segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O fim das eleições


Muitas são as definições existentes sobre o que é a filosofia e o que se busca através dela. Aristóteles pontificava que a filosofia surgia a partir do espanto e da admiração com as coisas do mundo, assim tornando necessária a produção de um discurso capaz de explicar as causas e os efeitos dessas coisas que espantam e admiram.

Muito mais modernamente, e em nosso próprio quintal, o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., numa definição que particularmente aprecio, diz que a filosofia busca desbanalizar o banal. Segundo Ghiraldelli, enquanto o ser humano comum aceita pacificamente as coisas que rotineiramente encontra ao seu redor, como o ar, as águas, as casas, os carros, as pessoas, as árvores e etc, o filósofo olha para essas coisas e, admirado, pergunta-se como, por que, onde e quando.

O filósofo pensa sobre o corriqueiro, coisas que em geral as pessoas sequer enxergam. A visão do comum encontra-se tão entranhada na mente que a consciência não filosófica simplesmente a exclui da condição de objeto de reflexão. A maioria das pessoas, por exemplo, não discute, não pensa, sobre a pobreza, simplesmente por tê-la na condição de inevitabilidade, como algo normal e esperado em qualquer sociedade. Subconscientemente pensam: é assim mesmo que as coisas são e nada irá modificar isso.
Ao nascer, o ser humano, como indivíduo de uma coletividade cultural, recebe dos membros mais velhos da sociedade uma série de informações transmitidas como verdades intransigíveis a serem observadas, sob pena de marginalização e inviabilização de sua permanência na sociedade. Sem a formação de uma consciência crítica, esses dados são simplesmente aceitos como foram repassados, sem que se pense muito sobre o assunto.
No surgimento de uma voz dissonante, que fala sobre uma alternativa social pouco ou jamais experimentada, a reação imediata é a imposição do muro do conservadorismo. O medo do imponderável suscita o desejo de manutenção do status quo. Entre o novo e belo, passível de falha, prefere-se a tranquilidade do antigo e feio, cujas dores suportáveis são familiares.
A afeição pelo rigor do que é conhecido, em detrimento da novidade potencialmente perigosa, explica a convivência mansa do ser humano com mazelas que acometem bilhões de seres humanos pelo mundo afora. Fechamos os olhos para elas. Não as queremos ver, porque incomodam. Acostumamo-nos à pobreza inenarrável da África, à violência dos guetos e das favelas, à fome que grassa parcela considerável da população da maior parte dos países, à corrupção da política, aos problemas de transporte urbano, de saúde, de educação. Tornamo-nos cúmplices silenciosos desses males, por acreditar, num nível talvez subconsciente, que a alternativa é inviável e talvez pior.
Rimos, com ar superior, da pessoa que anacronicamente fala em socialismo. Gargalhamos do sujeito ecochato, alheio à necessidade de progresso da economia e da ciência, que alerta para os perigos da agressão ao meio ambiente. Consideramos ingênuo aquele que fala, sem noção da complexidade da estrutura, em reforma política radical, profunda, com eliminação dos paradigmas atuais.
Desse substrato reacionário, emerge a imprescindibilidade da filosofia como mecanismo de enfrentamento das condições postas e impostas pela ideologia da dominação.
A ideologia da dominação constitui-se, justamente, nessas informações que são retransmitidas ao ser humano a partir de seu nascimento. Seu propósito é o de manter as coisas como estão, mudando apenas o que for absolutamente necessário para a inalterabilidade do comando e da riqueza.
A ideologia incutida desde o berço produz crenças coletivas sinceras, porém equivocadas. Coisas tais como que de fato exista democracia, o que permite a qualquer pessoa que seja eleita presidente de seu país. Que é possível a qualquer um ficar milionário, o que justifica o pleno liberalismo econômico para a iniciativa privada, o máximo possível. Afinal, pensam, não se pode negar às pessoas o direito de conquistarem a própria riqueza.
Quanto à possibilidade de alcançar riqueza e poder, essa ideologia contém muito, muito pouco de verdade, quase nada. São máximas produzidas com o propósito de que coisa alguma, de fato, se modifique. Trata-se de manipular a ganância humana, forma infalível de manter a riqueza no controle de quem já a possui.
É inegável ser possível uma façanha como a de Bill Gates, membro da classe média que virou bilionário. É possível a existência de um Lula, miserável que alcançou a Presidência. Porém, para cada Bill Gates, para cada Lula, centenas de milhões de pobres, talvez bilhões, jamais alcançarão nada além de um prato de comida a cada dia, alguns sequer terão tanta sorte.
