segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A conduta ética é seguir a lei?


Vivemos num mundo no qual convivem, não muito pacificamente, vários modelos de capitalismo, desde o mais soft e inteligente - que compreende a necessidade de mitigar as agruras dos desfavorecidos como meio mais saudável de manutenção da paz social - ao mais sórdido e predatório, que se orienta exclusivamente a partir da visão estreita da pilhagem, ainda que isso redunde na necessidade do uso desmedido da violência do estado, dentro ou fora do próprio território, e gere um estado de conflito social por tempo indeterminado. O primeiro, soft, possui bases fincadas na estratégia de médio e longo prazo, inclusive no que concerne à captura do lucro, enquanto o segundo segue o instinto dos animais de rapina, lançando-se sobre a carniça com foco apenas no presente. Apesar de existirem os dois modelos, em variados gradientes, é o capitalismo em sua vertente ultraliberal que vem vicejando nas últimas décadas, forjando, desde pretensas uniões transnacionais paridas à fórceps, a intervenções geopolíticas que violam o direito de autodeterminação dos povos, isso sem mencionar as lesões gravíssimas que provoca à ordem ambiental. Para consecução de seus objetivos, atua militarmente ou através da criação de instabilidades nacionais, como está ocorrendo no Brasil pela via do golpe antidemocrático de 2016.

