De
lá para cá, alguma coisa mudou: hoje são 400 achacadores.
Isso
é o que falou Cid Gomes, na condição de Ministro da Educação, em
discurso para o plenário da Câmara dos Deputados, reafirmando, em
tom enérgico, a declaração que fizera no sentido de que certos
políticos são achacadores e buscam fragilizar o governo para assim
obter vantagens, o famoso “criar dificuldades para vender
facilidades”. Eduardo Cunha, presidente da Câmara, reagiu e
desligou o microfone do ministro.
Tenho
dúvidas sobre se, em algum momento da história do Congresso
Nacional, algum ministro de Estado tenha ido, nessa condição, ao
plenário da Câmara dos Deputados para desancá-lo.
É
um retrato desse momento que vivenciamos, um período de muito
nervosismo na sociedade brasileira no aspecto da discussão política.
Os ânimos estão exaltados. Grande parte da população defende o
governo, uma outra parte, de igual importância e relevo, odeia o PT
e o resultado disso é que estão se tornando comuns os embates
enraivecidos entre críticos e defensores.
Ninguém
quer buscar a verdade, só se deseja vencer a discussão.
Em
momentos como esses, em que a radicalidade é exposta, sempre lembro
da afirmação do jornalista Luis Nassif de que a sociedade
brasileira vive o que ele denominou de “soluços da insensatez”,
que ocorrem em momentos históricos de inclusão social, como na
época em que se discutia a libertação dos escravos ou quando da
conquista do direito ao voto feminino. Em tais ocasiões, é normal a
cisão da sociedade entre os reformadores (os abolicionistas ou
feministas, por exemplo), que aderem à inclusão social, e os
conservadores, que preferem a manutenção do status quo
anterior (os escravagistas ou sexistas).
Do
lado conservador da atual cisão, o maniqueísmo é patente: qualquer
um que defenda o governo, sob qualquer circunstância, é
imediatamente classificado de petista ou, pior, petralha. Para esse
lado, nada, absolutamente nada de bom, pode ser creditado ao governo
do PT.
De
nada adianta ao defensor do governo esclarecer que não é filiado e
que não considera o partido imune a críticas e tampouco paradigma
do partido ideal. É cansativo e inútil argumentar que a defesa do
governo ocorre numa realidade histórica no bojo da qual, observadas
as regras do jogo que está em andamento, ou seja, esse sistema
político fajuto, ao mesmo tempo corrupto e corruptor, a instituição
PT saiu-se melhor no enfrentamento da questão social e está agindo
de forma mais republicana no combate à corrupção do que as
instituições anteriores (militares, PMDB, PRN e PSDB).
Esse
é um dado histórico, fundado em números e estatísticas, reforçado
pelo empirismo da experiência individual e do testemunho da
historicidade de pessoas conhecidas que, nascidos extremamente
pobres, somente durante o governo do PT conseguiram alcançar uma
renda melhor e uma educação melhor.
Pode
ser questionado? Claro que pode, com elementos lógicos e factuais,
com a emoção e “achismo” não dá.
Falar
da questão social é desnecessário, pois nem a imprensa, inimiga
figadal do governo, nega a evidente melhoria. No máximo, tentam
reduzir o mérito petista. O ceticismo dos críticos, aqui, ante a
notoriedade da matéria, revelaria mais sobre a personalidade do
crítico do que sobre a conduta do governo.
Quanto
à corrupção, uma coisa é inegável: nunca tantos casos de desvios
de conduta de agentes públicos foram noticiados na imprensa do que a
partir da chegada do PT ao governo federal, mesmo se levada em
consideração a parcela das manchetes criadas para mera
escandalização.
Essa
realidade pode ser analisada sob duas perspectivas bastante distintas
e ambas plenamente defensáveis do ponto de vista da racionalidade.
Alguns podem produzir uma análise pessimista, e achar que o copo
está meio vazio, enquanto outros serão otimistas e considerarão
que o copo está meio cheio.
De
fato, afora a ingenuidade de imaginar que a corrupção é uma
criação petista, ideia que de tão tosca sequer merece refutação,
a parcela mais racional dos críticos do governo acredita que a
corrupção foi exponenciada durante o governo do PT, alcançando
proporções inaceitáveis, enquanto os petistas acreditam que o que
foi exponenciado foi a transparência da gestão pública e a
liberdade de atuação de instituições como a Polícia Federal, a
Procuradoria Geral da República e a Justiça Federal. Essa última
parte em geral é refutada pelos críticos, que crêem que o livre
funcionamento das instituições não decorre de republicanismo do
PT, mas de amadurecimento das próprias instituições.
De
qualquer forma, nem os críticos do governo podem refutar a história
e negar que, até o governo do PT, esse amadurecimento não havia
ocorrido. Assim, a ascensão do PT coincide com o amadurecimento das
instituições. Mérito, coincidência ou azar do PT? Façam suas
apostas.
