a quantidade de moeda somente pode ser expandida se houver
mais riqueza a justificar a expansão; se houver acumulação
excessiva, o sistema falha por conta da ausência de dinheiro em
circulação; se houver expansão da moeda sem expansão da riqueza,
o sistema falha em virtude da inflação; inflação é somente a
relativa à expansão monetária sem lastro na riqueza; não existe
inflação por demanda, cuja alta de preços deve ser acomodada pelo
mercado.
Essa
ideia simples de economia real, a meu ver, é deturpada para dar
lugar aos alicerces da economia pretendida.
Para
entender essa ideia central, deve-se, inicialmente, lembrar que o
sistema econômico planetário é fechado, ou seja, não existem
espaços a ser conquistados, novas fronteiras a ser abertas.
Marte
ainda está muito longe e desabitado e Vênus é muito quente e
abafado. Não será possível inaugurar um banco nesses planetas,
então, só existe mesmo o nosso planeta a ser considerado na
economia, que é, pois, um ambiente fechado.
Também
deve-se recordar que hoje em dia as economias locais são
completamente conectadas umas com as outras.
A
partir dessa ideia de sistema fechado, tome-se por hipótese um mundo
com cem pessoas e que cada uma delas tenha uma riqueza equivalente a
cem reais. Assim, o total de moeda circulante é de dez mil reais.
Esse é o total da riqueza mundial em nosso mundo imaginário.
Nessa
hipótese, a renda per capita é também igual a cem reais. Nesse
mundo imaginário, não existe limite legal para a acumulação de
riqueza, sendo possível supor uma situação em que apenas uma das
cem pessoas, através de trabalho e negociações, consiga acumular
trinta por cento da riqueza, depois cinquenta.
Nesse
ponto, o mercado estará em dificuldades, negociando apenas metade do
que era possível negociar antes, pois o dinheiro em circulação foi
reduzida à metade.
Finalmente,
o nosso sortudo alcança acumular todos os dez mil reais, deixando os
outros e, por consequência, todo o nosso imaginário sistema
fechado, sem dinheiro algum. Nessa hipótese, o capitalismo do nosso
mundo imaginário entraria em colapso total, naufragaria e conduziria
todos, inclusive o único rico, à catástrofe.
Conclusão:
a acumulação ilimitada é prejudicial ao sistema.
O
curioso é que a concentração de riqueza não alteraria em nada a
renda per capita, que continuaria a ser de cem reais, o que
demonstra que a função das médias econômicas é mascarar a
realidade, conferindo à ignomínia a aparência de melhoria na
justiça social.
Quando
estou ao lado de alguém com dois metros, na média tenho um metro e
oitenta, o que em nada estica os meus um metro e sessenta.
Claro,
alguém poderia argumentar que a acumulação do exemplo é
impossível, já que o capitalista, dono dos dez mil reais,
precisaria comprar alguma coisa (matéria prima, alimentos, etc).
Primeiro,
é bom esquecer a matéria prima, pois o capitalista deixará
imediatamente de produzir tão logo perceba que não existem mais
compradores. Ele não ficou rico à toa, ele não é bobo, ele é o
lobo do homem.
Segundo,
quanto às necessidades do rico, o dinheiro necessário para a
própria sobrevivência é insignificante se comparado à grande
fortuna acumulada. Para provar isso, saiamos do mundo imaginário
para um passeio pelo mundo real.
Presumindo-se
que uma família abastada de quatro pessoas, no mundo real, precise
de, digamos, dez mil reais mensais para sobreviver, imaginemos alguém
com uma fortuna de cinquenta bilhões de reais. O dinheiro necessário
por mês para a sobrevivência dessa família milionária equivale a
uma fração infinitesimal de sua fortuna. Esse bilionário precisará
comprar alimentos e outros gêneros de necessidade por cerca de
quatrocentos e dezessete mil anos para recolocar toda a sua fortuna
no mercado. Ou seja, quase quinhentos mil anos sem preocupação com
a sobrevivência.
É
claro que não considerei outras necessidades básicas, como trocar
de carro todos os anos, reparos no iate, hélices novas para o
helicóptero e viagens internacionais duas ou três vezes por ano
pelo menos. Aí fica mais preocupante. Talvez a fortuna não dure
tanto, só uns cem mil anos, sei lá a quantas anda o custo de uma
hélice nos dias de hoje...
E
estamos aqui exemplificando com uma pequena fortuna, já que a soma
total da riqueza do mundo, hoje, em 2014, é estimada em duzentos e
trinta e um trilhões de dólares. Esse é, em princípio, todo o
dinheiro do mundo.
No
mundo real, portanto, seriam necessários milhões e milhões de anos
para que uma pessoa, acumulando toda a riqueza, a devolvesse em forma
de consumo. Nesse tempo, talvez os dinossauros ressurgissem e nossos
problemas econômicos fossem extintos.
