Fundamentalismo
religioso não é, como pode aparentar, o fanatismo da fé que conduz
ao completo abandono da racionalidade pelo indivíduo e o faz
cometer, em nome dos deuses, todo tipo de ato insano.
É
possível a coexistência de um fundamentalismo de fé com o uso da
razão, evitando que o crente fique totalmente cego à palavra de
outro ser humano, o pastor. Nesse caso, o fundamentalista da fé
agirá exclusivamente de acordo com o seu entendimento acerca dos
ensinamentos religiosos, ou seja, daquilo que interpretar que emana
dos livros sagrados, recusando-se a pautar seu comportamento pela
interpretação alheia.
O
fundamentalismo religioso racional é capaz de evitar o fanatismo
irracional.
Fanatismo
religioso é mais do que a mera fé superdimensionada. Na verdade,
pode-se afirmar que sua existência independe mesmo de fé. Um
religioso sem fé, mas obediente às regras religiosas por alguma
espécie de conveniência pessoal - medo ou ambição -, pode se
tornar um fanático de uma forma ainda mais perigosa do que a do
fanático com fé.
Nessa
perspectiva, o fanatismo religioso se caracteriza por uma submissão
tão completa do seguidor da religião aos dogmas de sua igreja, que
a palavra do sacerdote, como suposta representação da vontade
transcendente, é suficiente como autorizador de sua conduta, seja
ela qual for, sem limites.
Com
fé ou sem fé, a religião é, de modo geral, um poderoso
instrumento alienador da condição humana racional. Abdicando de sua
própria vontade em nome da vontade ditada pelo livro sagrado ou pelo
sacerdote, o ser humano aliena-se de sua capacidade intelectiva, de
sua razão, e age estritamente de acordo com os interesses do templo
a que pertence, interesses esses nem sempre direcionados aos
desígnios divinos.
Claro
que pessoas existem que não perdem o uso crítico da razão ainda
que mantendo a sua fé. Essas, porém, representam a minoria dos que
frequentam templos e, quanto a elas, a história possui exemplos de
que, num momento crítico, serão perseguidos como hereges por
descumprirem a palavra do sacerdote. Em outras palavras, num momento
de tensão histórica, o religioso crítico e o ateu são queimados
na mesma fogueira.
A
grande massa religiosa, formada pela população com menor acesso ao
conhecimento, é cega para as contradições de sua instituição
religiosa. Isso significa que, ainda que venham a perceber, pela
interpretação direta dos ensinamentos de sua seita ou religião,
que a palavra da instituição é distorcida em relação aos
ensinamentos, em geral se submeterão à palavra da instituição,
tanto pelo forte sentimento de pertencimento, como também porque, no
mais das vezes, a instituição é a principal, ou única, intérprete
oficial da real intenção que subjaz aos ensinamentos divinos, à
palavra dos deuses.
Caso
a contradição seja de tal ordem que não se possa contornar, então
pacifica-se a inquietação íntima através da atribuição da força
de um mistério da fé, indiscutível e que deve ser aceito acima da
razão e da compreensão, sob pena de heresia e excomunhão. Exemplo
dessa espécie de contradição pacificada pelo mistério da fé pode
ser observada em relação ao homicídio e ao suicídio, que
virtualmente todas as religiões condenam, o que não evitou no
passado, nem evita no presente, que assassinatos e suicídios, não
somente sejam perdoados se feitos em nome dos deuses, mas sejam
determinados pelos sacerdotes, como oferenda para os deuses, às
vezes com promessa de recompensa na vida pós-morte.
O
dogmatismo religioso cego, capaz de manipular as massas, com todas as
suas maléficas possibilidades, foi o mote para que a modernidade
afastasse de vez a religião da política, instituindo-se o estado
laico em todas as democracias modernas.
O
estado laico pressupõe, é sua condição indispensável, que as
decisões coletivas sejam analisados unicamente pelo enfoque do bem
comum, ainda que possivelmente contrariando a vontade dos deuses.
Como exemplo, um estado legitimamente laico deve agir despreocupado
quanto à posição das religiões no que concerne à orientação
sexual das pessoas. Todo cidadão é, acima de tudo, um ser humano
cuja preferência sexual constitui escolha de cunho reservado,
privado, afeto ao seu foro íntimo.
Relacionamentos
românticos ou sexuais do cidadão não são preocupações do estado
pois são incapazes de provocar, apenas por sua existência, qualquer
violência, física ou moral, ao próprio indivíduo ou ao outro.
Caso alguém se sinta abalado moralmente pela mera ciência de algum
relacionamento sexual que considere pervertido, a causa do abalo
certamente decorre de sua própria suscetibilidade e não do
comportamento reservado do outro.
Os
homossexuais, como pessoas e como cidadãos, devem gozar exatamente
dos mesmos direitos e prerrogativas concedidos indistintamente a
todos os demais cidadãos, inclusive a consolidação de seus laços
familiares, como casamento civil e paternidade.
