O mal, como uma criação da consciência inexistente na natureza, existe no vazio do bem, ou seja, do mesmo jeito que a escuridão é o vazio de luz, a ausência da ideia do bem é ocupada pela ideia do mal. Sem a consciência reivindicadora do bem perene, existem apenas os fatos da natureza e eles configuram meramente causa e efeito, sem dimensão moral. O fato natural que destrói é o mesmo que cria.
Nos três artigos anteriores, O indivíduo, parte I e O indivíduo, parte II e O indivíduo, parte III, o comportamento individual foi analisado a partir da influência dos instintos ancestrais que favorecem a prática do egoísmo, do altruísmo, da religião, além de indagarmos os motivos da submissão do povo a uma elite muito pouco numerosa que, ao longo dos anos, exerce o controle social para beneficiar-se do esforço coletivo, o que consegue ao custo da miséria de grande parte da população. Neste último artigo sobre o indivíduo, as ações individuais serão sopesadas a partir de seus efeitos concretos no mundo, efeitos estes que são categorizados como “bondade” ou como “maldade”. Enfim, falaremos sobre o certo e o errado e, portanto, sobre ética e moral.
Antes de iniciar o tema propriamente dito, importante relembrar que, embora nos classifiquemos como animais racionais, e somos de fato, a distinção entre animais racionais e irracionais opera no campo do grau e não da substância. A diferença reside na extensão do processo evolutivo quanto ao uso da inteligência, da razão e da lógica. Incontáveis experimentos demonstram que muitos animais considerados “irracionais” são capazes de raciocínios abstratos extensos, como macacos, papagaios, corvos, polvos, cetáceos e muitos outros. Além disso, foi apenas a força do acaso que determinou que o planeta Terra possuísse hoje somente uma única espécie considerada inteligente; já fomos várias, ao mesmo tempo e, por vezes, no mesmo lugar.
Contudo, ainda que os humanos tenham alcançado um grau evolutivo que os autoriza a refletir sobre o próprio comportamento com a finalidade de mitigar a força instintual, o que faz movido pela dupla intenção de obter benefício para si (egoísmo) e para a coletividade (altruísmo), as bases mais profundas do comportamento humano continuam sendo instintuais, com leve mitigação provocada pela recente criação do superego coletivo (a cultura e sua normatividade comportamental).
Em suma, mesmo atualmente, os humanos ainda se encontram num estágio muito mais próximo da animalidade irracional do que de uma superinteligência alienígena. Esta, se chegasse à Terra e testemunhasse a imensa destruição do ambiente do qual depende nossas vidas, inclusive o pouco-caso que demonstramos em relação às demais espécies, seres importantíssimos para a manutenção do equilíbrio do sistema que nos sustenta, talvez nem notasse diferenças impactantes de inteligência entre os seres vivos do planeta, classificando os humanos apenas como os mais vorazes e destrutivos dos predadores. Um vírus, segundo a categorização do agente Smith, personagem do filme Matrix (ele, na verdade, não era uma pessoa, mas um programa instalado na realidade virtual criada pela superinteligência artificial cujo nome era o mesmo do título).
Há uns dois ou três milhões de anos, o ser humano era apenas mais uma das diversas espécies animais irracionais que habitavam o planeta. Como leões, lobos e chimpanzés, vivia em bandos, sobrevivendo da caça e da coleta. Levavam a vida em estado de natureza, status da vivência humana no período anterior à civilização, muito antes do surgimento do Estado moderno, detentor de poder regulador perante a sociedade civil. Ou seja, trata-se de uma era que antecede a existência dos governos e que em nada difere do modelo adotado por animais gregários considerados irracionais.
Nessa configuração social, a liberdade do ser humano não possuía contornos definidos, cerceada somente pela ação do outro. Inexistia proteção ao direito de propriedade, de modo que qualquer um podia reivindicar para si o que cobiçava das mãos do próximo. A posse da coisa dependia da sorte do possuidor ou da capacidade de mantê-la, por força ou inteligência. Os atributos do estado de natureza permitem concluir, em princípio, que a liberdade plena é um pesado fardo, implicando uma vivência menos segura relativamente aos direitos à vida, à integridade física e ao patrimônio.
Em algum momento desse passado longínquo, quase certamente por mero acaso, a carne, com maior poder energético que os vegetais, foi alçada à condição de principal alimento da dieta. Em seguida, após o controle do fogo, passou-se a cozinhar os alimentos, o que redundou em economia do imenso gasto energético necessário à digestão. O plus energético adquirido com o consumo de carne e alimentos cozidos foi redirecionado ao cérebro, que cresceu em volume e atividade neural. Surge a inteligência consciente e racional.
