sábado, 16 de setembro de 2017

Ciro Gomes: o custo da traição


A capacidade de alguns seres humanos de materializar a hipocrisia parece ser ilimitada. Frequentemente testemunhamos pessoas ultramoralistas e conservadoras, defensoras intransigentes da ética, da ordem, da moral, dos bons costumes, da família, da monogamia e da heterossexualidade, pegas em flagrante praticando pedofilia, ou em relação homossexual, ou com malas de dinheiro em suas garçonniéres, ou em qualquer situação atentatória às pregações que até então realizava. Na verdade, alguns exercitam a hipocrisia a um tal nível que, mesmo após flagrados contrariando o próprio discurso, continuam a exigir dos outros o que não praticam.
Há poucos dias, uma jornalista da Globonews, demonstrando que, fora do teleprompter, a inteligência na Globo é bastante rasa, publicou em seu twitter uma crítica ao Lula por ter ele adjetivado Palocci de calculista e frio, enquanto, no passado, o elogiava. Todos sabemos que os jornalistas da grande imprensa, notadamente os da Globo, são absolutamente “imparciais”. Produzem críticas indiscriminadamente para todo e qualquer político, desde que não sejam do PSDB, preferencialmente sejam da esquerda e, melhor ainda, do PT. Em poucos segundos uma sagaz internauta respondeu ao “tweet”da jornalista: “Quando você chamou Aécio pra padrinho do seu casamento também devia achar muita coisa boa dele, né? Acontece…”. Essa resposta, como não poderia deixar de ser, acabou gerando um gigantesco compartilhamento, possivelmente para desespero da pouco inteligente jornalista, que deveria ter consciência do próprio telhado de vidro.

Nem vale a pena comentar a hipocrisia explícita que reinou no Congresso quando da votação do impeachment da Dilma e a implícita, que acomete os tribunais, principalmente o Supremo.
E quem acaba de ingressar no panteão pouco glorioso da hipocrisia oportunista nacional? Sim, ele mesmo: Ciro Gomes. Sugere ele que o povo não é imbecil e está percebendo as contradições na narrativa de Lula sobre as investigações da Lava Jato. Ciro sustenta que Lula se equivoca ao abraçar Renan Calheiros nas manifestações e que há contradição no PT ter votado no Eunício Oliveira para a presidência do Senado. Afirma que Lula não pode se dizer perseguido pelo sistema, pois quem o está acusando é um companheiro de décadas.
Ciro jogou para a plateia, tentando abocanhar uma fatia do eleitorado antipetista nacional e também dos neutros. Ciro conhece a militância petista e sabe que esta declaração o afastará definitivamente de qualquer simpatia desses militantes. O estrago eleitoral junto aos petistas é irreversível. Se algum petista convicto o considerava uma opção, isso definitivamente acabou. Como, ao menos ao que parece, é impossível classificar Ciro Gomes como um jumento político, um ignorante que tateia aleatoriamente no escuro das possibilidades eleitorais, o que o teria levado a abdicar de quase um terço do eleitorado nacional? Teria sido uma jogada super inteligente que nos escapa, a nós que não possuímos o mesmo atributo de genialidade? Não, não foi. O que o moveu, para ficar numa palavra, foi o desespero. A fonte desse desespero político? A sede de poder que sempre orientou cada passo de Ciro Gomes e a percepção de que o seu tempo está passando sem a abertura de uma janela política favorável. O sentimento de que a desesperança de parcela importante dos eleitores não petistas está sendo canalizada, por eleitores que estão aquém do uso da inteligência, para figuras abjetas que se situam nos limites do gradiente político. A sensação de que, ainda que Lula não seja candidato, o PT possivelmente terá candidato próprio, quem sabe Haddad, quem sabe Lindberhg ou, ainda, Gleise Hoffmann.
Essas percepções aterrorizam Ciro Gomes, pois ele é, nada mais, nada menos, do que uma Marina da Silva ou uma Martha Suplicy do gênero masculino, movido pela mesma impressão messiânica de que tem um destino heroico traçado pelos deuses e que tudo e qualquer um que se interpuser nesse caminho é um empecilho a ser afastado ou mesmo destruído. Assim como Marina e Martha, Ciro delira que nasceu para ser presidente do Brasil, de modo que eventuais pecados cometidos no percurso constituem um dano colateral aceitável em função de um projeto maior e mais importante. Os fins justificam os meios, como diria Dostoiévski através de Raskolnikov. Se a realidade, por vezes, imita a ficção, é interessante lembrar que Raskolnikov não teve um final muito feliz.
Por que entender a declaração de Ciro como demonstração de pura hipocrisia oportunista? Porque ele é um político experiente que não desconhece que, em política, somente os tolos jogam para o tudo ou o nada. Esse é um dilema ético, sem dúvida, mas que é imposto pela realidade inescapável e não pela vontade individual. Ciro sabe que houve um “racha” no PT em relação à votação no Eunício, com grande parte dos parlamentares manifestando-se pela não adesão à chapa do PMDB. A parcela mais “afinada” com a militância, como Lindbergh Farias, Gleisi Hoffmann e Fátima Bezerra, foram contra. O problema é que, graças ao trabalho incessante da grande mídia e de instituições públicas que abdicaram do seu dever constitucional de zelar pela imparcialidade e legalidade, o PT perdeu fatia importante do poder político. Se abdicasse da mesa do Senado, perderia mais uma importante ferramenta política. De que interessa ao cidadão que um partido se torne totalmente incapaz de influir nas políticas públicas? Ciro quase certamente faria o mesmo, mas assume a postura hipócrita de exigir um purismo programático que não possui, pois praticou e pratica durante a vida pública a mesma política de coalizão praticada pelo PT, que exige, vez ou outro, a exibição de um sorriso amarelo ao abraçar um adversário num palanque.
Quanto a Palocci, Ciro resolve “esquecer”, assim como fez a repórter tucana da Globonews, que a credibilidade das afirmações do ex-ministro de Lula é inversamente proporcional à tortura psicológica que lhe foi imposta pelo grupo de justiceiros de Curitiba: prisão preventiva fundamentalmente ilegal há mais de um ano e possibilidade de ficar preso por vários outros anos caso não mencionasse o nome de Lula. Relembra-se que, inicialmente, mesmo condenado, Palocci nada disse contra Lula. Todavia, não possuindo a mesma integridade moral de um José Dirceu, sucumbiu à tortura e possivelmente denunciaria a própria mãe se moros e dallagnóis assim exigissem.