A atual instabilidade político-econômica que atravessa as nações do mundo muito se deve ao cansaço e, quem sabe, ao esgotamento desse modelo ultraliberal do capitalismo. Não tendo sido capaz, inclusive porque nunca foi seu objetivo, de pulverizar socialmente os ganhos de capital, o povo está começando a perceber que foi ludibriado com a cantilena da liberdade e da democracia, o que gera situações complexas como o Brexit ou a eleição de Donald Trump. Assim, os tremores econômicos, e corridas militares, decorreriam da reação do capitalismo neoliberal às ondas de protesto que sacodem seus alicerces. Se pequenos ratos atacam quando são acuados, muito mais ferozmente o farão se tiverem o tamanho de leões ou de águias.
Num contexto como esse, vale a pena refletir sobre qual seria o uso apropriado dos valores éticos ou, mais propriamente, sobre se o comportamento ético está necessariamente vinculado às determinações positivadas da lei ou da moral. A ética impõe a dominação pacífica ao dominado?
A ética certamente impõe um comportamento individual orientado pelo interesse coletivo e, numa sociedade desenvolvida, presume-se que a lei, criada por representantes do povo, seria o farol ético a ser seguido. Sem dúvida alguma, num mundo ideal o comportamento ético seria equivalente à obediência à lei. O problema é que não vivemos num mundo ideal. Não vivemos, sequer, num mundo real, mas num ambiente falseado por simulacros e simulações, como diria Baudrillard. Num mundo em que a medialidade da internet vai se tornando cada vez mais importante, é interessante constatar que a virtualidade já constituía o ambiente da vivência humana antes mesmo da invenção do computador.
A elite sempre manipulou a sociedade como forma de manutenção do poder, para isso utilizando mecanismos de força física ou moral, disseminados através da religião, da política e da ciência e reverberados em todas as demais instituições humanas, como escola, igreja, trabalho, imprensa e outras. Trata-se de incutir no dominado a vontade de ser dominado ou, minimamente, a resignação em ser dominado. Sob tal aspecto, o Estado é, nada mais, nada menos, do que o avatar utilizado pela elite para comandar o povo. A própria democracia é manipulada para escolha de representantes “populares” que, na verdade, reproduzirão, por meio de seus mandatos, os mecanismos de força que manterão os privilégios da elite. Tais mecanismos de força são instituídos, politicamente, pela via do processo legislativo que cria leis com coerção geral.
Estabelecida a fragilidade da democracia e o uso da política como instrumento de manutenção da dominação, como atribuir sentido ético à regra geral, e civilizada, de obediência irrestrita à lei? Se a ética está vocacionada à proteção do interesse coletivo, não seria mais ético o comportamento orientado pelo inconformismo e pela irresignação? O aguçamento do senso ético não convidaria à atitude revolucionária? Nesse sentido, não seria possível descrever os adeptos dos black blocs como pessoas do mais alto nível de entrega ética?
Suponha-se um mundo de cervos no qual existisse lei que determinasse que todos se apresentassem diariamente à boca do leão para serem comidos. É possível produzir a apologia ética do cumprimento dessa lei? No mundo humano, é, grosso modo, isso o que ocorre. Leis são produzidas para garantir o “alimento” (riqueza) na boca dos poucos “leões” (elite), retirando quase completamente a possibilidade desse mesmo “alimento” ser destinado a saciar a fome ou reduzir a indignidade diariamente vivida e reproduzida por bilhões e bilhões de pessoas. Apesar disso, há um pacto geral de concordância com esse tipo de sociedade, benéfica apenas para os “leões”. Em janeiro de 2017, a organização não governamental britânica Oxfam divulgou estudo que demonstra que a soma da fortuna dos oito homens mais ricos do mundo é similar à da “riqueza” de metade da população do mundo. Ou seja, oito pessoas valem o mesmo que três bilhões e seiscentos milhões de pessoas1. Isso não é o pior dessa notícia. O pior é que, um ano antes, a mesma entidade, Oxfam, divulgou estudo afirmando que a equivalência era entre metade da população e os sessenta e dois mais ricos2, o que demonstra que, de 2016 para 2017, um ano apenas, a concentração da riqueza aumentou absurdamente. A tendência é o agravamento da concentração da riqueza. É uma insanidade.
Para além de qualquer dúvida, a criminalidade deve ser combatida, pois o contrário – a leniência com o crime – produziria o caos. Todavia, o mero combate ao crime como sintoma é ineficaz e cada vez mais o será, a partir do visível avanço tecnológico como causa do desemprego estrutural. Cada vez mais pessoas serão atraídas para o crime comum em decorrência da violência estrutural decorrente da soma insana e irracional da tecnologia que cada vez mais dispensa trabalho humano com a avidez desmedida pela lucratividade a qualquer custo, inclusive ao pior dos custos que é o humano. Quantos campos de concentração serão necessários, daqui cinquenta anos, para a quantidade de dejetos humanos – os “refugiados” - que serão produzidos em cada vez maior número?
Num mundo virtual – que a maioria pensa ser real - dominado pelo discurso hegemônico que produz o “vazio de pensamento” - o preenchimento da mente, para aquém da reflexão, com mensagens pré-fabricadas e pré-reflexivas que são consideradas “próprias” e “independentes” - que gera o “vazio da ação” (inação ou ação de adesão pré-reflexiva) o combate que efetivamente interessa à maioria da população e que norteará o futuro da humanidade, nada possui de revolucionário comunista, como se tenta propagar a ideia para criação de pânico. A luta ocorre no seio do próprio capitalismo entre duas vertentes: o capitalismo racional e soft e o neoliberal, irracional e duro. No bojo desse conflito entre poderosos, entre o mar e o rochedo, como deve agir o mexilhão (o comum do povo)? Como agir eticamente num mundo gerido por interesses legais antiéticos?
Quando a letra da lei escrita pelo legislador ou interpretada pelo magistrado se ocupa da função demeritória de garantir a iniquidade, o vácuo ético se encontra no criminoso ou na deturpação da função pública?
A resposta está no espírito de cada um e será encontrada a partir da própria historicidade, na forma que escolheu para ser quem efetivamente é, no seu conjunto de experiências com as pessoas, com os lugares e com o conhecimento. Se, como animais, somos organicamente o que comemos, como seres racionais somos o que experienciamos, ou seja, o acaso da classe social nascida, as escolhas de leitura, o outro com quem nos inter-relacionamos e os locais que optamos por conhecer.
A orientação pela ética é uma escolha corajosa e valiosa, mas saber o que é ético é um produto da reflexão. Nem sempre ser ético significa agir de fato eticamente.
1- http://www.bbc.com/portuguese/internacional-38635398

2- http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/01/quem-sao-as-62-pessoas-cuja-riqueza-equivale-a-de-metade-do-mundo.html

Um comentário :

  1. O destino do mundo é o mesmo da Ilha da Páscoa: destruição dos recursos naturais.

    O destino da humanidade é o mesmo dos rapanui: guerras, genocídio e fome.

    A menos que começemos a agir eticamente: resistindo.

    Tomo a liberdade de indicar o livro da Naomi Klein: "The Shock doctrine" para aqueles que quiserem se aprofundar sobre o tema.

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