Voltando
ao nosso sistema fechado imaginário e utilizando a mesma proporção
de gasto mensal da vida real, o nosso bilionário, com riqueza total
de dez mil reais, ou seja, cerca de quatro mil e cem dólares,
gastaria por mês menos de um milésimo de centavo de dólar e
levaria as mesmas centenas de milhares de anos para recolocar sua
fortuna no mercado. Fora, é claro, as hélices...
Portanto,
a ideia de que o sistema capitalista se mantém em virtude das
necessidades aquisitivas do milionário não se sustenta.
Voltemos
ao cenário de catástrofe capitalista decorrente da acumulação
conduzida ao extremo. Isso seria possível ocorrer no mundo real?
Bom,
no cenário aqui montado, temos a concentração de toda a riqueza
nas mãos de uma pessoa em cem, ou seja, dez porcento da população
detendo toda a riqueza. Na vida real, a concentração de renda
aparentemente vai ocorrer em percentual ainda menor do que no nosso
mundinho da imaginação. Ela ainda não é total, sendo, mesmo
assim, bastante preocupante. Por enquanto, a fatia mais rica somente
abocanhou cinquenta porcento da riqueza total. O esforço para
abocanhar a outra metade, porém, segue firme e incansável. Afinal,
as hélices...
De
fato, em janeiro desse ano, o Instituto Oxfam, entidade que se dedica
a buscar soluções para enfrentar a pobreza mundial, divulgou,
durante o Forum Econômico Mundial de Davos, que as oitenta e cinco
pessoas mais ricas do mundo possuem riqueza maior do que toda a
metade mais pobre da população do planeta (01). É isso mesmo.
Oitenta e cinco pessoas possuem mais riqueza do que o somatório do
patrimônio de três bilhões e quinhentas mil pessoas somadas.
Em
outras palavras, em todo um mundo habitado por três bilhões e meio
de pessoas, zero, vírgula, zero, zero, zero, zero, zero, dois
porcento da população (0,000002%) detém metade da riqueza.
Além
disso, o instituto ainda revelou que um porcento da população do
mundo, cerca de setenta milhões de pessoas, controla mais da metade
do patrimônio mundial. É como se houvesse um pequeno país em algum
lugar do mundo, cercado por um fosso e protegido por altos muros de
rocha, cujos habitantes fossem todos bilionários e de lá
controlassem as cordinhas das marionetes que se apresentam no
restante do mundo. É por isso que são ricos: têm muito trabalho
para controlar quase quatro bilhões de marionetes.
Porém,
percebam que esse um porcento da fatia populacional detém metade da
riqueza se considerada a população total do planeta. Caso
considerada apenas a metade mais pobre, esse grupo possui riqueza
equivalente a sessenta e cinco vezes o patrimônio dessa metade mais
pobre.
Já
escrevi um minúsculo texto no blog sobre a concentração de
riqueza, aqui:
http://marciovalley.blogspot.com.br/2013/10/a-distribuicao-da-riqueza.html.
E
o que acontece na vida real quando o meio circulante começa a sumir
do mercado? Quando o dinheiro permanece meramente escritural,
guardado em investimentos que não guardam qualquer relação com a
atividade produtiva?
Bom,
grosso modo, o que ocorre são as crises econômicas que assolam o
planeta de tempos em tempos, como a que houve em 2008. O capitalismo,
porém, não pode parar. Então, os governos retiram dinheiro dos
contribuintes, “salvam” os bancos particulares da quebra (pelo
bem do povo) e os bancos centrais emitem dinheiro, gerando inflação.
É
bom lembrar que, em princípio, a iniciativa privada pressupõe o
risco do negócio, em cujo nome os ricos se dão o direito à
acumulação. Todavia, na hora do aperto, eles necessitam ser
“salvos” pelo dinheiro do povo.
Esse
dinheiro novo vai para o mercado, é igualmente sugado pelos
bilionários, novamente fica-se com o problema da falta de dinheiro.
Nova quebradeira, novo desembolso dos contribuintes, emite-se moeda
novamente e essa ciranda não vai terminar nunca.
Ocorre
que, para essa fatia de um porcento da população continuar
acumulando cada vez mais, ficando cada vez mais rica, e ainda assim
ser possível ao capitalismo continuar a caminhar, há um elemento
indispensável: a fome, a miséria e a pobreza de mais da metade da
população.
São eles, os pobres,
com sua mão-de-obra barata, com suas necessidades de serviços
públicos não atendidas, com suas doenças não curadas, com sua
parca ou nenhuma alimentação, com a mortes de suas crianças, são
eles, a um só tempo heróis e vítimas, que garantem o excedente de
dinheiro que vai para o bolso dos bilionários.
Se
os bilionários fossem um pouco menos bilionários, ainda assim
seriam ricos e não existiria pobreza no mundo, mas... quem se
importa? Não é só pelas hélices, diriam os hipotéticos
equivalentes bilionários dos black blocks, os golden blocks, em suas
manifestações... existem os iates para reparar.
