quinta-feira, 19 de março de 2015

Os trezentos picaretas de Lula se tornaram os quatrocentos achacadores de Cid Gomes


Em 1993, Lula disse que existiam 300 picaretas no Congresso Nacional.
De lá para cá, alguma coisa mudou: hoje são 400 achacadores.
Isso é o que falou Cid Gomes, na condição de Ministro da Educação, em discurso para o plenário da Câmara dos Deputados, reafirmando, em tom enérgico, a declaração que fizera no sentido de que certos políticos são achacadores e buscam fragilizar o governo para assim obter vantagens, o famoso “criar dificuldades para vender facilidades”. Eduardo Cunha, presidente da Câmara, reagiu e desligou o microfone do ministro.
Tenho dúvidas sobre se, em algum momento da história do Congresso Nacional, algum ministro de Estado tenha ido, nessa condição, ao plenário da Câmara dos Deputados para desancá-lo.
É um retrato desse momento que vivenciamos, um período de muito nervosismo na sociedade brasileira no aspecto da discussão política. Os ânimos estão exaltados. Grande parte da população defende o governo, uma outra parte, de igual importância e relevo, odeia o PT e o resultado disso é que estão se tornando comuns os embates enraivecidos entre críticos e defensores.
Ninguém quer buscar a verdade, só se deseja vencer a discussão.
Em momentos como esses, em que a radicalidade é exposta, sempre lembro da afirmação do jornalista Luis Nassif de que a sociedade brasileira vive o que ele denominou de “soluços da insensatez”, que ocorrem em momentos históricos de inclusão social, como na época em que se discutia a libertação dos escravos ou quando da conquista do direito ao voto feminino. Em tais ocasiões, é normal a cisão da sociedade entre os reformadores (os abolicionistas ou feministas, por exemplo), que aderem à inclusão social, e os conservadores, que preferem a manutenção do status quo anterior (os escravagistas ou sexistas).
Do lado conservador da atual cisão, o maniqueísmo é patente: qualquer um que defenda o governo, sob qualquer circunstância, é imediatamente classificado de petista ou, pior, petralha. Para esse lado, nada, absolutamente nada de bom, pode ser creditado ao governo do PT.
De nada adianta ao defensor do governo esclarecer que não é filiado e que não considera o partido imune a críticas e tampouco paradigma do partido ideal. É cansativo e inútil argumentar que a defesa do governo ocorre numa realidade histórica no bojo da qual, observadas as regras do jogo que está em andamento, ou seja, esse sistema político fajuto, ao mesmo tempo corrupto e corruptor, a instituição PT saiu-se melhor no enfrentamento da questão social e está agindo de forma mais republicana no combate à corrupção do que as instituições anteriores (militares, PMDB, PRN e PSDB).
Esse é um dado histórico, fundado em números e estatísticas, reforçado pelo empirismo da experiência individual e do testemunho da historicidade de pessoas conhecidas que, nascidos extremamente pobres, somente durante o governo do PT conseguiram alcançar uma renda melhor e uma educação melhor.
Pode ser questionado? Claro que pode, com elementos lógicos e factuais, com a emoção e “achismo” não dá.
Falar da questão social é desnecessário, pois nem a imprensa, inimiga figadal do governo, nega a evidente melhoria. No máximo, tentam reduzir o mérito petista. O ceticismo dos críticos, aqui, ante a notoriedade da matéria, revelaria mais sobre a personalidade do crítico do que sobre a conduta do governo.
Quanto à corrupção, uma coisa é inegável: nunca tantos casos de desvios de conduta de agentes públicos foram noticiados na imprensa do que a partir da chegada do PT ao governo federal, mesmo se levada em consideração a parcela das manchetes criadas para mera escandalização.
Essa realidade pode ser analisada sob duas perspectivas bastante distintas e ambas plenamente defensáveis do ponto de vista da racionalidade. Alguns podem produzir uma análise pessimista, e achar que o copo está meio vazio, enquanto outros serão otimistas e considerarão que o copo está meio cheio.
De fato, afora a ingenuidade de imaginar que a corrupção é uma criação petista, ideia que de tão tosca sequer merece refutação, a parcela mais racional dos críticos do governo acredita que a corrupção foi exponenciada durante o governo do PT, alcançando proporções inaceitáveis, enquanto os petistas acreditam que o que foi exponenciado foi a transparência da gestão pública e a liberdade de atuação de instituições como a Polícia Federal, a Procuradoria Geral da República e a Justiça Federal. Essa última parte em geral é refutada pelos críticos, que crêem que o livre funcionamento das instituições não decorre de republicanismo do PT, mas de amadurecimento das próprias instituições.
De qualquer forma, nem os críticos do governo podem refutar a história e negar que, até o governo do PT, esse amadurecimento não havia ocorrido. Assim, a ascensão do PT coincide com o amadurecimento das instituições. Mérito, coincidência ou azar do PT? Façam suas apostas.
