sexta-feira, 23 de abril de 2021

Religião e covid: quando a fé de alguns é o problema de muitos

 

 As necessidades coletivas impostas nesse momento trágico da pandemia produz a necessidade de reflexão sobre a questão da laicidade do Estado. Isso porque algumas ações políticas de saúde pública, necessárias para combater a covid e cujo sucesso depende da submissão de todos, à primeira vista parecem confrontar o princípio da liberdade religiosa. Como exemplo desse tipo de indagação, tem-se a questão do direito de o crente comparecer ao culto religioso em templos, o que, necessariamente, implica aglomeração de pessoas. Pergunta-se: isso se insere no direito de liberdade religiosa? É correta a recusa da vacinação em nome da religião? É justo promover o missionarismo nas ruas ou em outros locais públicos como interior de ônibus, estações ou vagões de metrô?

O tema esteve em discussão no STF recentemente, após o ministro bolsonarista Kássio Nunes Marques, atendendo o pedido de uma obscura associação de caráter religioso, conceder liminar para vedar o fechamento de templos por governos municipais e estaduais. No julgamento pelo plenário, o STF revogou a liminar e declarou que os governos podem determinar o fechamento dos templos em nome da saúde pública. No episódio, chamou a atenção o fato de o advogado-geral da União, André Mendonça, utilizar argumentos bíblicos para a defesa da abertura dos templos.

O principal ponto a considerar nessa reflexão é que o Estado é laico, natureza institucional definida como princípio constitucional. Trata-se de uma afirmação que todos conhecem, aprenderam a repetir, afirmam concordar, porém parece que poucos alcançam compreender a amplitude axiológica do conceito, seu significado e importância para o sucesso e a paz da sociedade. Não fosse assim, os questionamentos iniciais sequer existiriam.

Como condição indispensável à sua implementação, o estado laico pressupõe a tomada de decisões coletivas sob o enfoque exclusivo do bem comum e, sempre que possível, com fundamento estrito na ciência, ainda que contrariem as convicções dogmáticas dessa ou daquela religião. No rigor, o imperativo de laicidade do estado exige mesmo que a gestão do destino da vida pública – individual, coletiva e institucional – desconsidere por completo os cânones sagrados que regulamentam as inúmeras crenças a que se filiam os seres humanos, seja por respeito aos que professam religiões diferentes, por levar em consideração os ateus ou mesmo porque os ensinamentos de cada fé divergem entre si e dentro de si.

A laicidade não surgiu por acaso na sociedade humana. Seu objetivo, ainda presente, é o de afastar a influência do fanatismo religioso capaz de conduzir (como historicamente já conduziu) à implementação do dogmatismo totalitarista, situação social que, quando ocorre, indefectivelmente produz o efeito de solapar as liberdades individuais. A palavra do sacerdote passa a ser considerada a representação da vontade transcendente do deus da religião que alcançou o poder. A partir daí, autorizam-se as maiores barbaridades, sempre “em nome de deus”, cassando-se os direitos individuais, inclusive a própria liberdade de religião; as pessoas devem se converter à religião adotada pelo Estado ou arriscar-se à morte. A história é repleta de exemplos desse tipo e, não bastasse esse aprendizado, a constatação decorre também da experiência atual em diversos países teocráticos mundo afora que não adotam o laicismo e nos quais pessoas ainda morrem por apostasia, blasfêmia ou heresia.

Em obediência ao princípio laico, o papel social da religião deve ser limitado à orientação do crente quanto à conduta moral a ser observada, tanto como meio de pacificar sua relação com o divino, consigo mesmo e com o outro, como também para a tentativa de salvação de sua alma após a morte. Essa orientação há de ser restrita ao conjunto das pessoas que aderem à crença de cada uma das diversas religiões e seitas. A fé religiosa não pode e não deve ser utilizada para impor politicamente à sociedade o sentido ético-moral por ela considerado correto, sob pena de grave violação à laicidade, o que potencialmente é capaz de romper a paz social e conduzir a uma guerra intestina. Novamente, existem exemplos históricos de ocorrências dessa natureza.

