Vivemos
num mundo no qual convivem, não muito pacificamente, vários modelos
de capitalismo, desde o mais soft e inteligente - que
compreende a necessidade de mitigar as agruras dos desfavorecidos
como meio mais saudável de manutenção da paz social - ao mais
sórdido e predatório, que se orienta exclusivamente a partir da
visão estreita da pilhagem, ainda que isso redunde na necessidade do
uso desmedido da violência do estado, dentro ou fora do próprio
território, e gere um estado de conflito social por tempo
indeterminado. O primeiro, soft, possui bases fincadas na
estratégia de médio e longo prazo, inclusive no que concerne à
captura do lucro, enquanto o segundo segue o instinto dos animais de
rapina, lançando-se sobre a carniça com foco apenas no presente.
Apesar de existirem os dois modelos, em variados gradientes, é o
capitalismo em sua vertente ultraliberal que vem vicejando nas
últimas décadas, forjando, desde pretensas uniões transnacionais
paridas à fórceps, a intervenções geopolíticas que violam o
direito de autodeterminação dos povos, isso sem mencionar as lesões
gravíssimas que provoca à ordem ambiental. Para consecução de
seus objetivos, atua militarmente ou através da criação de
instabilidades nacionais, como está ocorrendo no Brasil pela via do
golpe antidemocrático de 2016.
A
atual instabilidade político-econômica que atravessa as nações do
mundo muito se deve ao cansaço e, quem sabe, ao esgotamento desse
modelo ultraliberal do capitalismo. Não tendo sido capaz, inclusive
porque nunca foi seu objetivo, de pulverizar socialmente os ganhos de
capital, o povo está começando a perceber que foi ludibriado com a
cantilena da liberdade e da democracia, o que gera situações
complexas como o Brexit ou a eleição de Donald Trump. Assim, os
tremores econômicos, e corridas militares, decorreriam da reação
do capitalismo neoliberal às ondas de protesto que sacodem seus
alicerces. Se pequenos ratos atacam quando são acuados, muito mais
ferozmente o farão se tiverem o tamanho de leões ou de águias.
Num
contexto como esse, vale a pena refletir sobre qual seria o uso
apropriado dos valores éticos ou, mais propriamente, sobre se o
comportamento ético está necessariamente vinculado às
determinações positivadas da lei ou da moral. A ética impõe a
dominação pacífica ao dominado?
A
ética certamente impõe um comportamento individual orientado pelo
interesse coletivo e, numa sociedade desenvolvida, presume-se que a
lei, criada por representantes do povo, seria o farol ético a ser
seguido. Sem dúvida alguma, num mundo ideal o comportamento ético
seria equivalente à obediência à lei. O problema é que não
vivemos num mundo ideal. Não vivemos, sequer, num mundo real, mas
num ambiente falseado por simulacros e simulações, como diria
Baudrillard. Num mundo em que a medialidade da internet vai se
tornando cada vez mais importante, é interessante constatar que a
virtualidade já constituía o ambiente da vivência humana antes
mesmo da invenção do computador.
A
elite sempre manipulou a sociedade como forma de manutenção do
poder, para isso utilizando mecanismos de força física ou moral,
disseminados através da religião, da política e da ciência e
reverberados em todas as demais instituições humanas, como escola,
igreja, trabalho, imprensa e outras. Trata-se de incutir no dominado
a vontade de ser dominado ou, minimamente, a resignação em ser
dominado. Sob tal aspecto, o Estado é, nada mais, nada menos, do que
o avatar utilizado pela elite para comandar o povo. A própria
democracia é manipulada para escolha de representantes “populares”
que, na verdade, reproduzirão, por meio de seus mandatos, os
mecanismos de força que manterão os privilégios da elite. Tais
mecanismos de força são instituídos, politicamente, pela via do
processo legislativo que cria leis com coerção geral.
Estabelecida
a fragilidade da democracia e o uso da política como instrumento de
manutenção da dominação, como atribuir sentido ético à regra
geral, e civilizada, de obediência irrestrita à lei? Se a ética
está vocacionada à proteção do interesse coletivo, não seria
mais ético o comportamento orientado pelo inconformismo e pela
irresignação? O aguçamento do senso ético não convidaria à
atitude revolucionária? Nesse sentido, não seria possível
descrever os adeptos dos black blocs como pessoas do mais alto nível
de entrega ética?