Aproveitando a deixa de Paulo Ghiraldelli Jr, pretendo desbanalizar, refletir, sobre uma coisa extremamente banal que, por isso mesmo, não é muito discutida: as eleições. Mais especificamente, sobre a validade das eleições como termômetro confiável da existência de democracia.
Parafraseando Hamlet, há algo de podre no reino da democracia, há algo de podre no reino da sociedade fundada na livre riqueza.
Que há algo de muito errado com a democracia e que a política não mais representa os interesses dos cidadãos, trata-se de sensação comum a grande parte da população, não só do Brasil, mas mundial.
Pode-se desfiar um rosário de causas que colaboram para esse sentimento de desalento com a democracia, porém há um elemento que contribui para isso de forma mais pesada e desequilibra fortemente o valor individual da participação política. Trata-se da intromissão indevida da força econômica no processo democrático. Uma sociedade fundada na prevalência do interesse financeiro é uma sociedade portadora de um câncer na democracia. Se não tratado, ocorre a metástase, o enfraquecimento geral e a morte da democracia. Sociedades, todavia, não morrem, elas se transformam em outra coisa. Quando a democracia morre, nasce o lobo do totalitarismo, disfarçado ou não de cordeiro da liberdade.
O modelo político que autoriza a influência do poder financeiro na escolha democrática dos representantes nada mais faz do que transferir para uma parcela infinitesimal da população a participação efetiva do comando da política e, via de consequência, da decisão sobre a divisão da riqueza. Ou não?
Define-se tradicionalmente democracia como o “governo do povo”. Trata-se de um sistema através do qual cada cidadão possui o direito de participar do governo, se assim desejar. A definição de democracia, sob tal angulação, não se esgota e nem cabe simplesmente na "caixinha" descritiva do permissivo legal de “votar e ser votado”. Na plenitude, democracia deveria ser o sistema político que concede a cada cidadão do povo idênticas liberdade e oportunidade para efetivamente participar do governo, da escolha das políticas públicas. Qualquer sociedade que impeça ou suprima tal isonomia de condições não pode ser classificada de democrata.
Sob tal perspectiva, uma autêntica democracia jamais conseguirá se desenvolver de forma plena em ambientes sociais que privilegiem o poder econômico na escolha dos representantes políticos. Não é necessária muita abstração reflexiva para compreender que os ricos tentarão, sempre e a todo custo, não somente conservar sua riqueza, como aumentá-la ao máximo. Basta a cada um que responda com sinceridade à indagação íntima sobre o que faria se fosse um multibilionário. O homem-médio, respondendo a si mesmo com honestidade, diria que, sim, protegeria seu patrimônio e tentaria ficar ainda mais rico. Até onde cada um iria para efetivar tal proteção é uma questão com respostas possivelmente bem mais diversificadas, mas não são tão poucos assim os que matariam a própria mãe para proteger o patrimônio.
Não há porque se envergonhar dessa admissão (não de matar a mãe, mas de querer manter-se rico e mais rico ainda), trata-se da natureza do ser humano, evolutivamente moldado para se proteger das incertezas do futuro. Não é algo racional, mas uma característica animal atávica, instintiva, formada por milhões de anos de evolução e, por isso mesmo, absolutamente previsível.
Da mesma forma que o homem-médio procederia, os reais bilionários sempre fizeram, continuam a fazer e assim persistirão para sempre se a sociedade permitir. O meio utilizado para materializar essa intenção é a política, ajudando financeiramente a colocar no poder (elegendo, se for o caso) pessoas que se comprometam com eles, com o seu propósito, enfim, com a proteção de seu patrimônio.
Dadas tais circunstâncias, e com a influência do poder financeiro agigantada a partir da flexibilização que a globalização impôs às legislações nacionais no que concerne à supressão das dificuldades para o movimento transnacional do capital, abalou-se a confiança na eleição como termômetro da saúde da democracia e, consequentemente, reduziu-se consideravelmente a confiança nos políticos eleitos como efetivos representantes dos interesses públicos.
Imagine-se a seguinte situação hipotética: alguém consulta um médico, fica ciente de que está com doença potencialmente fatal, recebe uma receita com diversos remédios caríssimos e, após a consulta, fica sabendo que a maior parte dos rendimentos do médico são provenientes de uma determinada indústria farmacêutica, pagos para estimulá-lo a receitar os remédios por ela fabricados. A vida desse paciente depende de um remédio que funcione. Como poderá ter confiança nesse médico ao verificar, em sua receita, que todos os remédios prescritos coincidentemente foram produzidos por aquela fábrica? A maior parte das pessoas, cautelosamente, buscaria uma outra opinião. Essa situação é bastante similar à vivenciada na política atual, não somente no Brasil, mas no mundo.
