O futuro nasce a partir do presente entendido como o ápice do passado, vale dizer, o arcabouço do futuro repousa sobre os alicerces do presente, construídos que foram no passado. A utilização das ferramentas históricas herdadas pelo presente constituem a causa necessária do futuro que se projeta como ideia, pois possibilitam iniciar a obra que, em potência, representa o futuro que concretamente poderá vir a ser experimentado pela civilização.
Enfim,
para simplificar esse raciocínio que já está ficando tortuoso, não
é possível pensar num futuro a partir do nada. Do nada, nada vem, a
não ser no caso único e excepcional da criação divina. Fora essa
possibilidade teológica, o futuro sempre emergirá de suas bases
históricas, ainda que sob a forma de contradição.
Óbvio?
Claro. Ainda assim essa relação entre presente e futuro parece não
ser compreendida por determinada parcela das pessoas. Ou ao menos
fingem não compreender.
Não
há dúvida de que, frente à dimensão da devassidão ética dos
usos e costumes políticos do presente, o desejo, sensato, de
distanciamento é inescapável. Ninguém quer estar próximo do odor
desagradável do esgoto. De certa forma, o antigo discurso sectário
do PT, quando oposição, que fazia tremer suas bases à mera menção
de coligações partidárias, refletia essa vontade um tanto infantil
de afastamento da podridão. Infantil porque somente a proximidade da
podridão permite a sua dissolução, não cabendo ao homem político se
afastar de um problema político que merece enfrentamento.
Ocorre
que é impossível a formação de uma nova sociedade a partir do
nada. Nem mesmo revoluções que transformaram profundamente a
sociedade, como a bolchevique, foram capazes, ou tiveram a audácia,
de partir do zero político absoluto. Não há dúvida de que através
de uma revolução as modificações políticas possam ser realizadas
num ritmo mais célere, criando-se novos atores e fatores políticos
que não seriam aceitos se mantido o status quo ante. Todavia, tais
revoluções possuem o péssimo hábito de gerar mortandades e
sacrifícios dispensáveis à luz da razão humana, além de, um sem
número de vezes, acabar por se voltar contra o povo revolucionário,
sendo exemplos disso as revoluções francesa e russa.
Por
conta dessas vicissitudes revolucionárias malignas, um pensamento
politicamente mais maduro e racional, mais humano mesmo, tenderá a
compreender que o melhor meio de renovar a política ocorre num
quadro de gradualismo, vale dizer, a partir da introdução
progressiva de novos elementos políticos que irão atuar em conjunto
com a prática política mais antiga e que já se encontrava em
andamento. Uma revolução gradualista, por assim dizer. Alguns irão
chamar de realpolitik.
Não
se pode perder de vista que o ser humano é extremamente ambíguo,
sendo simultaneamente inovador e conservador. Se encanta com
novidades (daí a atração pelo consumo superficial), mas teme
perder as bases onde põe os pés (donde decorre a tendência dos
eleitores de reeleger seus governantes).
Essa
revolução gradualista consta da agenda do PT enquanto governo,
buscando conciliar o seu antigo projeto revolucionário com as
possibilidades reais que a conjuntura política lhe permite. Pretende
conquistar fatias de revolução social, ao mesmo tempo que tenta
evitar um confronto mais sério que impossibilite qualquer conquista.
É um dilema moral e não há solução certa, nem errada.
Ainda
quando o atual governo silencia em relação a algumas acusações e
também relativamente a algumas posturas incompatíveis de partidos
ditos “aliados”, o que aparentemente está por trás disso é uma
estratégia de não-confronto. Difícil dizer se é a melhor
estratégia. O tempo dirá.
Essa
estratégia de não-confronto pode até se revelar eventualmente a
mais sensata, do que não decorre que seja capaz de imunizar o
governo das tentativas de desestabilização pelo stablishment.
Afinal, assim como o escorpião picou o sapo que gentilmente lhe
atravessara o riacho, isso faz parte da natureza dos conservadores
liberais, que jamais irão concordar pacificamente com a introdução
de rudimentos de socialismo e de acirramento da democracia na
política. Para eles, trata-se da velha história de enfiar o dedo no
buraquinho da represa para não permitir que aos poucos o pequeno
orifício, por força da pressão, se amplie até o ponto do estouro
do reservatório.
O
Brasil vive esse momento histórico de revolução gradualista em sua
fase mais aguda. E é exatamente aqui que a população deve se
decidir sobre o futuro que deseja. Há espaço para uma utopia ou só
nos resta aguardar a tragédia distópica? Ou, por um outro lado, a
mais forte opção partidária do momento é capaz de preencher esse
espaço utópico?
