Slavoj
Zizek, em seu pequeno livro "Bem-vindo ao deserto do real",
trata do confronto, ou do falso confronto, entre democracia liberal e
fundamentalismo islâmico. Foi escrito a propósito do atentado às
torres gêmeas, sendo, dessa forma, um tanto profético em relação
aos recentes acontecimentos em Paris. Zizek é uma leitura difícil,
não é para iniciantes, como eu. Tanto que, ao arrogantemente tentar
ler um de seus livros mais densos, "A visão em paralaxe",
a evidente ausência da bagagem necessária me fez desistir da
empreitada, repondo o livro na estante à espera do imprescindível
amadurecimento intelectual.
Zizek,
como todo bom filósofo, e talvez até mais do que a maioria, dada a
sua inclinação psicanalítica, produz muito mais indagações do
que respostas. Da leitura que fiz de suas falas, tanto em relação
ao 11/09, como agora no que concerne ao triste episódio de Paris, o
filósofo sugere que a democracia liberal, no que possui de mais
conservador, deve entender o papel preponderante que a esquerda
radical exerce como fiel da balança da justiça e da paz sociais,
ainda que a própria esquerda radical não consiga convencer o povo
dos benefícios de seu projeto político utópico.
Em
outras palavras, os projetos políticos nascidos no berço da
esquerda radical devem ser apropriados pela democracia liberal, com
concessão em doses minúsculas, homeopáticas, no intuito de atenuar
a pressão social e garantir a manutenção do status quo e da
tranquilidade do sagrado mercado. Ao mesmo tempo, tais suaves
concessões servem ao propósito de inibir uma eventual escalada ao
poder dos representantes da própria esquerda radical.
Claro
que essa estratégia cria um paradoxo inescapável: nesse jogo de
concessões, de dose homeopática em dose homeopática, o projeto da
esquerda vai se materializando aos pouquinhos.
Zizek
é um crítico da apatia e da falta de união das esquerdas num
projeto político mínimo comum. Essa apatia conduz ao endurecimento
do capitalismo, que por sua vez é a fonte geradora das carências
populares que formam o caldo catalisador dos fundamentalismos, sejam
quais forem.
Dito
de outro modo: a insatisfação popular com a política existe, mas
não é direcionada com sabedoria pela esquerda de forma a provocar
alguma espécie de renovação, ou ruptura mesmo, com o modelo
político existente. O povo se vê desorientado, sem liderança que
dê voz às suas demandas. Quem, então, se aproveita dessa brecha é
o fascismo, político ou religioso, que, com o discurso de ódio,
alcança dirigir essa energia popular de insatisfação para a
consecução de seus propósitos obscuros.
Outra
questão importante pontificada por Zizek é quanto à necessidade de
se perder o medo das contra-críticas falaciosas. Ser contra a
política de Israel contra os palestinos em nada significa ser
antissemita, assim como denunciar o irracional fundamentalismo
islâmico não representa um pensamento anti-islamita. Contudo,
sempre há uma voz falaciosa a querer transformar uma crítica contra
uma coisa em uma demonstração de preconceito contra outra.
O
islamismo, como religião, deve ser respeitado, como se devem
respeitar todas as religiões. Nenhuma delas, todavia, pode estar
acima das críticas ou imune a racionalizações, humorísticas ou
não. O respeito ao judaísmo não se estende à concordância com a
política israelense. O respeito ao islamismo não pode chegar ao
ponto de se concordar com homens-bomba e fatwas mortais.
A
Deus o que é de Deus e a César o que é de César.
Os
dois fundamentalismos, o liberal-americano e o islâmico, são
extremamente daninhos, estão provocando vários pequenos conflitos
bélicos e, se não forem freados de alguma forma, acabarão por
desencadear uma guerra de grandes proporções, talvez a terceira
mundial, que se iniciará, como sempre, sob a aparente capa de guerra
de civilizações, de liberdade e de democracia, sob a qual, todavia,
subjazem os interesses econômicos das grandes corporações.
Não
é impossível que os dois fundamentalismos possuam um articulador
único (não, não perco a mania de crer em teorias conspiratórias).
Nesse sentido, o alvo de fundo sequer seria o Oriente Médio. A
pretensão imbricatória chegaria à Rússia e à China, que são, de
fato, os países que ameaçam a hegemonia americana, um no aspecto
militar e o outro no econômico. E, quem sabe, ainda levem de
lambugem a quebra de Brasil e Índia.
Não
se deve esperar sensatez dos belicistas americanos ou dos
fundamentalistas islâmicos. Caberá aos líderes religiosos e à
Europa exercer esse papel de apaziguador.
Torçamos
para que mantenham a sanidade.
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