Os
primeiros pensadores a se preocupar com a noção de justiça, como
não podia deixar de ser, foram os gregos clássicos.
Aristóteles,
embora admitindo que elaborar um conceito de justiça era quase
impossível por tratar-se de um ideal moral muito impreciso,
pontificou que o ato de justiça envolvia conceder tratamento igual
aos iguais e desigual entre os desiguais.
O
que isso significa? Significa que, enquanto é justo, por exemplo,
tratar da mesma forma duas pessoas ricas, assim não seria se o
tratamento isonômico atingisse um rico e um mendigo. Deste modo, uma
sociedade justa deveria se pautar por regras morais e legais que
observassem as peculiaridades dos indivíduos.
Disse
decorre que, hipoteticamente, a subtração de coisa alheia praticado
por uma pessoa rica deveria ser penalizada mais severamente do que a
mesma subtração se praticada por um pobre. Isso porque a
necessidade material que se presume no pobre, e que pode conduzi-lo
ao ilícito por necessidade, inexiste no rico, que pratica o delito
por prazer ou outros motivos menos desculpáveis.
A
crítica a Aristóteles, aqui, reside na circunstância de que seu
conceito de justiça não dá conta de explicar a justiça em sua
dimensão social, pois é restrito à aplicação das regras, não à
condição da existência individual. Nesse sentido, dois mendigos
poderão ser submetidos a regramento idêntico entre si e diferente
daquele imposto aos ricos, porém continuarão mendigos, do que
resulta o questionamento inevitável: é justa a existência de
mendigos?
São
Tomás de Aquino, por sua vez, ao pontificar que a materialização
da justiça pressuporia dar a cada um o que é seu, deixa o mendigo
na mesma posição social, pois não dá resposta a questão de como
cada um obteve o que é seu. Dar ao mendigo o que é seu significa
deixá-lo na condição de despossuído.
Em
outras palavras, como pode ser justo dar a cada um o que é seu sem
um aprofundamento sobre a origem da riqueza dos homens? Seria justo
que o mero passar do tempo validasse, por exemplo, a herança atual
proveniente de um roubo ancestral?
Caberia
aqui, talvez, pensar numa aplicação sociológica para a tese da
teoria do caos denominada "efeito borboleta". Um pequeno
furto séculos antes poderia, na verdade, ser a causa de uma
imensidão de miseráveis no presente? Se a apropriação indébita
passada ou presente for de imensa magnitude, quais os efeitos a longo
prazo?
A
noção utilitarista de justiça, segundo a qual é justo aquilo que
traz a maior quantidade de prazer para o maior número de pessoas,
possui paradoxalmente um quê de iniquidade, pois aceita a dor e a
miséria de um pequeno número de pessoas se disso resultar o
benefício da maioria.
Existem
diversas teorias sobre a justiça. Aparentemente, John Rawls nos
fornece, não o conceito mais adequado de justiça, mas o melhor meio
de construir uma sociedade justa. Trata-se de criar um arcabouço
moral e jurídico sob o que ele denomina de "véu da
ignorância".
Grosso
modo, seria como se fossem eleitos representantes para estabelecer um
conjunto de leis inteiramente novo e absolutamente independente de
toda a legislação anterior, inclusive a Constituição. Todavia,
tais representantes elaborariam esse novo ordenamento jurídico a
partir de uma perspectiva obrigatória: o total desconhecimento sobre
qual posição social que ocupariam após terminado o trabalho
legislativo, ou seja, sob o risco de total perda da condição social
possuída, inclusive toda riqueza e todos os bens, assim cientes de
que poderiam passar a viver como mendigos ou pobres, em qualquer
lugar do território, inclusive favelas, e ocupando qualquer
atividade profissional ou nenhuma, talvez gari ou desempregado.
Esse
é o "véu da ignorância", o desconhecimento sobre se as
leis se aplicariam a eles mesmos e sobre como elas poderiam influir
em suas vidas. É interessante o paralelo da ideia de justiça de
Rawls com a imagem romana da deusa da justiça, com os olhos cegados
pela venda da impessoalidade na aplicação das leis.
