domingo, 7 de dezembro de 2014

Brasil: farol ou lanterna do mundo?


Vivenciamos um momento político sério e um tanto perigoso. Esse momento pode ser simbolizado pela junção, orquestrada ou não, da atuação de quatro pessoas que trabalham incansavelmente para a desestabilização democrática: um ministro do Supremo que não respeita a toga que veste; um candidato que perdeu a eleição e resolveu retirar a máscara de bom moço que até então lhe serviu bem; um ex-cantor sem talento que voltou aos holofotes exclusivamente pelo oportunismo da grande mídia; e um ex-presidente intelectual amargurado por perceber que a história lhe reservará um papel secundário na política brasileira, principalmente em decorrência da atuação presidencial de um ex-operário sem doutorado que lhe roubou o título de estadista.

Além desses quatro trapalhões do apocalipse, não se pode olvidar do papel, muito mais relevante e significativo, da imprensa, que ecoa todo e qualquer movimento dos quatro, chegando a transformar pequenas passeatas de algumas centenas de pessoas em importantes “movimentos populares”.

A partir dessa união meio não querida, meio desejada, outros oportunistas entram no jogo, sentindo que, para qualquer direção que o barco vire, serão beneficiados, como Serra e Alckmin, além de aproveitadores de ocasião, como Eduardo Cunha, um certo juiz que preside um processo criminal no Paraná e diversos delegados federais mal-intencionados politicamente, que chegam a exibir despudoradamente na rede social suas reais intenções partidárias.
Tudo isso acaba por produzir um caldo político disforme, sem consistência quanto às reivindicações, mas ambos com a pretensão de passar por cima do processo eleitoral democrático e extirpar o PT do governo. São duas correntes, uma jurídico-política que pretende dar ares de constitucionalidade ao golpe e outra mais autêntica e desavergonhada que quer o golpe a qualquer preço, mesmo ao custo da ruptura insticional e imposição de uma ditadura.
A primeira vertente, formada por provincianos que se veem como eruditos e cosmopolitas, possui um quê de vergonha por atrair simpatizantes da segunda vertente, basicamente formada por ignorantes políticos, sem conhecimento histórico sobre o sentido e a natureza de qualquer ditadura.
Esse momento de tensão me faz recordar de um artigo do jornalista Luis Nassif, já um tanto antigo, porém ainda contemporâneo, sobre os soluços da insensatez no processo civilizatório. Nele, segundo minha leitura, basicamente, Nassif pontificava que o Brasil está vivenciando um momento histórico de inclusão social, similar ao da libertação dos escravos e à conquista das sufragistas pelo direito de voto feminino, por exemplo. Em tais ocasiões históricas, o povo sempre se vê dividido entre os que aderem à inclusão social (os abolicionistas ou feministas, por exemplo) e os que preferem a manutenção do status quo anterior (os escravagistas ou sexistas). A divisão, mais marcadamente existentente na classe média, se inicia a partir da insuflação da mídia conservadora, sempre a postos para proteger os interesses da porção mais rica da sociedade.
A cisão de opiniões no seio social gera um crescente de sectarização, que culmina na radicalização política, onde cada parte entrincheira-se nas próprias convicções, sem qualquer sensibilização pelo contraditório. Cada lado não somente não cede a qualquer argumento do lado contrário, como na verdade renuncia às tentativas de argumentação crítica racional, passando a utilizar, como ferramentas de retórica, a falácia e o sofisma.
Isso é, basicamente, o que está ocorrendo entre o petismo e o antipetismo atualmente.
No fim do processo de radicalização, o resultado tanto pode ser a consagração do avanço civilizatório almejado (como a libertação dos escravos), como, pelo contrário, a involução do nível já alcançado, com a criação de ambientes favoráveis ao surgimento de regimes totalitários ou fomentar guerras civis, como foi na Alemanha nazista ou na guerra de secessão americana.
Ao fim e ao cabo, todos perdem com a intolerância e a radicalização do posicionamento político.
Em outras palavras, toda solução deve ser produzida a partir do espaço democrático, com respeito à Constituição e com a aceitação das decisões democraticamente adotadas. Democracia não é exigir a materialização daquilo que o indivíduo pensa ser o melhor para a sociedade, mas a aceitação republicana do que a maioria decide. O contrário disso é o fascismo.