Certa pessoa, antes simpatizante do PT, disse-me que passou a ser crítica do governo porque, quando da chegada à presidência, o partido não produziu gestões políticas de relevo para realizar a reforma política, a elevação da taxação dos ricos e tampouco mexeu no sistema bancário, que, pelo contrário, passou a lucrar ainda mais.
São mudanças que todos queríamos ver. Ela, porém, não eram possíveis quando Lula chegou ao governo e continuam a não ser. Isso porque não se tratam de reformas primárias, mas resultados secundários de transformações da realidade política que devem antecedê-las. Ou seja, são propostas que demandam longo tempo, muita ação política e gradatividade. É isso ou imaginar um cenário de revolução.
Antes de tudo, é preciso ter consciência de que o poder executivo é apenas um dos três poderes independentes da república. O presidente da república não pode determinar a pauta do congresso. Se, por hipótese, utilizar meios oblíquos para contornar essa vedação, seja pela garantia de nomeações de apadrinhados dos partidos da base de sustentação, seja pela divisão partidária de restos de campanha, será massacrado pela imprensa partidária, como já ocorreu no caso do mensalão, está ocorrendo no caso da Petrobras e ocorrerá a cada nomeação que desagrade aos donos dos jornais.
É preciso entender que, quando se fala que alguém possui “articulação” ou “sabedoria” política, trata-se apenas de um eufemismo para o uso dos poderes do governo ou do partido para negociar as benesses exigidas pelos parlamentares para que se alinhem e deem andamento à agenda do governo.
Essa é a razão da fala de Lula em 1993, sobre os picaretas do Congresso, e também para a do agora ex-ministro Cid Gomes, quanto aos quatrocentos achacadores. Cid Gomes é experiente, já conviveu com a necessidade de “articulação política”. Soube negociar com sua própria Assembleia Legislativa.
O problema de seu destempero, no âmbito federal, é que o apetite dos achacadores aumentou demais e está difícil alimentá-los com a “sabedoria política” praticada até então.
O apetite voraz paralisou o governo e ameaça mantê-lo assim indefinidamente. Contudo, a inação que o governo demonstra e que aparenta provir de sua fragilidade e falta de “articulação” com o congresso, pode decorrer, na verdade, de perplexidade com as exigências parlamentares. Como reagir a um congresso cuja base de apoio é tomada de assalto por um político que sabe, como ninguém, tirar leite de pedra? Até onde se deve ir nas concessões?
Na forma como organizado hoje o nosso sistema político, o congresso é dominado pelas bancadas corporativas, que somam a maioria dos parlamentares. Em geral, essas bancadas terão enorme apetite legiferante em nome das corporações que representam. Contra as corporações que lhes propiciou o mandato, jamais legislarão. O espaço para manobras que sobra é o que se direciona para projetos que não atinjam os interesses de suas corporações e os seus, individuais. A manobra que resta ao governo é, além de sucumbir ao fisiologismo histórico, formar uma maioria entre as bancadas que vença outra. Ou seja, bancada contra bancada.
É nessa corda bamba que se movimenta o governo. E a corda, além de bamba, está ficando cada vez mais fina.
No sistema atual, não há espaço para mudanças significativas e, enquanto assim permanecer, jamais haverá. Nosso congresso corporativo produz leis de interesse das corporações que, por força de obrigação constitucional, devem ser executadas pelo poder executivo e sustentadas pelas decisões do poder judiciário.
Contudo, essa análise factual, conjuntural, é posta de lado pelos críticos do governo, que dão a sensação de que desejam exclusivamente trocar o PT por algum outro partido, na vã esperança de que este não roube ou, no mínimo, roube menos do que o atual.
Isso será, de fato, um argumento válido? Aliás, isso constitui efetivamente uma solução? Ou a solução passa obrigatoriamente por uma reforma sistêmica profunda, que altere substancialmente o atual modelo?
E aqui reside uma diferença fundamental entre os defensores do governo e seus críticos: os primeiros não defendem somente o governo, mas a necessidade de reformas estruturais que modifiquem o nosso sistema político. Brigam pela reforma política e pela regulação da mídia, por exemplo.
Do lado dos críticos não existem propostas para melhoria da sociedade, há uma só demanda: a retirada do PT do governo.
Assim procedendo acabam, em contradição ao seu próprio discurso moralista, dando força a quem possui o poder de desligar o microfone e não a quem discursa contra a devassidão congressual.
O congresso continua o mesmo, sai Cid Gomes do ministério para que o governo não enfraqueça ainda mais, mas o seu discurso sobre os achacadores continua válido, assim como era válido vinte anos atrás, quando Lula denunciou os picaretas. Provavelmente já era assim com Janio, com Vargas, com Pedro II.
A indagação que fica: até quando?

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