Alguns
pensadores afirmam que a evolução do ser humano, em sua dimensões
individual e coletiva, ocorreria segundo as etapas da prevalência do
direito de propriedade, passando à primazia do direito político e
finalmente desaguando no estágio final da formação do estado
democrático em sua expressão mais pura, a do estado social.
O
ser humano, por natureza e por pressão evolutiva, é socialista,
dado que coloca, ainda que de forma inconsciente ou semi-consciente,
a condição pessoal do próximo como elemento comparativo de
avaliação da própria realização pessoal e felicidade individual.
Isso vale para todos, pobres e ricos. Ricos somente deixam de atuar
como socialistas em relação a quem considera inferior, movidos pelo
princípio de egoísmo que os induz a proteger a própria riqueza,
Nunca, porém, deixam de perseguir a igualdade com os superiores, os
mais ricos do que eles. Seriam uma espécie de socialistas na
riqueza. O móvel, porém, é idêntico.
Não
é por outro motivo que comunidades indígenas, vivendo praticamente
em estado de natureza, situam-se entre as mais felizes do planeta.
São, em essência, socialistas, praticando uma experiência de
harmonia comunitária e tendo a solidariedade como requisito da
própria sobrevivência individual. Não existem leis impositivas ou
aparato jurídico-policial que obriguem ao trabalho como forma de
sobrevivência, mas cada um dos componentes desse tipo de sociedade
que ingenuamente denominamos de primitiva possui em si a exata noção
da importância de sua participação no destino da comunidade. Nela
não prevalece a cantilena elitista, preconceituosa e desumana de que
"pobre é tudo vagabundo, não gosta de trabalhar e gasta tudo
em cachaça".
Essa
mesma sensação de felicidade comum é, espantosamente, verificada
em países que se notabilizam pela pobreza, como Cuba, Haiti ou a
Índia, apesar de todas as incertezas que cercam o dia de amanhã
dessas populações.
O
atavismo que inclina o ser humano ao desejo da igualdade, da mesma
forma ocorre nas sociedades ditas evoluídas, cujo modelo igualitário
é a visão do padrão de vida do vizinho, a sua casa, o seu carro e
o seu consumo. O ser humano médio não admite ser inferior ao
vizinho no que toca ao poder aquisitivo. Aliás, o espelho do que se
pretende ser qualidade de vida deixou, em tempos muito recentes, de
ser o vizinho. O paradigma, agora, são as celebridades, os famosos.
Deseja-se vestir o que elas vestem, possuir os bens que elas possuem,
ter a fama que elas têm e até ter corpos ("shapes") como
os delas.
O
"vizinho", hoje, de onde brota o sentimento de
inferioridade e desigualdade, e, por conseguinte, de infelicidade, é
também o "amigo" da rede social, que muitas vezes nem se
conhece pessoalmente, com suas fotos de viagens, de suas aquisições
materiais e até dos restaurantes onde faz suas refeições, estas
que, espanto, também são fotografadas e exibidas na rede como
símbolos de status. Este é o ponto a que chegou o ser humano
classificado como civilizado e avançado, ao ridículo de considerar
que a própria importância individual se avalia pelo alimento que
come, sequer em função de suas propriedades nutritivas, mas pelo
preço que se permite pagar. A lógica é: posso pagar um vinho de
dois mil dólares, logo, sou melhor e mais bem-sucedido do que você,
que não pode.
É
a sociedade do hedonismo e da futilidade sendo conduzida aos seus
limites extremos.
Não
são poucos os estudos acadêmicos que demonstram que o nível de
felicidade do ser humano pouco tem a ver com a sua renda e o seu
poder aquisitivo. Muitos advogam que a renda é importante até o
ponto de escape da miséria e da pobreza, passando, a partir daí, a
ter papel secundário ou mesmo irrelevante na conquista de
felicidade, inclusive chegando, em certos casos, a exercer o papel
contrário de suscitar infelicidade a partir de determinado ponto de
enriquecimento, uma vez que a riqueza traz consigo a preocupação
com a administração do patrimônio e temor por sua perda. Afinal,
"there's no free meal".