Contudo, a arqueologia constata que, mesmo após já contar com um cérebro complexo, basicamente igual ao atual, os humanos continuaram, ainda por dezenas de milhares de anos, a viver ao estilo dos outros mamíferos gregários, à exceção de uma ou outra ferramenta rústica inventada. Homens caçavam e coletavam, mulheres pariam e cuidavam das crianças, além de coletar e preparar alimentos. O resultado do trabalho era dividido igualitariamente, talvez com alguma pequena vantagem ocasional para os líderes. A liberdade de ação era praticamente plena. Com justiça distributiva e ampla liberdade de comportamento, o coletivo pré-histórico assinala um raro período de convivência pacífica entre os liberalismos econômico e comportamental. Nem tudo eram flores, porém. Os indivíduos fracos eram mortos ou abandonados à própria sorte. Poucos chegavam à velhice e os que chegavam tornavam-se descartáveis. As fragilidades individuais constituíam um peso não suportado pelo grupo, ao menos não por muito tempo.
Os fatos ocorridos na pré-história, sem a pressão dos regulamentos sociais e, portanto, naturais, demonstrariam que os humanos são seres essencialmente maus, redimidos pelo advento da civilização? Ou, justamente o oposto, seres bons maculados pela sociedade perversa? Vários pensadores se lançaram na busca por resposta a essa indagação, mas três se destacam e apresentam conclusões diametralmente distintas: os filósofos ingleses Thomas Hobbes (1588-1679) e John Locke (1632–1704) e o suíço-francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
Segundo a obra de Hobbes, no estado de natureza os seres humanos travam uma guerra eterna de uns contra os outros em busca da autopreservação e da conquista de relevância sobre os demais na repartição dos recursos escassos. Não se trata apenas de justificável defesa da vida e do patrimônio, o que também existe, mas principalmente de ataque preventivo para eliminar os possíveis inimigos e paralelamente se apropriar do espólio dos vencidos. Por conta disso, o filósofo acredita que é natural no ser humano a índole má, o que resume na frase “o homem é o lobo do próprio homem”. Hobbes conclui ser a sociedade, através da redução das liberdades individuais, a redentora da humanidade, tornando-a melhor pela via da restrição dos apetites individuais ilimitados. Em Hobbes, o ser humano nasce mau e é redimido pela sociedade boa.
De forma contrária, Rousseau sustenta a teoria do “bom selvagem”, ou seja, que o ser humano nasce essencialmente bom, sendo essa bondade original degenerada pela convivência social, convertendo-se em maldade. Exatamente como ocorre com os animais irracionais, no estado de natureza os seres humanos são livres e felizes, com acesso igualitário aos bens naturais, que existem em abundância e são suficientes para todos. Por outro lado, a partir da influência da sociedade, torna-se uma criatura má, tanto em função da instituição da propriedade privada, que inaugura a desigualdade social e estimula o egoísmo, como da consequente necessidade de protegê-la, materializada na violência das guerras entre pessoas e povos. Rousseau considera que a desigualdade individual é um fato inexorável da natureza humana, mas a desigualdade social deve ser mitigada pelo uso racional da inteligência, pois repercute negativa e coletivamente no exercício da liberdade, como são exemplos a servidão, a escravidão, a miséria e as sucessivas tiranias que surgem regularmente no seio social. Em Rousseau, o ser humano nasce bom e é degenerado pela sociedade má.
Eis que entra em cena o pensamento de Locke, segundo o qual nem Hobbes nem Rousseau estão certos. Há uma terceira via conclusiva. É o argumento da tabula rasa, expressão latina com o significado de folha de papel em branco, segundo o qual as pessoas nascem iguais e desprovidas de conhecimento. A mente é uma folha em branco a ser preenchida pela experiência vivida. Sendo assim, o ambiente é responsável pelo tipo de humanidade que surgirá de seu seio. Nesse caso, numa selva que disponha de fartura dos elementos necessários à existência, emergirá o bom selvagem; caso os recursos sejam parcos, produzirá sanguinários primitivos. De modo similar, uma sociedade justa e igualitária criará cidadãos vocacionados para o bem; caso contrário, tornar-se-á uma escola para a criminalidade. Assim, o ser humano não nasce essencialmente bom ou mau, ele apenas nasce, é e tenta continuar a ser em si e em sua descendência, como todo e qualquer outro animal, a partir do aprendizado da vida. Em Locke, o ser humano nasce com índole neutra, tornando-se bom ou mau segundo o ambiente no qual adquire suas experiências.
