quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Beija-Flor e o ditador: a vergonha de uma vitória


A República da Guiné Equatorial é um país localizado na porção centro-atlântica da África, com cerca de vinte e oito mil quilômetros quadrados, população de seiscentos mil habitantes e PIB de de quinze bilhões de dólares, ou seja, a área de Alagoas, com a população do Amapá e o PIB do Rio Grande do Norte.
Até pouco antes do ano 2000, a economia da Guiné era, basicamente, focada na exportação de cacau, café e madeira. A partir daí, ganhou relevo substancial a exploração de petróleo. Até 1778 era uma colônia portuguesa e, a partir daí, passou ao domínio espanhol, somente alcançando independência em 1968.
Alcançada a independência, a Guiné esteve, por dez anos, sob o comando do ditador Francisco Nguema, que é apontado como responsável por assassinar milhares de opositores.

Nguema foi deposto, e logo a seguir condenado à morte, por seu sobrinho, Teodoro Obiang Nguema (foto). Obiang, que hoje conta setenta e dois anos, sucedeu o tio quando tinha cerca de quarenta e está no poder desde então, há mais de trinta anos, sempre eleito para mandatos presidenciais de sete anos, com votações que beiram os noventa e cinco por cento do eleitorado.
Seu partido detém noventa e nove por cento das cadeiras parlamentares. Um tremendo sucesso político.
Os políticos de oposição estão no exílio, no ostracismo ou mortos.
Como a maioria dos ditadores, Obiang estimula e pratica o culto à sua personalidade e, como sói acontecer com outros tiranos, é exemplo de pessoa riquíssima num pais miserável. De fato, embora a Guiné Equatorial seja um dos países mais pobres do mundo, a revista Forbes apontou Obiang como o oitavo governante mais rico do mundo.
A organização americana Freedom House, que faz pesquisas sobre direitos humanos e democracia, classifica a Guiné em péssima colocação em matéria de direitos políticos e civis. A grande maioria da população não possui acesso a estruturas de água e saneamento básica, a mortalidade infantil é altíssima. Não existe praticamente nenhuma dúvida de que a Guiné está submetida a um regime político de tirania e opressão.
Esse é o quadro político que se apresenta no país que serviu de enredo e foi exaltado pela Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, declarada a campeã do carnaval carioca de 2015. Segundo consta, a escola de samba teria recebido dez milhões de reais como incentivo à exaltação do país de miseráveis submetidos a uma tirania e cujo presidente, um ditador de fato, é tido por uma das pessoas mais ricas do mundo.
O sobrinho do ditador compareceu ao carnaval carioca para testemunhar o sucesso do investimento. Ditadores não confiam em ninguém, pelo visto. A escola admite ter recebido uma verba, mas não informa o valor. Na verdade, isso não é importante. O fato da escola ter aceitado a... hum... “gorjeta” do déspota e feito o proselitismo da opressão nem surpreende tanto, se pensarmos que, afinal, é notória a relação de muitas escolas de samba com a marginalidade, não é mesmo, “bicho”?
O que surpreende é que um júri formado em grande parte por artistas e pessoas com boa cultura, que certamente conhecem os valores humanistas do Iluminismo, que provavelmente valorizam a democracia e defendem os direitos humanos, a liberdade, a fraternidade e a igualdade, não tenham tido, nessa condição, a sensibilidade de não premiar o mau-gosto da escolha. No caso, o que menos deveria ter importado para esses jurados era analisar a perfeição do desfile feito pela Beija-Flor. Importante, aqui, deveria ter sido a mensagem passada para os brasileiros e para os guineenses - de exaltação do descalabro democrático, da usurpação da riqueza e da tirania - e o potencial uso malévolo dessa conquista beija-floriana pelos políticos da Guiné como ferramenta de fortalecimento de uma ditadura prolongada.
Ainda que pensado sob uma perspectiva meramente interna, para a política brasileira, louvar a vitória da mensagem trazida à avenida pela Beija-Flor é completamente sem sentido se considerado um momento político no qual os brasileiros são instigados pela grande imprensa, de forma visceral, histérica e irracional, a odiar um determinado partido político justamente sob a pecha de partido mais corrupto da história do mundo. Vá entender! Aparentemente o que é bom para a Guiné não é bom para o Brasil, ou vice-versa.
A letra do samba-enredo não poderia ser mais hipócrita. Diz a Beija-Flor, em sua vil exaltação àquele país, que, na Guiné “nego clama liberdade” e que “a chama da igualdade não se apaga”, referindo-se a inimigos externos. Isso em relação a um país que, desde sua independência, há mais de quarenta anos, foi governado por apenas dois presidentes, tio e sobrinho, cujo poder foi e é mantido através do silenciamento da oposição, inclusive com assassinatos e que, através do medo, espoliam a riqueza nacional para benefício próprio, sem compadecimento pela miséria do povo.
O inimigo dos guineenses, obviamente, mora lá mesmo e, pelo visto, se “nego” quiser continuar a clamar por liberdade e igualdade, deve torcer o nariz para o que diz a letra do samba de uma certa agremiação brasileira.
Lamentavelmente, o carnaval carioca desse ano abandonou a alegria e decidiu premiar a covardia.

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