Na
verdade, tais estudos sugerem, com outras palavras, que um mundo cuja
totalidade de seres humanos fosse constituída de miseráveis seria
provavelmente mais feliz do que o atual. Isso se explica, primeiro,
porque os conceitos, em geral, são obtidos por comparação. Sob tal
perspectiva, aquilo que conceituamos como miséria é assim descrito
em função comparativa direta com a opulência. Miséria, para o ser
humano, é a incerteza de um lugar para se abrigar e de um alimento
para comer. No mundo natural, isso se chama simplesmente "vida",
pois, sob as leis da natureza, vida e sobrevivência são
fundamentalmente a mesma coisa. Como se compreende a miséria, um
indígena, vivendo em ocas de palha, com incerteza alimentar, sem
acesso à energia elétrica, fontes de água limpa e saneamento
básico, necessariamente teria que ser categorizado como miserável,
embora de forma nenhuma o seja.
Em
segundo lugar, um mundo pleno de miseráveis seria mais justo e menos
desigual do que um mundo no qual a miséria de muitos convive com a
opulência frívola de poucos, o que ocorre justamente em decorrência
do instinto humano de perseguir a igualdade, fazendo-o repugnar a
desigualdade. Não é essencialmente a fome que induz à
infelicidade, mas a sensação de injustiça pelo testemunho diuturno
da saciedade desleixada e descomprometida do outro. Num mundo onde
todos fossem miseráveis, viver em barracos apertados e ter acesso
incerto ao alimento constituiria a realidade comum, não sendo fator
de infelicidade, mas um elemento inerente à vida de todos. Nesse
cenário, sem a pressão da comparação negativa, coisas hoje tidas
por triviais e irrelevantes, como um dia de ócio sob o sol, um banho
no rio ou a obtenção de alimentos, com interação entre os
indivíduos da mesma comunidade, constituiriam acontecimentos
catalisadores da felicidade.
É
importante explicar que "opulência frívola" é aquela
experimentada pelos ricos, e também por grande parte dos membros da
classe média, que, como satélites, se orientam bovinamente pela
conduta dos superiores, pois se imaginam iguais, e que se caracteriza
pelo exacerbamento da autonomia individual ao ponto da cegueira
social.
Dito
de modo mais claro: quando o indivíduo passa a ter a sensação de
que suas conquistas são fruto exclusivo de seu próprio esforço
pessoal, de seu próprio mérito e inteligência, sem colaboração
alguma da ação coletiva passada e presente da sociedade onde vive,
nasce o sentimento de que, primeiro, se ele conseguiu, todos podem
conseguir, não sendo necessária a interferência do Estado, com os
gastos sociais daí decorrentes e consequente necessidade de
tributação. Segundo, de que não deve nada a ninguém ou à
comunidade, o que justifica uma vivência dedicada exclusivamente à
satisfação dos próprios e autodirecionados desejos, com total
alienação das condições sociais de seu local e de sua época.
Democracia
não é apenas um direito de escolha, de sufrágio universal. Fosse
assim alguns governos autoritários que obtêm a quase totalidade dos
votos em eleições suspeitas necessariamente deveriam ser
enquadradas como as mais democráticas do mundo.
Democracia
é muito mais um modelo de gerenciamento da coletividade que se
direciona no sentido de mediar os conflitos existentes entre os
interesses individuais e os da comunidade. A dimensão ontológica da
democracia pressupõe a segurança individual como inerência e
fundamento. No que se relaciona às perspectivas em relação ao
futuro, o medo induz o egoísmo, enquanto a despreocupação faz
surgir o altruísmo e a solidariedade.
É
assim que surge a Ágora ateniense e se inicia a caminhada ainda em
curso em direção à primazia dos direitos políticos. Com o
propósito de mitigar arestas e proporcionar segurança. A
inteligência de que os problemas da comunidade inevitavelmente, se
não solucionados a contento, atingem o patrimônio jurídico-material
do indivíduo é que fez o ser humano sair de uma realidade de
prevalência do princípio do egoísmo (estado de natureza), para uma
na qual os alicerces sociais se encontram escorados no princípio da
solidariedade (civilização).
Todavia,
a mudança de rumos do capitalismo, que se libertou da exploração
da mão-de-obra humana e passou a explorar o ser humano em sua
condição de mero consumidor, de igual forma fez mudar o tipo de
mentalidade que move o indivíduo e se põe como barreira à assunção
do almejado estado social.
Se
antes o capitalista mais inteligente aprovava e apoiava o estado de
bem-estar social, por nele perceber um meio eficaz de garantir a
saúde da mão-de-obra sobressalente, esse "backup" humano
redundante que poderia ser necessário em alguma emergência, hoje
não mais o apoia, porque o gigantismo da mão-de-obra disponível,
na verdade, está se tornando anacrônico. A tecnologia libertou o
capitalismo dessa amarra, dessa necessidade do elemento humano.
