/Khoi-thaa
(o símbolo “/” significa um estalido tonal línguo-dental) olhou
em volta e avistou uma pequena rocha com formato arrendondado,
exatamente como havia desejado.
Movimentando-se
como um felino, devagar e silenciosamente, dirigindo-se para apanhar
a rocha, /Khoi-taa permitiu-se produzir um pequeno e silencioso
estalido de felicidade, com a ponta da língua apertando a parte de
trás de seus dentes da frente.
Pequeno
e bastante esguio, /Khoi-thaa era um típico san, com seus olhos
puxados, quase orientais, apesar de ser um povo do Kalahari africano.
Vestia apenas uma pequena tanga de couro em volta da cintura, com uma
funda também de couro pendurada em um dos lados. Enfeitando sua
cabeça havia outra cabeça, essa escavada, de um pequeno antílope,
com o couro ainda prendendo dois pequenos chifres que agora pareciam
emergir da cabeça do próprio /Khoi-thaa.
Uma
cabeça com dois chifres surgindo acima do capim da savana é
apropriada para quem não deseja assustar outro antílope. Ainda
assim, o efeite lhe conferia um aspecto um tanto amendrontador, como
um ser híbrido de animal e humano.
Com
arco e aljava de flechas em seu ombro esquerdo, /Khoi-thaa era um
caçador experiente, que cumpria sempre o ritual aos deuses,
besuntando as pernas com sangue de antílope para proteção e sorte.
Pegou
a pedra e, olhando para ela, agradeceu-lhe silenciosamente por
auxiliá-lo na caça, desejando que ela não se ferisse na
empreitada, que não deixasse fugir seu vento. Depois, pegou sua
funda e ajeitou a pedra no couro, segurando-a pelas duas pontas.
Ergueu os olhos e avistou o antílope a poucos metros de onde estava.
Orou para o deus /Kaggen, o louva-deus, pedindo-lhe que o vento da
sorte soprasse em seu favor. Ajeitou-se, arrumando uma posição
adequada para o lançamento, e começou a rodopiar a funda, no início
lentamente e gradativamente conferindo-lhe velocidade.
O
antílope de início nada percebeu. Porém, o zunido da funda, à
medida do aumento da velocidade, aumentou e despertou a curiosidade
do belo animal. Ele olhou na direção do som e avistou um estranho
animal, com chifres de filhote e que estava apoiado nas patas
traseiras, como se pretendesse disputar uma fêmea. Ficou confuso,
pois não havia fêmea por perto. Por cautela, o antílope arriou
suavemente o dorso e cravou as patas traseiras no chão, pronto para
iniciar uma corrida. Mas ficou ali, plantado, pois o estranho animal
não saiu do lugar, limitando-se a realizar um movimento até então
desconhecido, circular, com uma das patas dianteiras enquanto
permanecia em pé sobre as traseiras. O antílope não via a funda e,
na verdade, jamais chegou a vê-la.
/Khoi-taa
assegurou-se da direção do lançamento e soltou uma das pontas da
funda. A pequena rocha circular iniciou a sua viagem pelo ar, veloz.
E encontrou-se com a testa do infeliz antílope. Um tiro certeiro. O
vistoso animal, com sua imensa galhada de um macho adulto, as costas
marrons e o ventre branco, tombou sobre o chão, contorcendo-se em
convulsões.
/Khoi-taa,
desta vez, gargalhou, pulou e produziu um estalido de felicidade bem
mais sonoro. Correu em direção ao antílope, sentou-se próximo e
aguardou que o vento do deus que habitava o antílope soprasse para
fora do corpo ferido e abatido, tornando-o assim um alimento. Olhou
para os céus, mas não podia ver as estrelas, pois era o reino do
deus sol. Se pudesse ver as estrelas, saberia o momento exato da
morte, pois as estrelas sempre sabem quando algo ou alguém morre.
/Khoi-taa
tinha acesso ao /gi, o poder de caminhar pelos três mundos. O mundo
intermediário era a terra dos san, posicionada entre o mundo dos
seres do céu e o mundo dos seres subterrâneos. Os três mundos
nasceram de um sonho de /Kaggen, o deus maior, o deus criador de tudo
e de todos. Apesar de ter o !gi, /Khoi-taa não podia conversar com
/Kaggen. Somente os maiores xamãs, já idosos e experientes,
possuíam esse privilégio, após se tornarem /Kaggen-ka!kwi, homens
louva-deuses. Somente eles estavam livres para caminhar pelos três
mundos à todo momento, sempre que quisessem.
/Khoi-taa
ainda era relativamente moço, tinha muito a aprender. Podia apenas
orar para /Kaggen, o louva-deus, mas não ter acesso a ele. Contudo,
depois de ingerir bastante cerveja feita com as raízes maceradas da
árvore da vida, depois de dançar e rodopiar ao som ritmados dos
tambores, /Khoi-taa entrava em transe e alcançava o estado de !gi.
Seu eu estava livre para sair pelo chacra existente no alto de sua
cabeça e viajar.
Nesse
estado de consciência ampliada, /Khoi-taa está fisicamente morto e
seu coração torna-se uma estrela, enfeitando o céu noturno por
quanto tempo durar o transe. Nesse transe, sua consciência atinge o
kukummi, o sonho da verdade de todas as histórias. Apesar de não
poder falar diretamente com /Kaggen, lhe é permitido caminhar entre
os mundos e pedir pela saúde dos outros sans.
Por
vezes, deuses malignos, do alto do céu ou das profundezas da terra,
munidos de seus arcos de poder, retiravam das aljavas divinas flechas
contendo doenças e outros infortúnios e as lançavam sobre um san.
Quando caminhava no mundo sobrenatural, /Khoi-taa pedia por esses
sans desafortunados. Outros deuses, bondosos, podiam lançar as
flechas da cura e da sorte para auxiliar aqueles que foram atingidos
pelas flechas do azar. Mas /Khoi-taa ainda não tinha alcançado o
conhecimento, seu poder e seu kukummi eram fracos.
Nem
sempre seus pedidos eram atendidos. Por vezes o san flechado pela
doença morria. Nesse exato momento, em que o vento deixava o corpo,
uma estrela piscava no céu. As estrelas choram por todos os sans,
quando o vento da morte lhes belisca a face.
/Khoi-taa
avistou a pequena rocha redonda próxima ao antílope abatido.
Pegou-a com as duas mãos, fechou os olhos e agradeceu por sua ajuda
em conseguir o alimento. Todas as coisas foram feitas por /Kaggen e
todas possuem o seu vento dentro de si, mesmo a pedra. Quando um san
morre, sua coisas devem ser queimadas e quebradas para que seus
ventos se libertem e acompanhem o vento do san em direção ao
próximo mundo. Quando isso ocorre, o cabelo do san transforma-se em
uma nuvem, protegendo a aldeia e os amigos.
O
antílope finalmente parou de se movimentar. Seu vento se fora.
/Khoi-taa ajoelhou-se próximo à cabeça do animal, estendeu ambas
as mãos espalmadas em direção a ele, fechou os olhos, pediu perdão
aos deuses pela necessária morte de uma criatura. Depois, encostou
sua mão direita no pêlo do antílope, pondo a outra no próprio
coração, e agradeceu ao deus cujo vento ali habitara pela
oportunidade concedida de dar alimento para si e para sua tribo.
Depois, ergueu o antílope, atirando-o sobre o ombro, e iniciou sua
caminhada em direção à tribo. Hoje haveria alimento.
Quando
a lua vencesse o sol, a noite encontraria música e dança.
O
pequeno /Khoi-taa sorriu.
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