E
há algo que acrescenta à maldade uma pitada de insanidade: é
possível imaginar uma economia que distribua a riqueza, elimine a
pobreza e, ainda assim, permita a manutenção e o surgimento de
pessoas ricas. Trata-se do sistema de "economia natural" ou
de "economia de moeda livre" sugerido pelo comerciante
alemão, teórico economista, ativista social e anarquista Silvio
Gesell (1862-1930), sobre o qual já escrevi aqui no blog. Leia aqui:
http://marciovalley.blogspot.com.br/2013/01/um-sistema-economico-natural.html.
O
capitalismo pode ser um sistema econômico que veio para ficar e pode
ser que dê certo. Porém, não pode possuir a ampla liberdade que
atualmente goza.
Não
existe nenhum sentido lógico ou racional a justificar que a
preocupação com a própria sobrevivência ou dos familiares atinja
centenas de gerações no futuro.
O
nosso estágio civilizatório, de alta tecnologia e um conhecimento
inimaginável poucas décadas atrás, deveria, segundo penso, ter
chegado ao ponto de compreendermos que a ninguém deveria ser
permitido ficar bilionário, simplesmente porque ninguém possui esse
valor individual.
Não
há trabalho especial ou iniciativa privada que torne uma pessoa tão
merecedora assim. Nenhum ser humano deveria valer o equivalente a
milhões de semelhantes. No limite, esse enriquecimento não deveria
ser transmitido totalmente por direito de herança.
A
possibilidade de enriquecimento infinito, sem limites, de tão
daninho, degenera o próprio sistema que o autoriza e conflita com o
processo civilizatório e com a dignidade da pessoa humana.
Seja
através da limitação ao direito de herança, seja através da
imposição de pesados impostos sobre as grandes fortunas, e para o
bem do próprio capitalismo, deve ser posto um fim a esse tempo de
irracionalidade no qual o medo do futuro se prolonga para a
eternidade e justifica o enriquecimento sem fim.
De fato está em acordo com o que você defendeu em nossa conversa. Penso que não podemos desprezar que a maior parte de toda a riqueza produzida e vagas de empregos geradas, são oriundas do segundo setor. Setor esse que é motivado pelo lucro. Penso na individualização do ser e entendo que cada um tem seus anseios, desejo e necessidades. Tendo isso considerado, não posso mensurar o direito de determinada pessoa comprar um iate ou porque não trocar as hélices de seu helicóptero? Se retirarmos o o desejo do lucro por parte dos empregadores, só lhes restarão os ônus e os riscos do negócio. com isso, que razão teria o indivíduo para investir em um novo empreendimento e gerar mais empregos? Não cabe ao Estado ceifar tal direito, porém deveriam haver políticas fiscais justas e com taxações proporcionais à riqueza do indivíduo ou de determinado grupo. Não acho que a sociedade esteja preparada filosófica, ética e moralmente para um modelo como o proposto por Marx. Porém, acho bonito a paixão e a harmonia nesse discurso defendido por muitos. Acho que ele seria facilmente aceito em sociedades como as aldeias indígenas (antigas) e no paraíso prometido por Jesus. (coisa essa que é subjetivamente utópica) E sobre a política econômica da moeda livre, há muito oque ser aproveitado neste pensamento. Quando se refere a criação de uma moeda lastreada num bem básico de valor constante e com uma diminuição progressiva do valor de face de uma moeda estagnada. Mas não concordo que devesse haver a descaracterização de fronteiras e redução da participação reguladora do Estado. Acho que o caminho ideal seja uma economia mista, incentivando a produção e valorizando o empreendedor, com o Estado taxando proporcionalmente todas as riquezas e concedendo incentivos fiscais aos empresários que colocarem seus investimentos para a produção de bens reais e geração de empregos. Quanto ao que conversamos sobre a estatização dos setores de interesses estratégicos, penso que o Estado deveria ter participação efetiva na tomada de decisões de empresas que detenham licitações e prestem serviços nesses segmentos. (energia, minério, transporte, comunicação) e limitar o lucro destes serviços, sem subsídios e sim com a mera ideia de um limitador de lucro, para não vermos empresas com um lucro de 300% (custo repassado ao consumidor) Esta eu acho que seriam as mudanças necessárias no atual sistema. O sistema capitalista carece atualmente de políticas reguladoras mais efetivas, mas sabe quando eu acho que isso ocorrerá? Nunca! Pois acredito que o dinheiro é corrompedor e que é muito mais fácil você corromper alguém que difundir algum novo ideal. "O homem é o lobo do próprio homem." já dizia Thomas Robbes... E sem citarmos que uma eventual futura compreensão por parte expressiva da sociedade, passaria primeiro por uma reforma educacional, moral e cultural (esta última, mais por parte do trabalhador). Então se formos realistas, o capitalismo é o sistema mais "humano" possível.
ResponderExcluirpor Anderson Casado.
Obrigado, Anderson, pelo comentário lúcido e inteligente. Já escrevi uma resposta um pouco maior no Face. Abração. Marcio Valley.
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