Certa
pessoa, antes simpatizante do PT, disse-me que passou a ser crítica
do governo porque, quando da chegada à presidência, o partido não
produziu gestões políticas de relevo para realizar a reforma
política, a elevação da taxação dos ricos e tampouco mexeu no
sistema bancário, que, pelo contrário, passou a lucrar ainda mais.
São
mudanças que todos queríamos ver. Ela, porém, não eram possíveis
quando Lula chegou ao governo e continuam a não ser. Isso porque não
se tratam de reformas primárias, mas resultados secundários de
transformações da realidade política que devem antecedê-las. Ou
seja, são propostas que demandam longo tempo, muita ação política
e gradatividade. É isso ou imaginar um cenário de revolução.
Antes
de tudo, é preciso ter consciência de que o poder executivo é
apenas um dos três poderes independentes da república. O presidente
da república não pode determinar a pauta do congresso. Se, por
hipótese, utilizar meios oblíquos para contornar essa vedação,
seja pela garantia de nomeações de apadrinhados dos partidos da
base de sustentação, seja pela divisão partidária de restos de
campanha, será massacrado pela imprensa partidária, como já
ocorreu no caso do mensalão, está ocorrendo no caso da Petrobras e
ocorrerá a cada nomeação que desagrade aos donos dos jornais.
É
preciso entender que, quando se fala que alguém possui “articulação”
ou “sabedoria” política, trata-se apenas de um eufemismo para o
uso dos poderes do governo ou do partido para negociar as benesses
exigidas pelos parlamentares para que se alinhem e deem andamento à
agenda do governo.
Essa
é a razão da fala de Lula em 1993, sobre os picaretas do Congresso,
e também para a do agora ex-ministro Cid Gomes, quanto aos
quatrocentos achacadores. Cid Gomes é experiente, já conviveu com a
necessidade de “articulação política”. Soube negociar com sua
própria Assembleia Legislativa.
O
problema de seu destempero, no âmbito federal, é que o apetite dos
achacadores aumentou demais e está difícil alimentá-los com a
“sabedoria política” praticada até então.
O
apetite voraz paralisou o governo e ameaça mantê-lo assim
indefinidamente. Contudo, a inação que o governo demonstra e que
aparenta provir de sua fragilidade e falta de “articulação” com
o congresso, pode decorrer, na verdade, de perplexidade com as
exigências parlamentares. Como reagir a um congresso cuja base de
apoio é tomada de assalto por um político que sabe, como ninguém,
tirar leite de pedra? Até onde se deve ir nas concessões?
Na
forma como organizado hoje o nosso sistema político, o congresso é
dominado pelas bancadas corporativas, que somam a maioria dos
parlamentares. Em geral, essas bancadas terão enorme apetite
legiferante em nome das corporações que representam. Contra as
corporações que lhes propiciou o mandato, jamais legislarão. O
espaço para manobras que sobra é o que se direciona para projetos
que não atinjam os interesses de suas corporações e os seus,
individuais. A manobra que resta ao governo é, além de sucumbir ao
fisiologismo histórico, formar uma maioria entre as bancadas que
vença outra. Ou seja, bancada contra bancada.
É
nessa corda bamba que se movimenta o governo. E a corda, além de
bamba, está ficando cada vez mais fina.
No
sistema atual, não há espaço para mudanças significativas e,
enquanto assim permanecer, jamais haverá. Nosso congresso
corporativo produz leis de interesse das corporações que, por força
de obrigação constitucional, devem ser executadas pelo poder
executivo e sustentadas pelas decisões do poder judiciário.
Contudo,
essa análise factual, conjuntural, é posta de lado pelos críticos
do governo, que dão a sensação de que desejam exclusivamente
trocar o PT por algum outro partido, na vã esperança de que este
não roube ou, no mínimo, roube menos do que o atual.
Isso
será, de fato, um argumento válido? Aliás, isso constitui
efetivamente uma solução? Ou a solução passa obrigatoriamente por
uma reforma sistêmica profunda, que altere substancialmente o atual
modelo?
E
aqui reside uma diferença fundamental entre os defensores do governo
e seus críticos: os primeiros não defendem somente o governo, mas a
necessidade de reformas estruturais que modifiquem o nosso sistema
político. Brigam pela reforma política e pela regulação da mídia,
por exemplo.
Do
lado dos críticos não existem propostas para melhoria da sociedade,
há uma só demanda: a retirada do PT do governo.
Assim
procedendo acabam, em contradição ao seu próprio discurso
moralista, dando força a quem possui o poder de desligar o microfone
e não a quem discursa contra a devassidão congressual.
O
congresso continua o mesmo, sai Cid Gomes do ministério para que o
governo não enfraqueça ainda mais, mas o seu discurso sobre os
achacadores continua válido, assim como era válido vinte anos
atrás, quando Lula denunciou os picaretas. Provavelmente já era
assim com Janio, com Vargas, com Pedro II.
A
indagação que fica: até quando?
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