Em 27 de fevereiro de 1933, um jovem com apenas 24 anos, de origem holandesa, decidiu solitariamente atear fogo no parlamento alemão (Reichstag). Hitler tinha tomado posse como chanceler (primeiro-ministro) apenas um mês antes e essa foi sua chance para, manejando um falso discurso anticomunista, exterminar por completo toda e qualquer oposição ao seu governo, inclusive com o silenciamento da imprensa. O resto é história e todos conhecem o resultado.
No Brasil de hoje, o presidente encontra-se nas cordas, quase nocauteado, enfrentando enormes dificuldades políticas para implementar a agenda autoritária com que sonha. Por isso, necessita desesperadamente de seu próprio incêndio no Reichstag para consolidar o poder total em suas mãos. É a única saída, não somente para permanecer no poder, mas para exercê-lo sem resistência alguma das instituições democráticas, ou seja, com autoritarismo. Ele jamais ocultou a sua intenção de romper com os princípios democráticos se tivesse poder para tanto. Em diversas entrevistas no passado, sempre sustentou que, eleito presidente, seus primeiros movimentos seriam no sentido de fechar o congresso através de um golpe de Estado. Está muito claro para quem o ouve que esse pensamento antidemocrático não se alterou com o tempo e nem com a eleição para a presidência. Pelo contrário, foi corroborado, logo após a vitória no primeiro turno da eleição, por via da voz do filho Eduardo Bolsonaro, que publicamente declarou que o fechamento do Supremo seria coisa simples, a ser resolvida com a ação de apenas um cabo e dois soldados. E foi novamente reafirmado quando, já presidente da república, apoiou e participou de manifestações bolsonaristas que pediam o fechamento do Congresso e do STF, inclusive com acompanhamento de generais.
O presidente, quando ativo no exército, esteve diretamente envolvido em caso de terrorismo no interior dos quartéis, a “Operação Beco Sem Saída”, ação na qual seriam colocadas bombas nos banheiros dos quartéis para a obtenção de aumento no soldo, em razão do que foi investigado e expulso da corporação. Esse episódio, por si só, demonstra que, ao menos no que toca ao passado, possui personalidade e caráter da espécie necessária à produção de um evento catastrófico para a obtenção de benefício próprio. Presume-se, pois, que não terá pudor em utilizar qualquer farrapo de desculpa para alcançar o objetivo de romper com a democracia, ainda que tenha de criar um falso evento de natureza terrorista a fim de colocar a culpa nos esquerdistas. Tudo para angariar os poderes totais de um estado de sítio que, declarado, não cessará tão cedo. Há precedente histórico, realizado pela ditadura militar que Bolsonaro tanto admira, que é o caso da bomba do Riocentro, que apenas por sorte deu errado. O próprio Bolsonaro parece já ter se apropriado de um acontecimento aleatório para culpar a esquerda, no episódio da facada. Quem sabe um novo atentado fictício, um pouco mais grave talvez, resolva esse pequeno entrave chamado democracia?
Os impulsos antidemocráticos do presidente, nesses dois anos de mandato, foram contidos por circunstâncias estranhas à sua vontade. Por conta de sua personalidade conturbada, inflexível e iracunda, já no primeiro ano de mandato rompeu com grande parte de seus aliados, alguns espantosamente próximos. Brigou e afastou-se inclusive do partido que utilizou para chegar à vitória e com o qual havia conseguido um número expressivo de parlamentares, o que qualquer político racional consideraria bastante importante como condição de governabilidade e buscaria manter. Ele, não! Lixou-se para isso. Dialogar politicamente não integra a semântica política de Bolsonaro, para quem o poder, desde que estando em suas mãos, não deve possuir limite algum, com todos se submetendo à sua “sabedoria” e “diligência”, ainda que à força.
De picuinha em picuinha, o presidente perdeu apoio de um sem-número de aliados importantes de primeira hora, com e sem mandato. Perdendo-os, teve que se submeter ao Centrão, mas ainda resiste em dividir o poder, preferindo manter seu gabinete composto por militares. A opção pelos militares não decorre de confiança na capacidade administrativa dos oriundos da caserna; Pazuello é uma prova incontestável de que isso é um imenso engodo. A inclinação pelos militares decorre, muito mais provavelmente, de saber serem obrigados ao dever de obediência imposto pela hierarquia. Com isso, tenta se escorar na hierarquia para obter o apoio das armas aos seus projetos de poder. Tanto é assim que humilhou os militares com a ridícula exigência de ser chamado de “comandante-em-chefe das forças armadas”. Se lhe derem liberdade de ação, não demora e pedirá para simplificar essa enorme denominação hierárquica, talvez para “líder das forças armadas” ou, quem sabe, simplesmente “líder”, que, em alemão, diz-se “fuhrer”. Já tentou manobrar os militares uma vez, não deu certo. Dispensou os resolutos; tentará novamente. Um dia, se deixarem tentar bastante, pode ser que atinja o alvo da pusilanimidade moral.