Nesse artigo, Nassif sugere, entrelinhas, que o Tea Party americano, movimento que concentra o sectarismo político de extrema direita dos EUA, é a ponta de um iceberg totalitarista que começa a rugir ferozmente no estômago da Águia. É assustador imaginar que uma sombra maligna de tal magnitude, que ameaça o planeta inteiro, começa a crescer na maior potência militar de todos os tempos. Nassif enfatizou que não temos um Tea Party brasileiro por conta de nossa Constituição extremamente detalhista, que abre pouco espaço para interpretações anti-democráticas. Por enquanto, Nassif continua acertando o alvo, mas cada vez mais distante da mosca. A formação de um Tea Party tropical se fortalece a cada eleição do PT para a presidência.
Nesse momento, em que os mais ingênuos acreditam que o problema do enfrentamento político se resume à questão do combate à corrupção, na verdade assiste-se a uma luta feroz entre duas opções de futuro, que serve como catalisadora da tensão política: o modelo de sistema econômico-político americano e o adotado pelos países nórdicos.
É importante salientar que economia e política são indissociáveis como mecanismos de orientação do destino a ser perseguido por uma dada sociedade. A economia é, na verdade, um dos objetos prioritários da política, talvez o maior, pois de seu equilíbrio dependem os outros alvos políticos. E da conjugação das opções de escolha dos modos de orientação da economia, a partir da política, é que surge o modelo de democracia que servirá à sociedade. Assim, é equivocada a interpretação de que sistema econômico e sistema político são coisas distintas. Aparentemente, até se pode imaginar um capitalismo radicalmente liberal existindo ao lado de uma democracia absoluta. De fato, ou seja, na realidade, são ideias que se antagonizam, salvo se democracia for interpretada pelo conceito simplista de direito ao voto. Se for esse o sentido, os EUA faz jus ao título de maior democracia do mundo.
Porém, se qualificarmos a noção de voto como o sistema onde cada pessoa possui idênticos direito e peso na escolha do tipo de sociedade na qual deseja viver, será possível compreender que os EUA já são, hoje, um estado totalitário, na concepção de Hanna Arendt. Como definir uma nação onde impera o voto censitário (pois a elite possui um voto mais “caro” do que os pobres); onde os cidadãos são intensamente vigiados pelos aparatos de “segurança” e também paranoicamente uns pelos outros; onde qualquer pessoa pode ser presa sem motivação alguma, sem direito a defesa e sem direito a advogado; onde o inconformismo dos pobres com a realidade social é criminalizado e os conduzem à morte, seja oficialmente pelo sistema judicial, seja extra-oficialmente através da violência criminal e policial?
Os EUA são hoje, ao contrário do que se costuma imaginar, dentre as maiores economias do mundo, o país mais desigual economicamente de toda a história registrada da economia, segundo afirma Thomas Piketti em seu livro “O capital no século XXI”. Enquanto o pobre Brasil possui 11% de sua população na miséria, o milionário EUA estende essa fatia para 15% dos americanos. Esse é o esplendor do ultraliberalismo econômico, o laissez faire que os empresários adoram: o direito de conquistar todo e qualquer centavo que esteja no bolso do povo e, depois, simplesmente tachar o pobre de “loser”, perdedor, e deixá-lo à míngua, não somente agonizando, mas com o sentimento de culpa pelo próprio fracasso. Trata-se da meritocracia conduzida ao seu extremo de vida e de morte.
O pobre brasileiro, ainda que com grande deficiência, conta com o SUS em caso de doença. O sistema dos EUA é um pouco mais simples: o pobre americano sem plano de saúde morre praticamente sem assistência alguma.
O sistema americano é o que a grande imprensa deseja e que o PSDB promete: a cada um aquilo que conseguir abocanhar.
Por outro lado, o desenvolvimentismo por ora adotado pelo PT persegue outro ideal, menos libertário em relação ao capital. O alvo, ainda muito distante, é a social-democracia ao estilo nórdico, com redução da desigualdade social e opção pelo desenvolvimento do ser humano, algo que Tim Jackson denomina de florescimento individual, um sentimento de bom interrelacionamento com as pessoas ao redor; de segurança quanto ao próprio futuro; de gratificação pelo que realiza; de uma sensação de pertencimento à comunidade.
