Segundo
o pensamento do filósofo italiano Antonio Gramsci, a aquisição de
cultura pelo indivíduo é um modo de organização interior que
objetiva a construção de uma consciência superior, único caminho
para a compreensão de si e do mundo no qual se encontra inserido o
ser humano.
Gramsci
trata da cultura que se encontra num degrau mais elevado do que a
simples frequência e conclusão do ensino formal, mesmo de nível
superior, que é aquela que proporciona o contato pessoal com
pensamentos variados de complexidade mais elevada e integrantes das
diversas artes e ciências humanas. De fato, não é incomum conhecer
pessoas portadores de diploma em curso de nível superior que,
entretanto, demonstram, não somente uma incapacidade relativa de
expor ou compreender pensamentos, falados ou escritos, como também
um abissal desconhecimento dos fatos da história, da civilização e
do mundo, situação incompatível com uma escolaridade dita "de
nível superior".
Essa
incongruência se explica se entendermos que o principal objetivo do
ensino formal, já há tempos, é a formação de mão-de-obra para o
mercado, objetivo cuja atratividade é a promessa, nem sempre
cumprida, de possibilidade de incremento salarial e de ascensão
social. Assim, a educação formal pouco se inclina para o
aperfeiçoamento das relações sociais, interpessoais.
Mesmo
nos poucos exemplos que demonstrariam o cumprimento da promessa da
educação formal, representados pelo acesso de poucos a emprego e
renda dignas capazes de efetuar o resgate da pobreza e da miséria,
não se trata, nem de acaso, nem de inevitabilidade. Trata-se de
sucesso num propósito pensado e planejado, que é a construção de
exemplos individuais de superação que sejam, eles próprios,
replicadores e defensores da promessa e, assim, do sistema como um
todo.
Apresentados
como modelos de superação de toda e qualquer dificuldade, são
fiadores da validade da promessa e fortalecem a noção de mérito e
de esforço individual, imprescindíveis para a manutenção do
estabelecido, ou, dito de outro modo, para que as coisas permaneçam
como estão e reduzindo a pressão sobre o alcance da percepção de
que o verdadeiro valor a ser observado numa civilização é a
prevalência do bem comum, da melhoria social enquanto agrupamento.
Valoriza-se, assim, a ideia de meritocracia, sistema que proporciona
a falsa impressão de que o sucesso de uns poucos é possível aos
demais bilhões de pessoas. Mais ou menos como se fosse possível a
qualquer jogador de futebol, pelo mero talento e esforço pessoal,
alcançar o status de Pelé ou de Maradona.
A
renovação da promessa suaviza as tensões sociais através de uma
esperança fadada ao fracasso para a imensa maioria dos humanos. A
paz social, por esse meio, é garantida pela esperança de acerto na
loteria meritocrática.
A
ilusão de mérito recompensado é disseminada por aqueles poucos que
lograram ser excluídos da miséria, os integrantes da classe média,
que, inscientes do próprio papel e significado, esforçam-se por
manter o próprio status, temerosos de retornar à miséria. Por
conta disso, colaboram com a propaganda, vangloriando-se dos
discutíveis méritos pessoais e fornecendo o próprio exemplo como
significativo do valor do sistema. Esses "modelos de superação"
auxiliam no esquecimento dos excluídos, considerados apenas pessoas
sem o valor pessoal necessário para sair da lama.
Contudo,
não há mérito pessoal se, na origem (tempo, local e família), as
condições são distintas.
Essa
condição de ausência de estímulo para a aquisição de cultura e,
consequentemente, sem a conquista da noção histórica de como se
travam e se desenvolvem as relações de poder em seus aspectos macro
e micro, ou seja, sem a compreensão de que os fatos do passado,
remoto e recente, são o fio condutor das ocorrências do presente, a
tarefa de dissecar os fatos sociais e políticos capazes de
influenciar a própria vida e a vida do grupo social, para melhor ou
para pior, aproxima-se da impossibilidade.
A
ausência de uma formação cultural adequada implica o processamento
das informações como recebidas, em sua natureza bruta, sem a
percepção do substrato em que foram criadas e dos interesses que
nelas subjazem.
Quando
se torna praticamente unânime a opinião de que aos detentores do
poder não interessa um povo educado, isso não decorre de se
reconhecer que a educação formal fornece, ela mesma e por si só,
capacidade crítica ao povo, mas sim de que a educação formal, como
uma droga mais suave em relação à mais pesada, é a porta de
entrada para a inebriante cultura mais elevada que capacitará a
massa a pensar.
A
educação formal possibilita, aos interessados na própria
construção cultural, o acesso aos primeiros elementos dessa
capacitação, daí sua inegável importância, embora carente de
profundas adequações que coloquem o objetivo humanístico acima das
necessidades mercadológicas.
Evidentemente,
o acesso a essa cultura mais elevada e emancipatória não interessa
àquele pequeno percentual da população mundial cujo poder e
riqueza advém, justamente, da incapacidade crítica da massa.
Essa,
ao fim e ao cabo, é a verdadeira batalha a ser travada.
No ponto, Marcio. Fez barba, cabelo e bigode.
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Ninguém