Suponha-se
um mundo de cervos no qual existisse lei que determinasse que todos
se apresentassem diariamente à boca do leão para serem comidos. É
possível produzir a apologia ética do cumprimento dessa lei? No
mundo humano, é, grosso modo, isso o que ocorre. Leis são
produzidas para garantir o “alimento” (riqueza) na boca dos
poucos “leões” (elite), retirando quase completamente a
possibilidade desse mesmo “alimento” ser destinado a saciar a
fome ou reduzir a indignidade diariamente vivida e reproduzida por
bilhões e bilhões de pessoas. Apesar disso, há um pacto geral de
concordância com esse tipo de sociedade, benéfica apenas para os
“leões”. Em janeiro de 2017, a organização não governamental
britânica Oxfam divulgou estudo que demonstra que a soma da fortuna
dos oito homens mais ricos do mundo é similar à da “riqueza” de
metade da população do mundo. Ou seja, oito pessoas valem o mesmo
que três bilhões e seiscentos milhões de pessoas1.
Isso não é o pior dessa notícia. O pior é que, um ano antes, a
mesma entidade, Oxfam, divulgou estudo afirmando que a equivalência
era entre metade da população e os sessenta e dois mais ricos2,
o que demonstra que, de 2016 para 2017, um ano apenas, a concentração
da riqueza aumentou absurdamente. A tendência é o agravamento da
concentração da riqueza. É uma insanidade.
Para
além de qualquer dúvida, a criminalidade deve ser combatida, pois o
contrário – a leniência com o crime – produziria o caos.
Todavia, o mero combate ao crime como sintoma é ineficaz e cada vez
mais o será, a partir do visível avanço tecnológico como causa do
desemprego estrutural. Cada vez mais pessoas serão atraídas para o
crime comum em decorrência da violência estrutural decorrente da
soma insana e irracional da tecnologia que cada vez mais dispensa
trabalho humano com a avidez desmedida pela lucratividade a qualquer
custo, inclusive ao pior dos custos que é o humano. Quantos campos
de concentração serão necessários, daqui cinquenta anos, para a
quantidade de dejetos humanos – os “refugiados” - que serão
produzidos em cada vez maior número?
Num
mundo virtual – que a maioria pensa ser real - dominado pelo
discurso hegemônico que produz o “vazio de pensamento” - o
preenchimento da mente, para aquém da reflexão, com mensagens
pré-fabricadas e pré-reflexivas que são consideradas “próprias”
e “independentes” - que gera o “vazio da ação” (inação ou
ação de adesão pré-reflexiva) o combate que efetivamente
interessa à maioria da população e que norteará o futuro da
humanidade, nada possui de revolucionário comunista, como se tenta
propagar a ideia para criação de pânico. A luta ocorre no seio do
próprio capitalismo entre duas vertentes: o capitalismo racional e
soft e o neoliberal, irracional e duro. No bojo desse conflito
entre poderosos, entre o mar e o rochedo, como deve agir o mexilhão
(o comum do povo)? Como agir eticamente num mundo gerido por
interesses legais antiéticos?
Quando
a letra da lei escrita pelo legislador ou interpretada pelo
magistrado se ocupa da função demeritória de garantir a
iniquidade, o vácuo ético se encontra no criminoso ou na deturpação
da função pública?
A
resposta está no espírito de cada um e será encontrada a partir da
própria historicidade, na forma que escolheu para ser quem
efetivamente é, no seu conjunto de experiências com as pessoas, com
os lugares e com o conhecimento. Se, como animais, somos
organicamente o que comemos, como seres racionais somos o que
experienciamos, ou seja, o acaso da classe social nascida, as
escolhas de leitura, o outro com quem nos inter-relacionamos e os
locais que optamos por conhecer.
A
orientação pela ética é uma escolha corajosa e valiosa, mas saber
o que é ético é um produto da reflexão. Nem sempre ser ético
significa agir de fato eticamente.
1- http://www.bbc.com/portuguese/internacional-38635398
2- http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/01/quem-sao-as-62-pessoas-cuja-riqueza-equivale-a-de-metade-do-mundo.html
O destino do mundo é o mesmo da Ilha da Páscoa: destruição dos recursos naturais.
ResponderExcluirO destino da humanidade é o mesmo dos rapanui: guerras, genocídio e fome.
A menos que começemos a agir eticamente: resistindo.
Tomo a liberdade de indicar o livro da Naomi Klein: "The Shock doctrine" para aqueles que quiserem se aprofundar sobre o tema.