De modo geral as empresas, principalmente as do setor financeiro (bancos e seguradoras) e as grandes empreiteiras, custeiam, virtualmente, cem porcento das campanhas eleitorais, direcionando todo esse maciço de dinheiro para os candidatos que representam os seus próprios interesses. Não agem assim por um honrado espírito público, pelo imperativo categórico de perseguir o bem-comum, quem dera fosse. Fazem o que fazem para garantir a eleição de seus escolhidos, os quais, após eleitos, atuam como seus procuradores, ou despachantes, nos poderes da República. Mesmo os candidatos que, milagrosamente, conseguem escapar desse círculo vicioso e são eleitos sem apoio empresarial, passam a ser assediados pelos lobistas das empresas, que buscam comprar seus apoios. Claro, sempre em troca de algo. Muitos sucumbem em função daquele mesmo atavismo do qual se falou no primeiro e no segundo parágrafos.
Não se criem ilusões. Nenhum sistema político no mundo, nem hoje, nem no passado, logrou inibir a interferência econômica no ambiente político. A força individual - física, militar ou econômica - não somente precede, mas criou o Estado. Portanto, desde o princípio, a política representa o meio histórico de controle social pelos ricos. De fato, sempre foi assim, mas... pode melhorar um pouco.
A democracia é inarredável, dela não se podendo abrir mão, seja no regime político que for. Contudo, ela pode ser diferente, pode ser mais democrática.
O primeiro passo firme em direção a essa mudança é abandonar a ilusão criada e mantida de que há alguma coincidência entre o interesse do rico e o interesse da grande massa da população humana. Nunca houve, nunca haverá. Em termos econômicos, a sociedade necessita de criadores de emprego e estes necessitam de empregados. E cessa aí qualquer identidade. Daqui em diante, somente conflitos.
O interesse do dono do capital é criar regulações que lhe permitam crescer, crescer e crescer, sem limites, a fim de ampliar ao infinito o próprio capital. Ao mesmo tempo, busca evitar que outras pessoas (os competidores) consigam o mesmo. Só há uma maneira de alcançar esse resultado: transferir todo o dinheiro, que está repartido em cada bolso de cada pessoa e em cada cofre de cada empresa, para o próprio bolso. Antes, havia um mercadinho em cada rua, depois passou a existir um supermercado em cada bairro, agora estão se formando grandes conglomerados do varejo, como o Wallmart. No futuro, poderá haver um desses em cada cidade e só. Isso ocorre em praticamente todos os segmentos empresariais, como comprova a nossa própria Ambev, cujo alvo parece ser se tornar a única fabricante de cerveja do mundo.
Em outras palavras, o capitalismo, se totalmente liberto de amarras seguras, não é um sistema econômico que busca privilegiar a democracia, mas somente a liberdade de enriquecer e destruir os que se opõem a esse crescimento. Disso decorre que o interesse do capital é oposto ao interesse do povo, já que a fragmentação do capital é interessante para a população, produz mais emprego e mais riqueza comum.
O povo quer o bem-estar social, que custa muito dinheiro aos governos, enquanto o capitalista quer que o máximo desse dinheiro vá para o seu bolso e não para o povo. Há aqui a luta entre o estado de bem-estar social e o estado mínimo.
A democracia, por definição, é altruísta, almeja o bem geral de todos. O capitalismo liberal, também por definição, é egoísta, busca a riqueza individual ilimitada de poucos.
São, portanto, incompatíveis e, por isso mesmo, como toda coisa selvagem e sem controle, o capitalismo necessita de rédeas fortes ou de uma jaula segura para que as pessoas não sejam atacadas e mortas por ele, como estão sendo. A mesma lei, portanto, que pode ser entendida como aprisionadora do capital, possui natureza libertadora em relação aos demais seres humanos.
O dono do capital, pois, como mero indivíduo, um ser humano único como todos os demais, deve ter exatamente a mesma influência política que é dada a todos os indivíduos da população. A sua propriedade não pode servir como alavanca ampliativa de seu poder político.
Um segundo passo importante a ser dado é na direção de uma mudança radical no sistema político democrático. A história nos apresenta o fracasso do sufrágio universal como meio eficaz de atingir efetivamente a democracia. Não existe um só exemplo histórico de autêntica representatividade popular democrática alcançada pela via do voto popular. Não algum que seja livre do peso do poder do dinheiro. Portanto, cabe adotar um modelo jamais experimentado em grande escala antes, à prova de falhas e de influência no ânimo e na vontade popular. Ao que parece, só há um meio eficaz, revolucionário, de evitar a influência do poder financeiro sobre o controle da política: a total e completa extinção das eleições como meio de seleção dos representantes públicos.