Apertando o cerco, ocorre a inesperada elegibilidade de Lula. A notícia tornou Bolsonaro uma barata tonta, sem saber para onde ir, totalmente atarantado. Bota máscara, tira máscara, diz que é o pai da vacina, volta atrás. Tanta confusão mental o levou a supor que poderia dar o golpe de imediato, implantando a sua desejada ditadura e fazendo o Brasil retornar ao degradante papel de república de bananas. Foi impedido, no entanto, pela firmeza moral de generais que resolveram manter-se fiéis aos ditames constitucionais. Para controle do prejuízo, produz uma minirreforma ministerial totalmente imprevista. Cede dois míseros anéis para manter os dedos intactos, saúde e relações exteriores, ainda assim parcialmente, pois nomeia pessoas que não parecem dispostas ou capazes de fazer o que as respectivas pastas necessitam. Mantendo sua tradição de teimosia estulta, resiste, ainda, a entregar o anel do meio ambiente.
Então acontece a decisão do STF exigindo a instauração da CPI da pandemia, na qual os absurdos presidenciais na falta de combate ao covid serão expostos à luz do dia. CPI que tem o potencial de conduzir o general Pazuello a muito dizer sobre o que sabe sobre as loucuras praticadas na gestão da pandemia, inclusive para salvar a própria pele. Para piorar, ocorre a exposição da conversa entre Bolsonaro e o senador Jorge Kajuru, na qual a natureza violenta do ex-tenente novamente é exposta, com ameaça de violência física contra um senador da república, Randolfe Rodrigues, pelo simples fato de ter ele desempenhado, na condição de senador, o papel que lhe cabe como representante de seu estado e do povo. Conversa que gira sobre a inclusão de prefeitos e governadores no âmbito das investigações da CPI e sobre o impeachment de ministros do STF. Enfim, a gravação contém material de prova suficiente para instauração de outra CPI por crime de responsabilidade, pois, em tese, Bolsonaro conspira para interferir nos poderes Legislativo e Judiciário. Não importa se a conversa foi gravada para ser intencionalmente divulgada, num conluio entre os participantes, como muitas pessoas sugerem. Se foi assim, o tiro saiu pela culatra e serviu apenas para reduzir ainda mais a força política do presidente, novamente apresentando sua incapacidade de avaliar a dimensão dos possíveis impactos políticos decorrentes da própria conduta.
O fato concreto é que Bolsonaro, com apenas dois anos de exercício de seu primeiro mandato, tornou-se, na prática, já um “pato manco”, expressão que designa um presidente desempoderado, refém das forças políticas à sua volta e a quem somente resta aguardar o fim do mandato, no tempo regular ou antecipadamente. O problema é que ele não é um “pato manco” normal, daquele que se conformará com essa situação. Fosse assim, e com um pouco de sorte, se arrastaria até 2022, desde que cedesse às vontades do centrão. Esse não parece ser o modus operandi do presidente. Se seguir seus instintos, que é como costuma agir, sem reflexão e sem consideração pelos resultados, tentará de todo modo se fortalecer no poder. Como possivelmente não encontrará ressonância institucional para suas aspirações totalitárias, é muito possível, dados a sua personalidade e o seu histórico de vida pública, que busque alternativas fora do estado de direito e da estrita legalidade para atingir seus objetivos. Sua força, como é notório, não provém do apego às instituições democráticas, Ele se sente amparado pelo poder bélico que supõe deter grupos paramilitares ilegais (milicianos) e parcela rebelde de integrantes das forças armadas e das forças policiais dos estados que não se submetem ao estrito cumprimento de suas obrigações constitucionais. Pode ser coisa de sua cabeça ou não. Pelo sim, pelo não, não vale a pena dobrar essa aposta.
A partir de agora, enfraquecido politicamente e com sua rejeição popular aumentando a cada dia em função do pouco caso com a pandemia e ante um número cada vez maior de mortos decorrentes de sua incúria como administrador público, Bolsonaro se moverá em função de uma ira decorrente da frustração de seus desejos totalitários. Perseguirá ferozmente seu Reichstag. Ele aparenta desejar muito ser chamado de “Mito” ou “Líder” e gozar o prazer de ver todos aqueles braços esticados em sua direção, quem sabe com algum símbolo de pertencimento nas mangas das camisas dos uniformes corretamente enfileirados.
Por isso, mais do que nunca, toda a atenção aos seus movimentos será pouca. As instituições, Congresso e STF, mas também, e talvez principalmente, a parcela responsável das forças armadas e das polícias, não podem relaxar e, de modo nenhum, subestimar a capacidade do atual presidente de ir até as últimas consequências para manter o poder. Quanto aos irresponsáveis, devem ficar cientes de que as condições materiais não são mais as de 1964. A informação agora corre no espaço como um raio e se dissipa entre as pessoas como o vírus da covid. A resistência civil será muito maior e a repercussão internacional negativa responderá imediatamente a ataques à democracia. Não é mais Trump quem controla a maior armada do mundo. A loucura durará pouco e desta feita haverá punições. Não mais valerá a pena.
Na Alemanha, subestimaram Hitler logo no início de seu mandato e deu no que deu. Fiquemos atentos ao nosso imprevisível presidente.
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