Vivenciamos
um momento político sério e um tanto perigoso. Esse momento pode
ser simbolizado pela junção, orquestrada ou não, da atuação de
quatro pessoas que trabalham incansavelmente para a desestabilização
democrática: um ministro do Supremo que não respeita a toga que
veste; um candidato que perdeu a eleição e resolveu retirar a
máscara de bom moço que até então lhe serviu bem; um ex-cantor
sem talento que voltou aos holofotes exclusivamente pelo oportunismo
da grande mídia; e um ex-presidente intelectual amargurado por
perceber que a história lhe reservará um papel secundário na
política brasileira, principalmente em decorrência da atuação
presidencial de um ex-operário sem doutorado que lhe roubou o título
de estadista.
Além
desses quatro trapalhões do apocalipse, não se pode olvidar do
papel, muito mais relevante e significativo, da imprensa, que ecoa
todo e qualquer movimento dos quatro, chegando a transformar pequenas
passeatas de algumas centenas de pessoas em importantes “movimentos
populares”.
A
partir dessa união meio não querida, meio desejada, outros
oportunistas entram no jogo, sentindo que, para qualquer direção
que o barco vire, serão beneficiados, como Serra e Alckmin, além de
aproveitadores de ocasião, como Eduardo Cunha, um certo juiz que
preside um processo criminal no Paraná e diversos delegados federais
mal-intencionados politicamente, que chegam a exibir despudoradamente
na rede social suas reais intenções partidárias.
Tudo
isso acaba por produzir um caldo político disforme, sem consistência
quanto às reivindicações, mas ambos com a pretensão de passar por
cima do processo eleitoral democrático e extirpar o PT do governo.
São duas correntes, uma jurídico-política que pretende dar ares de
constitucionalidade ao golpe e outra mais autêntica e desavergonhada
que quer o golpe a qualquer preço, mesmo ao custo da ruptura
insticional e imposição de uma ditadura.
A
primeira vertente, formada por provincianos que se veem como eruditos
e cosmopolitas, possui um quê de vergonha por atrair simpatizantes
da segunda vertente, basicamente formada por ignorantes políticos,
sem conhecimento histórico sobre o sentido e a natureza de qualquer
ditadura.
Esse
momento de tensão me faz recordar de um artigo do jornalista Luis
Nassif, já um tanto antigo, porém ainda contemporâneo, sobre os
soluços da insensatez no processo civilizatório. Nele, segundo
minha leitura, basicamente, Nassif pontificava que o Brasil está
vivenciando um momento histórico de inclusão social, similar ao da
libertação dos escravos e à conquista das sufragistas pelo direito
de voto feminino, por exemplo. Em tais ocasiões históricas, o povo
sempre se vê dividido entre os que aderem à inclusão social (os
abolicionistas ou feministas, por exemplo) e os que preferem a
manutenção do status quo anterior (os escravagistas ou sexistas). A
divisão, mais marcadamente existentente na classe média, se inicia
a partir da insuflação da mídia conservadora, sempre a postos para
proteger os interesses da porção mais rica da sociedade.
A
cisão de opiniões no seio social gera um crescente de sectarização,
que culmina na radicalização política, onde cada parte
entrincheira-se nas próprias convicções, sem qualquer
sensibilização pelo contraditório. Cada lado não somente não
cede a qualquer argumento do lado contrário, como na verdade
renuncia às tentativas de argumentação crítica racional, passando
a utilizar, como ferramentas de retórica, a falácia e o sofisma.
Isso
é, basicamente, o que está ocorrendo entre o petismo e o
antipetismo atualmente.
No
fim do processo de radicalização, o resultado tanto pode ser a
consagração do avanço civilizatório almejado (como a libertação
dos escravos), como, pelo contrário, a involução do nível já
alcançado, com a criação de ambientes favoráveis ao surgimento de
regimes totalitários ou fomentar guerras civis, como foi na Alemanha
nazista ou na guerra de secessão americana.
Ao
fim e ao cabo, todos perdem com a intolerância e a radicalização
do posicionamento político.
Em
outras palavras, toda solução deve ser produzida a partir do espaço
democrático, com respeito à Constituição e com a aceitação das
decisões democraticamente adotadas. Democracia não é exigir a
materialização daquilo que o indivíduo pensa ser o melhor para a
sociedade, mas a aceitação republicana do que a maioria decide. O
contrário disso é o fascismo.