Todo
futuro planejado é apenas uma possibilidade de futuro, jamais uma
certeza, caso contrário se trataria de determinismo e nada teríamos
a fazer, bastaria aguardar sua inevitável chegada.
Contudo,
não há dúvida de que as ações do presente são capazes de
influenciar o futuro, ainda que de forma não determinante. Em outras
palavras, se alguém começa a colocar um tijolo em cima do outro
hoje, é muito possível que, um dia, a casa esteja construída. Isso
jamais ocorrerá se tijolo nenhum for manipulado.
A
política econômica é prenhe dessas intencionalidades de futuro.
Tanto keynesianos, como monetaristas, tanto os adeptos do estado de
bem-estar social, como os do laissez-faire, na pureza de suas
inclinações, perseguem um ideal de sociedade futura mais justa e
igualitária. A questão que se coloca é se todas são capazes de
fornecer o ferramental necessário para produzir esse ideal.
Para
tanto, importa, seja qual for o tipo de filosofia política econômica
que se adote, indagar quais seriam as ações políticas práticas
que, numa perspectiva lógica e racional, se adotadas, mostrariam-se efetivamente capazes de orientar a possibilidade de futuro para uma
sociedade mais libertária, mais justa, mais equânime, menos
neurótica?
Poucos
discordariam de que tais ações passam, primacialmente, por uma nova
forma de organização social no que concerne à educação, à
cultura, à saúde (inclusive em seu aspecto de saneamento básico),
à segurança pública, à segurança alimentar, à mobilidade
urbana, à segurança ambiental, à energia limpa e renovável, à
redução das desigualdades entre etnias, entre gêneros e de
orientação sexual. Todos esses elementos considerados como fatores
de geração e manutenção da dignidade humana.
De
fato, muito pouco tem a ver com crescimento econômico, PIB ou renda,
em sentido estrito.
Uma
renda alta, na verdade, somente é relevante se considerado o seu
aspecto de meio de aquisição dos elementos geradores da dignidade
humana, de modo que perde muito de seu objetivo se o acesso a tais
fatores independer de dinheiro. Como exemplo, ainda tímido, podem-se
citar os países nórdicos, que possuem carga tributária bastante
elevada, alguns com quase 50% do PIB (Dinamarca), o que é fator de
redução da renda, porém não se vê o povo reclamando, como
consequência óbvia de que o cidadão não é obrigado a pagar
médicos, hospitais, escolas e segurança particular.
O
Brasil possui carga tributária de cerca de 35% do PIB, que é alta
em relação aos serviços públicos que fornece, porém é
insuficiente para atender às demandas da população (inclusive às
da classe média, que gostaria de dispôr de escolas e hospitais
públicos para se livrar do plano de saúde e das mensalidades
escolares).
E
falar em tamanho da fatia tributária é falar no dimensão do espaço
público, talvez o maior exemplo de escolha de opção política do
presente geradora de profundas repercussões no futuro.
Que
futuro desejamos? O do modelo neoliberal, do estado mínimo, sem
escola e sem saúde publicas, praticamente sem iniciativas de relevo
no âmbito do capital público? Ou o projeto de social-democracia,
com ampliação do tamanho do estado e de participação do seu
capital na economia?
O
cidadão, principalmente o que integra a classe média, não sem
razão, irá colocar a questão da corrupção e da eficiência do
governo nesse dilema. Por que contribuir mais para encher os bolsos
de políticos corruptos? Para que maior tributação se, a final, a gestão dos gastos é ruim e acaba não resultando em serviços
públicos melhores?
Não
resta dúvida de que a corrupção, presente indiscutivelmente em
todos os governos brasileiros, deve ser combatida seja lá qual for o
partido que esteja no poder. Da mesma forma, a eficiência da gestão
pública deve ser encarada como um projeto de estado, não de
governo.
Aqui,
a análise do projeto de futuro impõe que o eleitor mais atento
avalie a história recente da política e dos governos e opte, dentre
as várias possibilidades partidárias, aquela que lhe pareça mais
comprometida com o combate à corrupção e com a eficiência de
gestão.
Todavia,
esses questionamentos não dão conta de resolver um problema
inescapável: o modelo neoliberal não é e não será jamais capaz
de produzir a sociedade digna que todos desejam. Isso porque implica
inexoravelmente a concessão de liberdade quase total ao capital para
evoluir por si próprio, para ditar suas próprias regras, sem
responsabilidade por medir as consequências dessa evolução para a
sociedade. Curiosamente, não se imagina qualquer sociedade na qual
as pessoas físicas que a integram pudessem autorregular-se. Seria um
despautério. Facilmente se imagina a bagunça que seria se não
houvessem leis estatais regulando os comportamentos. Por que conceder
esse privilégio às pessoas jurídicas?