Como toda pessoa instruída e politizada desse país, Ciro Gomes sabe que Lula sofre uma perseguição política implacável da mídia e da “justiça” desse país. Ele possui perfeita ciência de que o objetivo é varrer o PT e Lula do cenário político brasileiro e evitar à todo custo que Lula seja candidato. E é justamente esse último objetivo que interessa a Ciro e decidiu levá-lo a se tornar sócio do linchamento midiático-jurídico que tenta massacrar Lula. Ainda que ao custo sabido de perder a simpatia dos eleitores petistas. Ciro imagina que o ganho será maior do que a perda. Quase certamente perceberá que o custo da traição às próprias convicções não está limitado à perda direta da confiança dos prejudicados. Ninguém gosta de traidores, nem de um lado, nem do outro. A aposta já foi perdida: Ciro não será presidente da República na próxima eleição e, a partir de agora marcado pelo signo do oportunismo hipócrita, talvez, nunca.

4 comentários :

  1. Com meu voto que sinceramente pensava em consignar a ele, nunca, today, tomorrow and forever!

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  2. pois é ...quando li isso que ele disse, quase nao acreditei...era meu voto alternativo a Lula....porem se sobrarem Alckimin e Ciro no segundo turno, nenhum deles recebera meu voto...

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  3. Só escreve isso quem não conhece o mínimo da trajetória do Ciro Gomes, quem quer criticar...

    Marina Silva ou Martha Suplicy não são nem de perto o que Ciro Gomes é...
    Marina Silva adora meio ambiente e fontes alternativas de energia. Mas o Acre não tem 40% da energia elétrica das suas casas vindo dos ventos. O Ceará tem.
    Martha Suplicy adora falar de educação. Mas São Paulo não tem 77 entre as 100 melhores escolas do país e a cidade natal da Martha não é o melhor município no IDEB Nacional. O Ceará tem 77 entre as 100 melhores escolas do país e o melhor IDEB nascional é Sobral, onde Ciro cresceu e começou sua militancia política.
    Sede de poder? Como pode ter sede de poder um governador que teve um mandato só e não se candidatou mais apesar de ser o governador mais popular do país, ele preferiu montar outros quadros para ter renovação entre os personagens políticos, claro: mantendo o projeto os objetivos e o rumo para manter o Ceará o mais saneado fiscalmente do país.
    Sede de poder tem aqueles que unem-se a quem quer que seja para ter votinhos, que abraça e apoia quem quer que seja, Maluf ou não, cunha ou não, eunício ou não, desde que venha uns votinhos aqui e ali...

    Não é desespero político não...
    Fala isso quem não sabe que essa crítica vem desde a época em que Ciro era ministro de Lula.
    Ciro não traiu Lula. Ciro apenas largou o governo Lula para não trair as suas convicções pessoais.
    Ciro Largou o FHC depois de afirmar ao FHC que o Padilha (mais conhecido como quadrilha) estava roubando no ministério dos transportes e ouviu do FHC que o presidente tem que contemporizar certas coisas... Ciro então largou o FHC.
    Ciro Largou o Lula depois de afirmar ao Lula que o Cunha (a quem ele chamou de ladrão enquanto os dois eram colegas de câmara) iria roubar em Furnas caso o Lula nomeasse o indicado do Cunha para a Companhia. Lula nomeou. Ciro então largou o governo Lula. E não aceitou participar do Governo Dilma por não aceitar a aliança com PMDB.