As
leis, hoje, são destinadas basicamente à manutenção do controle
social sobre os despossuídos. A indagação é: isso seria
diferente, haveria mais justiça no ato de legislar, se, num
exercício de alteridade, os legisladores pensassem em si mesmos como
as pessoas que suportariam os efeitos finais das leis produzidas?
Um
vislumbre disso pode ser visto nas leis que punem os crimes de
colarinho branco, que são destinados a pessoas com mais dinheiro e
poder e que, em geral, são bem mais difíceis de punir do que o
roubo de uma galinha.
Por
vezes a justiça é confundida com a atuação estatal dos membros do
poder judiciário, o que está muito longe da verdade. O poder
judiciário, em regra, não se preocupa com a distribuição de
justiça, mas com a aplicação do direito vigente sobre casos
concretos.
Caso
o direito fosse tomado como representante da justiça, ter-se-ia que
enfrentar o fato de que juízes erram, como qualquer outra pessoa, ou
seja, nem sempre aplicam o direito com perfeição, o que significa
que o poder judiciário é produtor de injustiças.
Além
disso, o poder judiciário cria inúmeras soluções diferentes para
casos absolutamente iguais, o que implica necessariamente que
soluções injustas são materializadas com frequência pelo poder
que leva o nome da justiça.
Por
fim, ainda que o direito fosse aplicado corretamente, ele não
representa e nem busca a produção de justiça, uma vez que o
objetivo principal do ordenamento legal não é esse, mas sim a
regulação da atividade humana. Sob tal ângulo, as leis promulgadas
guardam relação com a supremacia de interesses vitoriosos e não
com alguma inclinação estatal para a produção de justiça.
A
teoria de Rawls, portanto, possui a virtude de criar um espaço
imaginativo onde o sentido de justiça estaria necessariamente
incutido no espírito do legislador, se não por uma inclinação
ética pessoal, com certeza por temer o próprio destino.
Obviamente,
trata-se de uma espécie de utopia sem condições práticas de
materialização.
No
mundo do factível, a sensação de justiça social seria muito maior
se pequenas alterações nessa mesma sociedade capitalista em que
vivemos fossem produzidas. Por exemplo, pode-se imaginar uma
sociedade na qual todas as atividades privadas que já existem
continuem privadas, com exceção daquelas vinculadas à educação,
à segurança e à saúde. São áreas essenciais para o indivíduo e
estratégicas para a nação.
A
partir da valorização dessas áreas, num modelo ideal, seriam
formados de maneira sólida, não indivíduos ou componentes, mas
cidadãos aptos a exercer o seu papel numa sociedade mais justa e
equilibrada.
Com
o modelo atual, criam-se apenas estruturas de solidificação dos
estratos sociais. Um pai pobre envia seu filho para um escola pública
de pobres, cujo péssimo ensino não fornece a esse filho uma
formação cultural e educacional que lhe proporcione a estrutura
necessária para se alavancar numa melhoria em seu nível social. E
assim se perpetua a casta dos miseráveis, na qual miseráveis geram
novos miseráveis.
Num
cenário em que os indivíduos que integram o poder e a riqueza forem
obrigados a enviar seus filhos para a escola pública, o ensino tende
a se tornar de qualidade. Afinal, ainda que poderosos e ricos, nem
todos enviarão seus filhos para estudar no exterior.
Em
paralelo, caso as agências bancárias, os shopping centers e os
condomínios milionários passem a depender exclusivamente da polícia
estatal para sua segurança, os investimentos nessa área serão
multiplicados.
Aliado
a isso, é bastante sensato supôr que, se a elite rica e poderosa
necessitar cuidar de sua saúde em hospitais e postos de saúde
públicos, surgirá um novo tipo de instituição de saúde: o
Hospital Público D'Or.
Por
pouco que seja, essas pequenas mudanças, num mundo movido pelo
egoísmo e individualista, acabam sendo um tipo de utopia, ainda que
nada tenha de irrealizável, inclusive porque são realidade em
alguns lugares do mundo.
A
descrição do que seja justiça é tão difícil como descrever a
luz, que, se não há, é impossível explicar, mas, se há,
imediatamente sabemos do que se trata.
Definitivamente,
justiça não há. Como explicá-la? Como realizá-la?
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