Inundado
pela propaganda consumista, e por ela orientando a própria vida, o
ser humano está se tornando mais e mais insensível à dor distante
do miserável, cada vez mais próximo de si, e passando a crer que
isso não é um problema seu, mas dele, do pobre. E se não é um
problema seu, não é do Estado, que dirige a sociedade da qual faz
parte.
Ingênua
e egoisticamente, o ser humano não miserável, legatário em negação
das oportunidades criadas pelo passado coletivo, afasta de si a ideia
de uma sociedade protetora, pois dela não necessita no momento e,
superdimensionando as próprias potencialidades, pensa que jamais
dela irá necessitar. Passa a entender que a vida na sociedade é uma
ilusão e que, de fato, são apenas pessoas reunidas aleatoriamente
em um dado lugar, sem maiores responsabilidades umas em relação às
outras. Volta-se, assim, ao princípio do egoísmo do estado de
natureza.
Em
outras palavras, a sociedade humana está involuindo em direção ao
estado selvagem ditado pelo cada um por si, sendo isso produto direto
e inexorável do consumismo e do surgimento de uma globalização do
capital sem a correspondente globalização do ser humano. O capital
não possui barreiras, mas o ser humano sim, como se vê na tragédia
dos refugiados.
Ocorre
que o estado de natureza possui uma outra face: a sobrevivência a
qualquer preço. Por conta disso, em substituição ao estado de
bem-estar social, e para garantir a propriedade, opta-se pelo
endurecimento da lei e da ordem, através do incremento do aparato
jurídico-policial. É pelo endurecimento das leis protetivas do
patrimônio, da repressão e da violência que se intenta conter as
demandas sociais.
A
pobreza passa a ser encarado sob um enfoque criminal e não, como
deveria, a partir de uma perspectiva social.
Como
já dito, não existe almoço grátis, tudo tem um custo. E o custo
dessa repressão violenta às demandas sociais é altíssimo, talvez
maior do que custaria ao orçamento público as despesas com
paliativos como as transferências diretas de renda.
E
não somente há o custo da contenção, mas também o custo da
redução da felicidade coletiva e do aumento da sensação de
insegurança. Grandes cidades possuem locais inacessíveis à
população e ao Estado. Constituem territórios semi-independentes,
guetos a partir dos quais são lançados movimentos não
politicamente conscientes de resistência ao stablishment.
Porém,
à cegueira do egoísmo, junta-se a ignorância e o oportunismo
político, e opções que em si não podem ser consideradas
democráticas e melhores para a sociedade, acabam por falar mais
alto.
O
Brasil atual está vivenciando em sua plenitude esse tipo de atitude
egoísta.
O
oportunismo político agiganta todo e qualquer deslize, ou mesmo os
cria, apequenando ou tornando invisíveis ações políticas com
efetiva capacidade de mitigar, ainda que pouco, a sensação de
desigualdade, principalmente no âmbito do empoderamento da renda e
da facilitação de acesso à educação e à saúde.
Iniciativas
como a da cidade de São Paulo, de suavização e humanização do
ambiente urbano, são criticadas em nome de princípio de egoísmo.
Um
dia a conta desse desvario será cobrada e o preço coletivo a pagar
será salgado.
Afinal,
não há almoço grátis.
texto maravilhoso.. vc enxerga uma saída para a tendência apresentada no texto? Ou vamos ser extintos?
ResponderExcluirOlá, José Ruiz, obrigado por visitar o blog. Sim, enxergo saídas para a sociedade. Sou otimista. Não creio, porém, que venha alguma solução em breve. Penso que teremos que sofrer muito antes de sermos finalmente felizes. A disseminação do conhecimento aos poucos trará discernimento às pessoas, que se movimentarão politicamente para tornar a convivência social um pouco menos inóspita do que é atualmente. Provavelmente não viverei o suficiente para testemunhar isso, mas gosto de pensar que meus netos viverão num mundo melhor. Grande abraço.
Excluireu gostaria de viver o suficiente para testemunhar mudanças reais.. rs.. tô tentando divulgar essa ideia, o que vc acha: https://setimarepublica.wordpress.com/2016/11/04/a-revolucao-que-todos-queremos/
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