    Ciro não vai vender a alma para ganhar uns votinhos...
    Quem achar que o PMDB deve sempre estar comandando as coisas no país que votetm no Lula...
    Ciro já afirmou: Um possível governo meu será histórico pois pela primeira vez desde a redemocratização do país o PMDB vai para a oposição ao governo.

    Escreve esse texto quem, da mesma forma que critica, movido somente pelas manchetes jornalísticas que vitima Ciro e Lula e qualquer trabalhias nas mídias tradicionais e oliquarquica, ao responder a acusa com as mesmíssimas palavras usadas pelo Ciro na mesma entrevista em que o criticou.
    O Ciro explica e sempre explicou que a perseguição a Lula é de uma fragilidade jurídica ímpar.
    Que o pedaladas fiscais não é golpe.
    Que Ceará foi o esdado que mais % de seus deputados votou contra o impeachment.
    Tudo isso o Ciro afirma e diz a todos e qualquer um que perguntar!
    Porém, as críticas que que ele faz não é nem de longe as mesmas críticas feitas pela GloboNews.
    A GloboNews nunca criticou Lula por ter colocado Henrique Meireles como presidente do Banco central e o mantido lá por 8 anos.
    A GloboNews nunca criticou Lula por ter mantido a Secom com a mesma medida do IBOPE para direcionar as verbas publicitárias.
    A GloboNews nunca criticou Lula por ter salvo a própria Globo quando essa quebrada por ter se endividado em dollar sem perceber a iminente crise cambial no final do governo FHC.
    A GloboNews nunca criticou Lula pelos seus verdadeiros erros políticos nesses 13 anos de governo que resultaram no golpe de 2016.

    E você quer coloca-lo no mesmo saco dessa mídia oligárquica...
    Só faz isso quem está de má fé ou não acompanhou nada do personagem que quis criticar...

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  4. O texto de Marcio Valley é tendencioso em vários níveis, mas principalmente num tom quase fundamentalista onde a palavra "traição" ressoa como "heresia".

    Ciro (com suas idiossincrasias) tem sido coerente em relação a seu discurso sobre Lula há bastante tempo. Essa escandalização de sua fala atribuindo a Lula "responsabilidade política" sobre Palocci merece ser lida em termos psicanalíticos como "projeção": acuso em Ciro o que não posso admitir em mim mesmo. Se não é de Lula a "responsabilidade política", de quem será?

    O lulismo enfrenta hoje o paradoxo de Palocci. Por um lado é evidente que Palocci mente, exagera e inventa a serviço das expectativas dos promotores e do juiz ao narrar cenas em que Lula trata diretamente em sua presença de assuntos de "baixa espiritualidade". Por outro lado, julgo ser mentira justamente porque Palocci e similares existiam e atuavam para que Lula não precisasse jamais pisar em terreno movediço, o que torna a delação inverossímil.

    Ou seja, por mais que Palocci minta ele ainda é em si uma verdade implícita difícil de negar. Ele existiu e atuou a serviço de um projeto que por mais que se acreditasse valoroso, não deixou de flertar com ilegalidades só porque não tinha por objetivo central o enriquecimento escuso dos atores envolvidos.

    (Dito isso, ainda suponho que Lula, Dirceu e mesmo Palocci sejam moralmente e politicamente superiores a Temeres e Geddéis. Acho trágico que sejam condenados em processos falhos, repletos de irregularidades e narrativas bobas a serviço do ódio de classe.)

    Voltando a Ciro, o juízo de que ele está acabado por cometer herezias contra o "nosso mito" me parece uma análise falha. Ciro não está atrás dos 20% de votos cativos do PT, mas dos 40% hoje declarados para Bolsonaro e Dorea. Se ele conseguir seduzir esses eleitores perdidos sem aderir ao discurso simplório dessas duas "coisas", tem grande chance de sucesso. Para isso, precisa assumir um certo "anti-lulismo racional" baseado em criticas embasadas às contradições inegáveis do lulismo e na adesão a seus melhores valores. Quem poderá negar que Ciro apoiou e participou verdadeiramente desse projeto sem jamais calar suas críticas pertinentes a ele? Não há traição, há coerência, concorde-se ou não com essas críticas.

    Ciro não terá apoio de Lula, do PT ou dos fundamentalistas em 2018. Ainda assim está otimista, achando que a eleição "está pra mim". Ele tem boas razões pra supor isso.

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