Nesse
artigo, Nassif sugere, entrelinhas, que o Tea Party americano,
movimento que concentra o sectarismo político de extrema direita dos
EUA, é a ponta de um iceberg totalitarista que começa a rugir
ferozmente no estômago da Águia. É assustador imaginar que uma
sombra maligna de tal magnitude, que ameaça o planeta inteiro,
começa a crescer na maior potência militar de todos os tempos.
Nassif enfatizou que não temos um Tea Party brasileiro por conta de
nossa Constituição extremamente detalhista, que abre pouco espaço
para interpretações anti-democráticas. Por enquanto, Nassif
continua acertando o alvo, mas cada vez mais distante da mosca. A
formação de um Tea Party tropical se fortalece a cada eleição do
PT para a presidência.
Nesse
momento, em que os mais ingênuos acreditam que o problema do
enfrentamento político se resume à questão do combate à
corrupção, na verdade assiste-se a uma luta feroz entre duas opções
de futuro, que serve como catalisadora da tensão política: o modelo
de sistema econômico-político americano e o adotado pelos países
nórdicos.
É
importante salientar que economia e política são indissociáveis
como mecanismos de orientação do destino a ser perseguido por uma
dada sociedade. A economia é, na verdade, um dos objetos
prioritários da política, talvez o maior, pois de seu equilíbrio
dependem os outros alvos políticos. E da conjugação das opções
de escolha dos modos de orientação da economia, a partir da
política, é que surge o modelo de democracia que servirá à
sociedade. Assim, é equivocada a interpretação de que sistema
econômico e sistema político são coisas distintas. Aparentemente,
até se pode imaginar um capitalismo radicalmente liberal existindo
ao lado de uma democracia absoluta. De fato, ou seja, na realidade,
são ideias que se antagonizam, salvo se democracia for interpretada
pelo conceito simplista de direito ao voto. Se for esse o sentido, os
EUA faz jus ao título de maior democracia do mundo.
Porém,
se qualificarmos a noção de voto como o sistema onde cada pessoa
possui idênticos direito e peso na escolha do tipo de sociedade na
qual deseja viver, será possível compreender que os EUA já são,
hoje, um estado totalitário, na concepção de Hanna Arendt. Como
definir uma nação onde impera o voto censitário (pois a elite
possui um voto mais “caro” do que os pobres); onde os cidadãos
são intensamente vigiados pelos aparatos de “segurança” e
também paranoicamente uns pelos outros; onde qualquer pessoa pode
ser presa sem motivação alguma, sem direito a defesa e sem direito
a advogado; onde o inconformismo dos pobres com a realidade social é
criminalizado e os conduzem à morte, seja oficialmente pelo sistema
judicial, seja extra-oficialmente através da violência criminal e
policial?
Os
EUA são hoje, ao contrário do que se costuma imaginar, dentre as
maiores economias do mundo, o país mais desigual economicamente de
toda a história registrada da economia, segundo afirma Thomas
Piketti em seu livro “O capital no século XXI”. Enquanto o pobre
Brasil possui 11% de sua população na miséria, o milionário EUA
estende essa fatia para 15% dos americanos. Esse é o esplendor do
ultraliberalismo econômico, o laissez faire que os empresários
adoram: o direito de conquistar todo e qualquer centavo que esteja no
bolso do povo e, depois, simplesmente tachar o pobre de “loser”,
perdedor, e deixá-lo à míngua, não somente agonizando, mas com o
sentimento de culpa pelo próprio fracasso. Trata-se da meritocracia
conduzida ao seu extremo de vida e de morte.
O
pobre brasileiro, ainda que com grande deficiência, conta com o SUS
em caso de doença. O sistema dos EUA é um pouco mais simples: o
pobre americano sem plano de saúde morre praticamente sem
assistência alguma.
O
sistema americano é o que a grande imprensa deseja e que o PSDB
promete: a cada um aquilo que conseguir abocanhar.
Por
outro lado, o desenvolvimentismo por ora adotado pelo PT persegue
outro ideal, menos libertário em relação ao capital. O alvo, ainda
muito distante, é a social-democracia ao estilo nórdico, com
redução da desigualdade social e opção pelo desenvolvimento do
ser humano, algo que Tim Jackson denomina de florescimento
individual, um sentimento de bom interrelacionamento com as pessoas
ao redor; de segurança quanto ao próprio futuro; de gratificação
pelo que realiza; de uma sensação de pertencimento à comunidade.