Quando
decisões dessa natureza passam a ser manipuladas pela orientação
religiosa, estamos diante de um grave problema em relação ao
mandamento constitucional de laicidade do estado.
Atualmente
no Brasil, supostamente em nome de seus respectivos deuses, a bancada
religiosa manobra o parlamento em relação à regulamentação do
casamento civil homossexual, almejando adequar a legislação,
aplicável a todo o povo, de todas as religiões e também aos ateus,
às escrituras sagradas. Aceitar isso abre um precedente sombrio,
pois, no futuro, tal bancada poderá conduzir o Brasil à guerra
também por motivo religioso. Ou nos fazer retornar à Idade Média,
tipificando como crime a homossexualidade, a heresia ou a prática de
religiões consideradas “satânicas”, como o espiritismo ou o
candomblé. Dependendo do tamanho da bancada religiosa, é possível
imaginar a aprovação de reforma constitucional que transforme o
Brasil numa teocracia cristã. Por improvável que seja, isso é
possível desde que o país siga aceitando o afrouxamento da
laicidade em pequenas doses. A permissão de eleição de
parlamentares estruturalmente vinculados a igrejas é o primeiro
passo. Depois virão os prefeitos, os governadores e, finalmente, os
presidentes da república.
Claro
que políticos religiosos existem e não se pode imaginar cassar seus
direitos políticos e democráticos. Não é disso que se está falando. O problema
tratado guarda relação estrita com os políticos que possuem
vinculação íntima, estrutural, com alguma religião, seja como
sacerdote, seja participando de sua criação e gestão, de forma
pública ou dissimulada. Esses não deveriam participar do processo
político-partidário.
O
grande “xis” da questão, que merece profunda reflexão, é o
poder de manipulação política das igrejas, tanto pelo aspecto da
fé religiosa, como em função de seu poder econômico.
As
igrejas cristãs são incrivelmente ricas e não hesitam em utilizar
dinheiro para a propagação de seus ideais, como demonstram as
incontáveis aquisições de rádios, televisões, jornais, revistas,
sites e todo tipo de mídia. Através dessa rede de divulgação, e
principalmente pela palavras dos ministros no interior de seus
templos, padres e pastores orientam indiretamente a política
nacional através da manipulação do voto de seu rebanho. Por conta
disso, e não bastasse essa influência indireta, já por si
perniciosa, a bancada cristã é hoje uma das maiores, se não a
maior, do Congresso, o que lhes concede, às igrejas como um bloco,
orientação política direta nos rumos nacionais.
Não
é difícil imaginar, em futuro recente, o Congresso Nacional sendo
dominado pelas diversas facções cristãs, com maioria absoluta dos
parlamentares composta por sacerdotes ou representantes das igrejas.
O
estado laico está, assim, sob ataque feroz, encontra-se sob risco.
Imaginar que o voto em “bispos” purificará a política do país
demonstra mera ingenuidade sobre a real atuação das igrejas e seus
ministros, seres humanos, como os demais, inclusive no que concerne
ao apego ao dinheiro e ao poder.
A
separação entre divindade e secularidade não surgiu do acaso. O
poder secular em mãos da igreja já produziu muito mal no passado. A
história é rica em exemplos de guerras e violências extremas
originadas do binômio matrimonial religião-estado.
Por
conta de um apego formal e simplista ao conceito de democracia, e por
uma certa frouxidão moral dos atuais parlamentares e dos eleitores,
está-se permitindo que a religião novamente influencie a direção
política de um país, o nosso país.
O
imperativo de laicidade do estado exige que membros das igrejas sejam
afastados da vida pública institucional. Padres, pastores,
sacerdotes de toda espécie devem ser considerados inelegíveis e
inaptos para as funções de estado. O seu mister está vinculado à
pregação da conduta moral em vida como tentativa de salvação da
alma após a morte. Pelos motivos ressaltados no início do texto, os sacerdotes e seus representantes são candidatos absolutamente desiguais em relação aos não religiosos, pois podem contar com a manipulação do fanatismo religioso. Um sacerdote afirmar que seu candidato é o candidato de Deus é uma propaganda política desigual, sem paralelos, que desorienta o eleitor e mistifica algo que não deveria ser manipulado de forma alguma: a liberdade psicológica do eleitor de votar no melhor candidato do mundo terreno e não no melhor candidato do paraíso celeste.
Por outro lado, a palavra do senhor, a orientação religiosa, os ensinamentos
divinos para esse propósito possuem um terreno próprio no seio do
qual o governo não deve, da mesma forma, se intrometer: o templo, o
local sagrado. É lá o púlpito de onde o pastor deve dirigir-se ao
rebanho.
A
César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Que se cumpra
essa palavra.
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