terça-feira, 6 de maio de 2014

/Khoi-thaa, o san


/Khoi-thaa (o símbolo “/” significa um estalido tonal línguo-dental) olhou em volta e avistou uma pequena rocha com formato arrendondado, exatamente como havia desejado.
Movimentando-se como um felino, devagar e silenciosamente, dirigindo-se para apanhar a rocha, /Khoi-taa permitiu-se produzir um pequeno e silencioso estalido de felicidade, com a ponta da língua apertando a parte de trás de seus dentes da frente.
Pequeno e bastante esguio, /Khoi-thaa era um típico san, com seus olhos puxados, quase orientais, apesar de ser um povo do Kalahari africano. Vestia apenas uma pequena tanga de couro em volta da cintura, com uma funda também de couro pendurada em um dos lados. Enfeitando sua cabeça havia outra cabeça, essa escavada, de um pequeno antílope, com o couro ainda prendendo dois pequenos chifres que agora pareciam emergir da cabeça do próprio /Khoi-thaa.

Uma cabeça com dois chifres surgindo acima do capim da savana é apropriada para quem não deseja assustar outro antílope. Ainda assim, o efeite lhe conferia um aspecto um tanto amendrontador, como um ser híbrido de animal e humano.
Com arco e aljava de flechas em seu ombro esquerdo, /Khoi-thaa era um caçador experiente, que cumpria sempre o ritual aos deuses, besuntando as pernas com sangue de antílope para proteção e sorte.
Pegou a pedra e, olhando para ela, agradeceu-lhe silenciosamente por auxiliá-lo na caça, desejando que ela não se ferisse na empreitada, que não deixasse fugir seu vento. Depois, pegou sua funda e ajeitou a pedra no couro, segurando-a pelas duas pontas. Ergueu os olhos e avistou o antílope a poucos metros de onde estava. Orou para o deus /Kaggen, o louva-deus, pedindo-lhe que o vento da sorte soprasse em seu favor. Ajeitou-se, arrumando uma posição adequada para o lançamento, e começou a rodopiar a funda, no início lentamente e gradativamente conferindo-lhe velocidade.
O antílope de início nada percebeu. Porém, o zunido da funda, à medida do aumento da velocidade, aumentou e despertou a curiosidade do belo animal. Ele olhou na direção do som e avistou um estranho animal, com chifres de filhote e que estava apoiado nas patas traseiras, como se pretendesse disputar uma fêmea. Ficou confuso, pois não havia fêmea por perto. Por cautela, o antílope arriou suavemente o dorso e cravou as patas traseiras no chão, pronto para iniciar uma corrida. Mas ficou ali, plantado, pois o estranho animal não saiu do lugar, limitando-se a realizar um movimento até então desconhecido, circular, com uma das patas dianteiras enquanto permanecia em pé sobre as traseiras. O antílope não via a funda e, na verdade, jamais chegou a vê-la.
/Khoi-taa assegurou-se da direção do lançamento e soltou uma das pontas da funda. A pequena rocha circular iniciou a sua viagem pelo ar, veloz. E encontrou-se com a testa do infeliz antílope. Um tiro certeiro. O vistoso animal, com sua imensa galhada de um macho adulto, as costas marrons e o ventre branco, tombou sobre o chão, contorcendo-se em convulsões.
/Khoi-taa, desta vez, gargalhou, pulou e produziu um estalido de felicidade bem mais sonoro. Correu em direção ao antílope, sentou-se próximo e aguardou que o vento do deus que habitava o antílope soprasse para fora do corpo ferido e abatido, tornando-o assim um alimento. Olhou para os céus, mas não podia ver as estrelas, pois era o reino do deus sol. Se pudesse ver as estrelas, saberia o momento exato da morte, pois as estrelas sempre sabem quando algo ou alguém morre.
/Khoi-taa tinha acesso ao /gi, o poder de caminhar pelos três mundos. O mundo intermediário era a terra dos san, posicionada entre o mundo dos seres do céu e o mundo dos seres subterrâneos. Os três mundos nasceram de um sonho de /Kaggen, o deus maior, o deus criador de tudo e de todos. Apesar de ter o !gi, /Khoi-taa não podia conversar com /Kaggen. Somente os maiores xamãs, já idosos e experientes, possuíam esse privilégio, após se tornarem /Kaggen-ka!kwi, homens louva-deuses. Somente eles estavam livres para caminhar pelos três mundos à todo momento, sempre que quisessem.
/Khoi-taa ainda era relativamente moço, tinha muito a aprender. Podia apenas orar para /Kaggen, o louva-deus, mas não ter acesso a ele. Contudo, depois de ingerir bastante cerveja feita com as raízes maceradas da árvore da vida, depois de dançar e rodopiar ao som ritmados dos tambores, /Khoi-taa entrava em transe e alcançava o estado de !gi. Seu eu estava livre para sair pelo chacra existente no alto de sua cabeça e viajar.
Nesse estado de consciência ampliada, /Khoi-taa está fisicamente morto e seu coração torna-se uma estrela, enfeitando o céu noturno por quanto tempo durar o transe. Nesse transe, sua consciência atinge o kukummi, o sonho da verdade de todas as histórias. Apesar de não poder falar diretamente com /Kaggen, lhe é permitido caminhar entre os mundos e pedir pela saúde dos outros sans.
Por vezes, deuses malignos, do alto do céu ou das profundezas da terra, munidos de seus arcos de poder, retiravam das aljavas divinas flechas contendo doenças e outros infortúnios e as lançavam sobre um san. Quando caminhava no mundo sobrenatural, /Khoi-taa pedia por esses sans desafortunados. Outros deuses, bondosos, podiam lançar as flechas da cura e da sorte para auxiliar aqueles que foram atingidos pelas flechas do azar. Mas /Khoi-taa ainda não tinha alcançado o conhecimento, seu poder e seu kukummi eram fracos.
Nem sempre seus pedidos eram atendidos. Por vezes o san flechado pela doença morria. Nesse exato momento, em que o vento deixava o corpo, uma estrela piscava no céu. As estrelas choram por todos os sans, quando o vento da morte lhes belisca a face.
/Khoi-taa avistou a pequena rocha redonda próxima ao antílope abatido. Pegou-a com as duas mãos, fechou os olhos e agradeceu por sua ajuda em conseguir o alimento. Todas as coisas foram feitas por /Kaggen e todas possuem o seu vento dentro de si, mesmo a pedra. Quando um san morre, sua coisas devem ser queimadas e quebradas para que seus ventos se libertem e acompanhem o vento do san em direção ao próximo mundo. Quando isso ocorre, o cabelo do san transforma-se em uma nuvem, protegendo a aldeia e os amigos.
O antílope finalmente parou de se movimentar. Seu vento se fora. /Khoi-taa ajoelhou-se próximo à cabeça do animal, estendeu ambas as mãos espalmadas em direção a ele, fechou os olhos, pediu perdão aos deuses pela necessária morte de uma criatura. Depois, encostou sua mão direita no pêlo do antílope, pondo a outra no próprio coração, e agradeceu ao deus cujo vento ali habitara pela oportunidade concedida de dar alimento para si e para sua tribo. Depois, ergueu o antílope, atirando-o sobre o ombro, e iniciou sua caminhada em direção à tribo. Hoje haveria alimento.
Quando a lua vencesse o sol, a noite encontraria música e dança.

O pequeno /Khoi-taa sorriu.

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