Não se trata de algo absolutamente inédito, apenas muito pouco utilizado no decorrer da História. Na Grécia clássica, o sorteio era uma das práticas utilizadas no trato da coisa pública. Aristóteles considerava o sorteio a forma mais democrática, pois possibilitava que qualquer cidadão exercesse um cargo no poder.
Uma reflexão séria sobre a natureza humana e sobre os limites da lei revela que não há método seguro de controlar a preponderância do interesse financeiro sobre o interesse popular. Nenhum comportamento humano deixa de existir em função de ter sido declarado ilícito, como é exemplo qualquer crime comum.
Nem mesmo o saudável financiamento público das campanhas é capaz disso, pois é um modelo que não logra inibir completamente a possibilidade de influência do dinheiro, de forma sub-reptícia, no processo eletivo. Por exemplo, não será capaz de impedir o famigerado caixa dois de campanha. Ainda que a ocorrência de caixa dois seja reduzida por algum receio da punibilidade, a influência do dinheiro oculto ainda será possível diretamente no partido político, no militante ou no futuro candidato, mesmo antes das eleições, no processo de criação do próprio partido e na escolha das candidaturas.
Ao que parece, apenas um modelo é capaz de impedir de forma absoluta a influência do capital e tornar, de fato, todos iguais no processo de escolha dos representantes do povo: o método do sorteio entre os eleitores.
Resumidamente, aviso logo que sem metodologia e apenas como exercício de reflexão, trata-se de escolher cada representante popular por sorteio, entre todos os eleitores cadastrados que se interessem em concorrer.
Dificuldade técnica não há. Todos os eleitores são cadastrados em escritórios ou cartórios eleitorais. Assim, em tese, basta que os cidadãos interessados em participar ativamente do governo declarem essa intenção ao cartório eleitoral, que fará o sorteio dos cargos dentre aqueles que manifestarem o mesmo interesse e possuírem passado ilibado, sem condenação criminal.
Não existem salvadores da pátria e ninguém é insubstituível. Um país com milhões de habitantes necessariamente possui uma parcela considerável de pessoas aptas ao exercício do poder. E a participação política é um direito-dever do cidadão, de modo que a possibilidade de exercê-la deve ser ampliada ao máximo possível de indivíduos.
Trata-se de um modelo bastante diferente dos que foram majoritariamente tentados na experiência histórica no que concerne à participação democrática dos cidadãos na política.
Se adotado, certamente seria capaz de dar nova feição ao ambiente político moderno, hoje quase completamente sufocado e corrompido pela expressividade do poder econômico, ao ponto de Baumann ter concluído que chegamos ao grau zero de política, ou seja, ao ponto em que a política não é capaz de refletir as utopias e esperanças dos eleitores, limitando-se à prática de ações favoráveis aos conglomerados ou daquelas que beneficiem os próprios interesses dos "representantes populares".
Esse é o ponto de partida da reflexão. Claro que é possível imaginar acréscimos e salvaguardas para melhorar o sistema de sorteio. Exemplificativamente, a escolha do sorteio poderia recair sobre mais do que um eleitor para cada vaga e, entre eles, se realizar uma prova de capacitação mínima, o que garantiria o direito democrático de participação, mas também que o Estado não venha a ser composto por pessoas sem a mínima condição de raciocínio próprio. É uma forma de elitismo, sem dúvida, mas deve-se lembrar que não existe direito absoluto e que o interesse público está acima do particular. Para mitigar a elitização, poderia ser uma prova que privilegiasse mais evidenciar a sabedoria social e política de cada um do que um conhecimento mais elevado e específico dessa ou daquela área do saber humano.
Também é possível imaginar a imposição de mandato único e total impedimento de aumento da riqueza familiar durante o período de cumprimento do mandato.
Como dito, não existem salvadores da pátria e um mandato único, de quatro, cinco ou mais anos, aumentaria a possibilidade de participação do maior número possível de cidadãos no governo e impediria a formação de uma elite de políticos profissionais.
Um cadastro apurado dos eleitores poderia identificar sua coloração política, o que poderia ser objeto de regulação para que as vagas fossem preenchidas proporcionalmente às utopias individuais.
Um conselho de notáveis, escolhidos democraticamente entre as diversas organizações civis representativas, com direito de veto instituído por regulação devida e adequada, seria capaz de mitigar ou impedir ações de governo desastradas.
Enfim, é possível pensar em diversos mecanismos de auxílio à democracia representativa por sorteio, como hoje já existem em benefício da democracia por sufrágio.
Parodiando a célebre frase de campanha de Obama, sim, nós podemos mudar. Basta a coragem de pensar sobre o banal, sobre o tido e havido como inevitável, e assumir a necessidade de mudá-lo, aceitando o desafio de implementar o novo.

A ideia é um tanto louca, de fato, mas já não vivemos nós num modelo louco?

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