Por outro lado, o direito à liberdade de crença não significa um mandato em branco para as ações do religioso perante a sociedade. Seu fundamento de validade reside na criação de condições materiais que possibilitem ao religioso, sacerdote ou não, o livre exercício do seu papel missionário na disseminação da palavra divina, ou seja, no convencimento do outro à adesão livre e espontânea à filosofia moral adotada pela religião que professa. Foi exatamente isso o que fez Jesus e seus discípulos: ações de convencimento através da palavra mansa e do exemplo da dedicação de amor ao próximo. Não se pode exigir a adesão forçada nem à religião nem à conduta individual que ela professa. O religioso, por exemplo, tem pleno direito de ser contra o aborto em qualquer hipótese e de não praticá-lo; contudo não pode empreender ações, mesmo as pacíficas e muito menos as agressivas, que visem obstaculizar o direito das mulheres que resolverem realizar o procedimento médico, caso exista autorização normativa para tal. É preciso entender que, onde existir pecado no sentido religioso, é deus quem deve julgar e punir, durante a vida ou após a morte, não os homens e menos ainda os que possuem fé no incondicional amor ao próximo que Cristo ensinou. Ou não possuem tanta fé assim no poder divino, seja para salvar o inocente ou punir o culpado? Pecado é diferente de crime, este sim é erro a ser julgado pelos homens.

As mudanças sociais por via da experiência religiosa, se e quando vierem, devem decorrer da conversão natural das pessoas à mesma crença, e consequentemente ao mesmo comportamento, jamais através do uso político da fé ou pela hostilização do profano (no sentido de algo ou alguém externo à crença ou religião). É inadmissível a existência e multiplicação dessa espécie de sacerdote colérico, cada vez mais comum, que, em meio a berros e impropérios ditos “em nome de deus”, se julgam no direito de ofender, hostilizar e incitar a prática de violência contra pessoas estranhas à fé que professam e que, justamente por isso, não se comportam de acordo com o que ele, sacerdote, interpreta subjetivamente como aquilo que os supostos livros sagrados específicos de sua religião dizem ser o certo. O comportamento parece mais afeito ao que Satanás deseja dos indivíduos (ódio, violência e ressentimento) do que a tudo que Jesus professou (amor, entrega e perdão). O incrível é que haja quem siga esses pastores malafaias da vida.

E dentre tantos, qual seria, afinal, o livro sagrado que de fato contém a palavra de deus ou o melhor ensinamento sobre o comportamento ético-moral a ser observado? Bíblia, torá, novo testamento, corão, livro dos mórmons, livro dos espíritas, bíblia satânica, livro do budismo, taoísmo, xintoísmo, antigos escritos egípcios, gregos e nórdicos, zoroastrismo, além de inúmeros outros, tudo isso é ou foi considerado sagrado por milhões ou mesmo bilhões de pessoas. Difícil supor que um religioso cristão gostaria de ser perseguido e considerado herege caso um totalitarismo islâmico fosse imposto à sociedade, com obrigação de professar essa fé para não ser preso, torturado ou morto. Ou vice-versa, que um muçulmano se conformaria com a situação. Há precedentes históricos, como os judeus obrigados a converter-se ao catolicismo na península ibérica. Puro fingimento, dedicavam-se à religião hebraica no recôndito de seus lares. Contudo, quem gostaria de levar uma vida inteira fingindo aceitar os ensinamentos de uma religião que abomina, sempre temendo ser denunciado pelo vizinho? A hipótese de teocracia dogmática comporta apenas uma religião aceita pelo Estado, o que coloca todas as demais na condição de marginais, algumas vezes toleradas, noutras, perseguidas. Esse é também um dos motivos para a ascensão da laicidade na política: a instauração da liberdade religiosa, inclusive para a opção do ateísmo.

