terça-feira, 16 de setembro de 2014

Gramsci, ensino formal e cultura


Segundo o pensamento do filósofo italiano Antonio Gramsci, a aquisição de cultura pelo indivíduo é um modo de organização interior que objetiva a construção de uma consciência superior, único caminho para a compreensão de si e do mundo no qual se encontra inserido o ser humano.

Gramsci trata da cultura que se encontra num degrau mais elevado do que a simples frequência e conclusão do ensino formal, mesmo de nível superior, que é aquela que proporciona o contato pessoal com pensamentos variados de complexidade mais elevada e integrantes das diversas artes e ciências humanas. De fato, não é incomum conhecer pessoas portadores de diploma em curso de nível superior que, entretanto, demonstram, não somente uma incapacidade relativa de expor ou compreender pensamentos, falados ou escritos, como também um abissal desconhecimento dos fatos da história, da civilização e do mundo, situação incompatível com uma escolaridade dita "de nível superior".

Essa incongruência se explica se entendermos que o principal objetivo do ensino formal, já há tempos, é a formação de mão-de-obra para o mercado, objetivo cuja atratividade é a promessa, nem sempre cumprida, de possibilidade de incremento salarial e de ascensão social. Assim, a educação formal pouco se inclina para o aperfeiçoamento das relações sociais, interpessoais.
Mesmo nos poucos exemplos que demonstrariam o cumprimento da promessa da educação formal, representados pelo acesso de poucos a emprego e renda dignas capazes de efetuar o resgate da pobreza e da miséria, não se trata, nem de acaso, nem de inevitabilidade. Trata-se de sucesso num propósito pensado e planejado, que é a construção de exemplos individuais de superação que sejam, eles próprios, replicadores e defensores da promessa e, assim, do sistema como um todo.
Apresentados como modelos de superação de toda e qualquer dificuldade, são fiadores da validade da promessa e fortalecem a noção de mérito e de esforço individual, imprescindíveis para a manutenção do estabelecido, ou, dito de outro modo, para que as coisas permaneçam como estão e reduzindo a pressão sobre o alcance da percepção de que o verdadeiro valor a ser observado numa civilização é a prevalência do bem comum, da melhoria social enquanto agrupamento. Valoriza-se, assim, a ideia de meritocracia, sistema que proporciona a falsa impressão de que o sucesso de uns poucos é possível aos demais bilhões de pessoas. Mais ou menos como se fosse possível a qualquer jogador de futebol, pelo mero talento e esforço pessoal, alcançar o status de Pelé ou de Maradona.
A renovação da promessa suaviza as tensões sociais através de uma esperança fadada ao fracasso para a imensa maioria dos humanos. A paz social, por esse meio, é garantida pela esperança de acerto na loteria meritocrática.
A ilusão de mérito recompensado é disseminada por aqueles poucos que lograram ser excluídos da miséria, os integrantes da classe média, que, inscientes do próprio papel e significado, esforçam-se por manter o próprio status, temerosos de retornar à miséria. Por conta disso, colaboram com a propaganda, vangloriando-se dos discutíveis méritos pessoais e fornecendo o próprio exemplo como significativo do valor do sistema. Esses "modelos de superação" auxiliam no esquecimento dos excluídos, considerados apenas pessoas sem o valor pessoal necessário para sair da lama.
Contudo, não há mérito pessoal se, na origem (tempo, local e família), as condições são distintas.
Essa condição de ausência de estímulo para a aquisição de cultura e, consequentemente, sem a conquista da noção histórica de como se travam e se desenvolvem as relações de poder em seus aspectos macro e micro, ou seja, sem a compreensão de que os fatos do passado, remoto e recente, são o fio condutor das ocorrências do presente, a tarefa de dissecar os fatos sociais e políticos capazes de influenciar a própria vida e a vida do grupo social, para melhor ou para pior, aproxima-se da impossibilidade.
A ausência de uma formação cultural adequada implica o processamento das informações como recebidas, em sua natureza bruta, sem a percepção do substrato em que foram criadas e dos interesses que nelas subjazem.
Quando se torna praticamente unânime a opinião de que aos detentores do poder não interessa um povo educado, isso não decorre de se reconhecer que a educação formal fornece, ela mesma e por si só, capacidade crítica ao povo, mas sim de que a educação formal, como uma droga mais suave em relação à mais pesada, é a porta de entrada para a inebriante cultura mais elevada que capacitará a massa a pensar.
A educação formal possibilita, aos interessados na própria construção cultural, o acesso aos primeiros elementos dessa capacitação, daí sua inegável importância, embora carente de profundas adequações que coloquem o objetivo humanístico acima das necessidades mercadológicas.
Evidentemente, o acesso a essa cultura mais elevada e emancipatória não interessa àquele pequeno percentual da população mundial cujo poder e riqueza advém, justamente, da incapacidade crítica da massa.

Essa, ao fim e ao cabo, é a verdadeira batalha a ser travada.

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