E
não é possível ao ser humana alcançar o sentido de florescimento
sem a sensação de que idêntico florescer é alcançado por quem
está ao redor. Sem altruísmo social, o que nos diferenciaria dos
animais irracionais? Se abandonamos o “loser” por sua própria
conta e risco, o que nos tornaria especiais em relação às hienas
que lutam entre si por um naco do cadáver putrefato?
Um
eventual sucesso do Brasil em seu avanço social poderá acelerar
definitivamente o declínio americano em sua hegemonia na política
econômica mundial, fato que já se iniciou.
E,
aos poucos, erguem-se vozes sensatas que alertam o mundo sobre os
acertos na política social na parte ocidental do hemisfério sul.
Uma dessas vozes, do geógrafo britânico David Harvey, professor
emérito de antropologia da Universidade da Cidade de Nova Iorque,
afirma que a América Latina vem fornecendo bons exemplos de governos
de centro-esquerda que promovem uma abordagem diferente na estratégia
econômica e que, por conta disso, a pobreza está sendo reduzida
significativamente em países como o Brasil, o Equador e a Bolívia.
Outra
voz importante, do economista também britânico, Michel G. Green,
destaca a importância da aplicação de um novo medidor de
desenvolvimento, em lugar do tradicional PIB: o Índice de Progresso
Social (IPS). Essencialmente em concordância com as conclusões de
Tim Jackson sobre o florescimento humano, Green considera que a
análise do desenvolvimento de um país deve partir de três
dimensões: 1º - acesso as necessidades básicas de sobrevivência;
2º - acesso as coisas básicas para melhorar a vida; e 3º - acesso
aos mecanismos para melhorar as chances de se atingir objetivos
pessoais.
E,
maravilha, Green conclui que, se comparados os países por esse
indicador, o Brasil se coloca como um dos países mais desenvolvidos
do mundo, o primeiro dentre os do BRICS.
Talvez
seja relevante relembrar aqui as palavras de uma pessoa que, em pouco
tempo, se transformou em referência mundial na questão do
desenvolvimento social: o Papa católico Fransciso I. Diz Sua
Santidade em palavras simples, porém certeiras: "O futuro exige
de nós uma visão humanista da economia e uma política que realize
cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evitando
elitismos e erradicando a pobreza. que ninguém fique privado do
necessário e que a todos sejam asseguradas dignidade, fraternidade e
solidariedade: esta é a via a seguir".
A
fala do Papa evidencia uma obviedade escondida por uma cega negação:
a civilização humana alcançou um nível de avanço cultural e
intelectual incompatível com a aceitação de bilhões de pessoas
passando as mais horríveis necessidades.
Creio
que Marx acertou em suas previsões sobre o futuro do capitalismo,
errando, porém, no método vislumbrado. O comunismo, ou algo
bastante similar, como uma sociedade com acentuada redução nos
desníveis sociais, virá, não através de revoluções, mas a
partir de soluções pacíficas que deem conta de pôr fim às
contradições intrínsecas ao processo capitalista. Gradualmente, de
solução em solução, o sistema mudará ao ponto de não mais poder
ser qualificado de capitalismo. Percebam que isso não guarda
necessária vinculação com a extinção da propriedade privada ou
da iniciativa privada. Trata-se de assegurar um sistema econômico
que permita o florescimento individual e impossibilite a acumulação
irrestrita, injustificável sob qualquer ângulo.
Aparentemente,
as verdadeiras sociais-democracias europeias já são um sinal do
início desse processo, que se reproduzirão no mundo todo. O Brasil
está enveredando por esse caminho. Esse é o grande problema e a
causa da tensão política atual. O Brasil está incomodando.
No
futuro, se os adesistas da inclusão se sagrarem vitoriosos, o país
será um farol para o mundo. A primeira grande nação a realizar o
sonho da redução das desigualdades. A partir daí, talvez, um EUA
hesitante se vergará ao peso das demandas de sua população e se
tornará também uma social-democracia. Após esse último bastião
do ultraliberalismo cair, a terceira via se manterá por muito tempo.
Se
os reacionários brasileiros vencerem, o mundo perde.
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