Ao
terminar a leitura do texto "O que querem os fanáticosfundamentalistas? Por que dialogar com eles?", da psicóloga
Rita Almeida, publicado no portal de notícias do GGN, do jornalista Luis Nassif, envolveu-me o mesmo tipo de reflexão preocupante que
tive ao término da leitura do livro Como conversar com um fascista,
da Marcia Tiburi. A mesma dúvida que assaltou a Rita Almeida ao
final de seu artigo, me atravessou em ambos os casos: seria eu um
fascista ou, no caso do texto da Rita, um fanático?
A
razão de minha inquietação íntima diz respeito ao modo assertivo
e enfático com o qual costumo defender meus posicionamentos,
característica facilmente identificável nos fascistas e fanáticos.
Não que me sinta incapaz de ser convencido ou que me faça surdo aos
argumentos alheios. Porém, ao mesmo tempo que percebo em mim imensa
capacidade de tolerar a ignorância dos desfavorecidos pela fortuna,
sinto-me muito pouco tolerante com a estupidez ou vilania ética de
quem devia, pelas circunstâncias da própria vida, pelas
oportunidades decorrentes do privilégio social, possuir uma visão
mais plena e humanista da realidade. Exatamente por isso, procedi a
uma revisão geral das pessoas que posso continuar a considerar
amigas após a clivagem social provocada pela imensa dissensão
política que testemunhamos no país. Os estúpidos que não deveriam
ser estúpidos foram extirpados de minhas amizades. Sem problema em
conviver socialmente com essas pessoas, mas amizade é outra coisa;
pressupõe alguma afinidade de sentimentos, valores e pensamentos. Um
abolicionista, a meu ver, não pode ser amigo de um escravocrata.
Como
seria possível, de forma lógica e racional, excluir alguém de
discurso enérgico da infame categoria dos fascistas e fanáticos?
Penso
que convicções sobre a sociedade, ainda que ardorosamente
defendidas, desde que fundadas em análise aprofundada da realidade
alcançada através da leitura diversificada, refletida e crítica de
grandes autores das ciências humanas e sustentada em visões que
valorizam a dignidade humana, a liberdade na autodeterminação
pessoal, a defesa da diversidade cultural e comportamental
características dos indivíduos e, resultado de tudo isso, ao
direito individual de encaminhar o próprio florescimento pessoal,
são estrutural e valorativamente distintas daquelas advogadas por
fascistas e fanáticos. As ideias desses últimos são,
essencialmente, restritivas ao direito individual, enquanto as
primeiras buscam alargar a bitola das possibilidades materiais da
existência livre.
A
pessoa que defende a redução das desigualdades humanas socialmente
estabelecidas - de gênero, étnica, de orientação sexual, política
ou qualquer outra que dignifique a existência - jamais poderá ser
considerada um fanático ou um fascista, que atua exatamente em
direção ao oposto disso, ou seja, no sentido da manutenção das
hierarquias e redução do livre pensamento. Nesse sentido, é
impossível comparar, como recentemente fez Donald Trump, o
famigerado elemento que pratica a violência como integrante da Ku
Klux Klan com aquele que a refuta assertivamente como instrumento
para impedir a atuação dessa entidade racista. Não se trata de
dois fanáticos atuando, um em cada polo de um comportamento que
poderia ser classificado como fascista, mas de um fanático e
fascista sendo contrastado energicamente por um libertário. Este
último encontra justificativa em sua ação na própria Carta dos
Direitos Humanos, enquanto a atitude daquele é fundada na infâmia e
no desejo abjeto de distinção social pela cor da pele, fruto do
acaso do nascimento.
A
indagação que faço é: ao racista ou homofóbico deve ser dado o
mesmo espaço de diálogo e escuta que a de um libertário? Penso que
não. Ainda que se possa conceder a ele o direito de se expressar
livremente, deve encontrar resposta rápida e vigorosa que interrompa
a sua fala, bem como ouvidos surdos para escutá-la. Nenhuma atenção
deve ser dada a quem defende a indignidade, salvo para refutá-la com
energia.
Paralelamente,
o mundo aparentemente está encontrando uma realidade de ressonância
ao histórico abandono material e cultural da imensa maioria da
população. Em todas as épocas, aproximadamente, um por cento da
população deteve praticamente toda a riqueza, dez por cento serviu
de cão de guarda do poder (hoje, é chamada de classe média),
enquanto os demais amargavam as dores da pobreza e da miséria. Da
mesma forma, cerca de dez por cento tinham e tem acesso ao capital
cultural, relegando-se os demais à ignorância da realidade real e à
ilusão provocada pelo discurso hegemônico. Atualmente, essa massa
miserável e ignara, incapaz de produzir pensamento próprio e
crítico, se entrega de modo cada vez mais voraz ao fast food do
pensamento: a religião e o fascismo político baseado nos memes,
chavões e bordões autoritários e elitistas compartilhados à
exaustão pelas redes sociais. O discurso tencionava criar um gado
manso e de fácil condução, mas ele está se tornando um leviatã
indomável e imune à inteligência.
Não
resta dúvida de que é fundamental manter as portas abertas para o
diálogo. Há de se perguntar, porém, se é possível dialogar com a
infâmia.
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