E não é possível ao ser humana alcançar o sentido de florescimento sem a sensação de que idêntico florescer é alcançado por quem está ao redor. Sem altruísmo social, o que nos diferenciaria dos animais irracionais? Se abandonamos o “loser” por sua própria conta e risco, o que nos tornaria especiais em relação às hienas que lutam entre si por um naco do cadáver putrefato?
Um eventual sucesso do Brasil em seu avanço social poderá acelerar definitivamente o declínio americano em sua hegemonia na política econômica mundial, fato que já se iniciou.
E, aos poucos, erguem-se vozes sensatas que alertam o mundo sobre os acertos na política social na parte ocidental do hemisfério sul. Uma dessas vozes, do geógrafo britânico David Harvey, professor emérito de antropologia da Universidade da Cidade de Nova Iorque, afirma que a América Latina vem fornecendo bons exemplos de governos de centro-esquerda que promovem uma abordagem diferente na estratégia econômica e que, por conta disso, a pobreza está sendo reduzida significativamente em países como o Brasil, o Equador e a Bolívia.
Outra voz importante, do economista também britânico, Michel G. Green, destaca a importância da aplicação de um novo medidor de desenvolvimento, em lugar do tradicional PIB: o Índice de Progresso Social (IPS). Essencialmente em concordância com as conclusões de Tim Jackson sobre o florescimento humano, Green considera que a análise do desenvolvimento de um país deve partir de três dimensões: 1º - acesso as necessidades básicas de sobrevivência; 2º - acesso as coisas básicas para melhorar a vida; e 3º - acesso aos mecanismos para melhorar as chances de se atingir objetivos pessoais.
E, maravilha, Green conclui que, se comparados os países por esse indicador, o Brasil se coloca como um dos países mais desenvolvidos do mundo, o primeiro dentre os do BRICS.
Talvez seja relevante relembrar aqui as palavras de uma pessoa que, em pouco tempo, se transformou em referência mundial na questão do desenvolvimento social: o Papa católico Fransciso I. Diz Sua Santidade em palavras simples, porém certeiras: "O futuro exige de nós uma visão humanista da economia e uma política que realize cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evitando elitismos e erradicando a pobreza. que ninguém fique privado do necessário e que a todos sejam asseguradas dignidade, fraternidade e solidariedade: esta é a via a seguir".
A fala do Papa evidencia uma obviedade escondida por uma cega negação: a civilização humana alcançou um nível de avanço cultural e intelectual incompatível com a aceitação de bilhões de pessoas passando as mais horríveis necessidades.
Creio que Marx acertou em suas previsões sobre o futuro do capitalismo, errando, porém, no método vislumbrado. O comunismo, ou algo bastante similar, como uma sociedade com acentuada redução nos desníveis sociais, virá, não através de revoluções, mas a partir de soluções pacíficas que deem conta de pôr fim às contradições intrínsecas ao processo capitalista. Gradualmente, de solução em solução, o sistema mudará ao ponto de não mais poder ser qualificado de capitalismo. Percebam que isso não guarda necessária vinculação com a extinção da propriedade privada ou da iniciativa privada. Trata-se de assegurar um sistema econômico que permita o florescimento individual e impossibilite a acumulação irrestrita, injustificável sob qualquer ângulo.
Aparentemente, as verdadeiras sociais-democracias europeias já são um sinal do início desse processo, que se reproduzirão no mundo todo. O Brasil está enveredando por esse caminho. Esse é o grande problema e a causa da tensão política atual. O Brasil está incomodando.
No futuro, se os adesistas da inclusão se sagrarem vitoriosos, o país será um farol para o mundo. A primeira grande nação a realizar o sonho da redução das desigualdades. A partir daí, talvez, um EUA hesitante se vergará ao peso das demandas de sua população e se tornará também uma social-democracia. Após esse último bastião do ultraliberalismo cair, a terceira via se manterá por muito tempo.

Se os reacionários brasileiros vencerem, o mundo perde.

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