Livre
totalmente, o capital sempre irá privilegiar o rentismo em
detrimento da produção e o lucro em prejuízo do emprego. Não se
perca de vista que o sonho de todo capitalista, honesto ou desonesto,
é tornar-se rentista, colocando o dinheiro para trabalhar em lugar
dele. Na verdade, talvez seja um sonho humano. Afinal, para que
produzir se a bolsa de valores, bem gerida por uma corretora, com
risco mitigado pela distribuição em várias modalidades de
investimento, permite ganhos maiores, sem tanta dor de cabeça? Para
que trabalhar se é possível viver da renda de aluguéis, juros ou
dividendos?
O
rentismo constitui-se na propriedade completamente desvinculada de
função social e de interesse público. É o privatismo e a
liberdade econômica conduzidos à sua expressão máxima: lucrar sem
compromisso com a ética e com o desenvolvimento civilizatório.
Os
Estados Unidos, e os crash's de que vez ou outra padecem, são a
prova viva disso. A “abundância americana” deixa ao léu, na
miséria mesmo, pelo menos quinze porcento de sua população, ou
seja, cerca de cinquenta milhões de pessoas, quase uma França
inteira. E uma fatia ainda maior, que inclui parte da classe média,
não possui amparo social e médico algum. Além disso, o ensino
universitário é quase totalmente particular, o que privilegia a
elite, salvo um ou outro pobre que alcança a sorte de ser bom em
algum esporte e recebe bolsa de atleta.
Como
mais uma demonstração de “desprendimento” do capital sob o
neoliberalismo, grandes empresas passaram a comprar seguros de vida
em nome de seus empregados sem que eles soubessem. Beneficiário: a
própria empresa. Em resumo, as empresas lucravam com a morte de seus
empregados, deixando suas famílias ao relento. Algumas empresas
reclamavam, em atas, que os “investimentos” não estavam
alcançando as metas previstas. Em outras palavras, os empregados não
faleciam tanto como era previsto e o negócio não alcançava a
lucratividade esperada.
Nada
poderia caracterizar melhor o espírito do neoliberalismo: o lucro a
partir da vida ou da morte do trabalhador.
A
sociedade brasileira, hoje, não está em melhores condições
sociais do que as da americana, isso é inegável. O problema é se
pretende estar um dia. O nosso melhor projeto de futuro é copiar a
sociedade americana?
É
evidente que não se fala, aqui, da vontade arrogante de poder
geo-político, de se impor imperialmente sobre as demais nações. Se
for esse o caso, o ideário econômico americano deve ser seguido à
risca.
Fala-se
de sociedade humana, saudável, feliz, realizada. Fala-se de uma
sociedade sem ilhas de prosperidade cercadas por oceanos de miséria,
sem condomínios de luxo, os repositórios de ricos, ao lado de
guetos e favelas, a lixeira onde são jogados os pobres.
Uma
sociedade sem locais inacessíveis para o pobre ou para o rico, na
qual o rico não tema perder o Rolex e o pobre, sua dignidade.
No
presente, discutem-se temas como bolsa-família, corrupção, Prouni,
Mais Médicos, Fies, Minha Casa Minha Vida, com o desprendimento, a
ingenuidade e a superficialidade de quem não vê relação alguma da
ação política do presente com o tipo de sociedade futura que nos
aguarda.
Reclama-se
da educação, do custo de vida, do salário, da educação, da
sáude, da segurança e outras demandas como sempre se reclamou de
todos os governos anteriores. A conversa política mais aprofundada,
porém, é tolhida, é solapada, pela banalização na discussão,
pelo reducionismo da fulanização e pela irresponsabilidade no voto,
circunstância que aliena o eleitor da sua condição de político e
de seu potencial de reformador social.
Impõe-se,
com urgência, a formação de uma consciência política que produza
o vínculo mental entre o comparecimento a uma urna eleitoral e a
escolha de um projeto de futuro.
Toda
vez que tiver que comparecer a uma urna para escolher um mandatário
político, compete ao cidadão se perguntar honestamente: que tipo de
futuro eu desejo para mim e para quem amo? Quem tipo de político e
de política se mostra capaz de alcançar esse resultado?
Para
responder a essas indagações, o melhor a fazer é estudar o
presente e o passado recentes.
Como
quem dirige um automóvel, olhar para o lado e pelo retrovisor muitas
vezes nos dá a segurança de continuar em frente, em direção ao
nosso destino.
Que
partidos e políticos privilegiam o capital e adotam o
neo-liberalismo? Que partidos e políticos buscam uma sociedade mais
digna e menos desigual?
Estamos
na encruzilhada do futuro e essa é a pergunta a ser feita para
decidirmos em que rua prosseguiremos nosso caminho.
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