Em resumo: o princípio da laicidade impõe que os religiosos pratiquem a sua fé no interior de suas casas e templos, deles não podendo transbordar para o ambiente externo, salvo para a tentativa de convencimento pacífico. Em princípio, o religioso eleito representante político não deveria sequer invocar o nome de seu deus, ou o princípio dogmático religioso no qual crê, no lugar onde exerce sua representação política, seja parlamento ou sede do governo. Somente assim seria possível alcançar o bem comum, a paz social tanto desejada e a plena liberdade de crença. Nesse sentido, um advogado-geral da União invocar versículos bíblicos, em lugar de normas jurídicas, para defender um direito perante a Suprema Corte ultrapassa a barreira do ridículo e induz presunção de incapacidade técnica para o exercício da função, pois revela a prática de óbvia ofensa à constituição praticada dentro de sua morada, o STF.

Nesse ponto da reflexão, já é possível responder aos questionamentos do primeiro parágrafo: para todos a resposta é negativa. Como salientado alhures, o imperativo de laicidade do estado impõe que as decisões políticas sobre o destino da vida pública sejam tomadas com desconsideração dos cânones sagrados. Como dito, textos religiosos são muitos e contraditórios, não somente entre si, mas também no interior de si. Existem sacerdotes que defendem o isolamento, enquanto outros da mesma religião são contra. Assim, resta impossível determinar qual cânone e que interpretação dele devem ser observados. Vale lembrar que mesmo religiões siamesas, como catolicismo e protestantismo, produzem traduções e interpretações distintas dos mesmos livros.

Ademais, ensinamentos de livros sagrados não decorrem de conhecimento metodológico e não se preocupam com relações de causa e efeito, resultando da crença atávica e subjetiva na existência do divino. Em geral e mais pesadamente, o crente desdenha da ciência quando não se sente diretamente ameaçado pela causa. De fato, a ciência descreve com precisão o poder fatal da explosão de artefatos bélicos e não há religioso capaz de fazer pouco disso e segurar uma granada sem pino enquanto reza para deus não a deixar explodir. Daí a presunção de que o pouco-caso com a covid decorra da ausência de exata compreensão da descrição científica do potencial maligno da doença. De certa forma, a presunção se comprova pelos diversos casos de religiosos que, após uma experiência de quase morte de si ou de algum amado, invertem o pensamento e passam a defender a ciência da vacinação e do isolamento.

Por fim, a ciência encontra-se absolutamente madura na questão das formas de disseminação da covid, inexistindo controvérsia séria, fora do Brasil, quanto ao poder da vacinação em massa e do isolamento social. O lockdown é importante para interromper a cadeia de transmissão do vírus entre as pessoas e para a manutenção das condições sanitárias mínimas que possibilitem à saúde pública ser capaz de atender, não somente a covid, mas todas as demais doenças comuns que afligem a população. Na situação atual de descontrole e falta de comando central, todos, inclusive os religiosos, sentem receio de ser acometidos de qualquer doença ou ferimento e ter que comparecer a um hospital. Sabem que o risco de tentar engessar uma perna e acabar morrendo de covid é enorme. Não bastassem as diversas experiências de isolamento bem-sucedidas ao redor do mundo, o município de Araraquara, em São Paulo, forneceu um exemplo perfeito de como é possível um lockdown que sequer foi prolongado fazer despencar a taxa de contaminação e de mortes provocadas pelo coronavírus.

Enfim, a religiosidade, entendida como uma relação direta entre a pessoa e o divino, não representa um problema para a sociedade. Sempre que a ação religiosa é limitada à humildade íntima da fé, no recôndito do próprio lar, pode constituir um alento, um conforto para o espírito. A questão enfrentada no texto decorre em grande medida da religião institucionalizada, da vontade do soberano de cada fé, cujo proveito econômico depende da presença maciça dos crentes no templo. Trata-se de sacerdotes lançando mão de poder, controle e manipulação para atingir objetivos que nada tem a ver com deus. E também da inclinação que os religiosos em geral possuem de tentar impor os ditames de sua fé aos demais membros da sociedade, inclusive os que creem em ensinamentos diferentes professados por outra religião e os que não acreditam em deus algum. Justamente por situações assim é que surgiu o laicismo, para evitar que a fé de alguns se tornasse o problema de muitos. As aglomerações religiosas representam, sim, um grave risco para a coletividade. Em boa hora o STF disse “não”.

 

 

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