Independentemente das diferentes visões desses grandes pensadores, o fato é que mal e bem são conceitos engendrados pela cultura humana, inexistentes na natureza. Os fatos da natureza não são essencialmente maus ou bons. A criação, em si, não pode ser vista como representação do bem ou do mal. Um animal que mata outros, uma planta venenosa, uma chama que destrói uma floresta ou uma pedra que desaba sobre uma ovelha inocente, por si, são elementos axiologicamente inertes numa perspectiva ético-moral, sem conteúdo positivo ou negativo. Uma fatalidade natural não é um produto da maldade, primeiro, porque não há agente e, segundo, porque produzem efeitos na natureza que, sob a perspectiva humana, são positivos e negativos simultaneamente. O asteroide que pôs fim aos dinossauros possibilitou a ascensão dos mamíferos e, consequentemente, dos seres humanos.
Um leão solitário não merece a pecha de malévolo por atacar o macho alfa de um bando de fêmeas com o objetivo de as tomar para si, mesmo quando mata todos os filhotes do bando para induzi-las a um novo cio e inseminá-las com seu próprio código genético. O comportamento é natural, movido pelos instintos de preservação individual e genético. Como um produto da natureza, o ser humano está sujeito a idênticos desígnios e inclinações e movido pelos mesmos instintos naturais de sobrevivência e perpetuação da espécie. Na perspectiva natural, meramente animal, nada disso é bom ou ruim, apenas é.
O ser humano, em estado de natureza ou na civilização, age essencialmente a partir de instintos básicos que, eventualmente, como vimos nos artigos anteriores, podem ser apenas levemente modificados por força da cultura. Suas ações são precipuamente voltadas ao benefício próprio ou de sua prole. São eventualmente incluídas na categoria da maldade pelo outro quando este, por conta dela, sofre algum efeito prejudicial, real ou putativo, e, por isso, passa a enxergar a ação em questão como representação do mal. O mesmo ocorre com os fatos da natureza eventualmente prejudiciais, caso em que, não possuindo um agente humano específico, não raramente o mal sofrido é imputado a alguma entidade sobrenatural, personificada em figuras demoníacas como o diabo, leviatã, satanás, demiurgo, gênio do mal ou outra qualquer. Aparentemente, como a criança que cria um amigo imaginário para combater a solidão, o ser humano necessita de um capeta imaginário a quem culpar pelo sofrimento de que padece.
Nessa dimensão, o bem assimila o significado de normalidade ou bem-aventurança. O mal, como uma criação da consciência inexistente na natureza, existe no vazio do bem, ou seja, do mesmo jeito que a escuridão é o vazio de luz, a ausência da ideia do bem é ocupada pela ideia do mal. Sem a consciência reivindicadora do bem perene, existem apenas os fatos da natureza e eles configuram meramente causa e efeito, sem dimensão moral. O fato natural que destrói é o mesmo que cria.
Embora se diga que o mal não existe na natureza, pois há sempre uma repercussão positiva que devolve equilíbrio ao universo, ele existe efetivamente na mente humana com o significado de repercussão negativa de um fato natural ou ação humana sobre a vida de alguém. É somente nesse sentido – de que as coisas poderiam buscar o equilíbrio natural sem prejudicar o “eu” – que se justifica plenamente a criação das categorias de bondade e de maldade. E quem se importa com isso – a possibilidade de repercussão negativa da ação humana na vida do outro – é a ética. Os fatos da natureza são despiciendos para a ética, constituindo apenas tragédias lamentáveis, cabendo apenas, se for o caso, o exame da ação humana que poderia ou deveria ter sido realizada para evitar ou minorar suas consequências.
Direito, ética e moral possuem um denominador comum que é a normatização do comportamento individual, em busca de paz e equilíbrio social. Todavia, embora possuam intensos pontos de contato, os três conceitos não se confundem, ao menos não totalmente. Tanto o direito como a moral são fontes normativas regulatórias do comportamento do indivíduo, de modo que preexistem ao comportamento objetivamente falando, pois se destinam a dar direcionamento às possíveis ações concretas do futuro. O direito é uma norma impositiva cuja origem é o Estado, enquanto a moral é norma de conduta, em geral facultativa, criada espontaneamente por um dado coletivo humano, podendo ser religiosa ou laica.
A ética se preocupa com o direito e com a moral, tratando-se de metanormatividade, na medida em que fornece os princípios de criação das normas morais ou de direito, sempre visando o bem comum através de indicativos quanto ao modo menos prejudicial que o comportamento do indivíduo deve assumir no grupo. Além disso, é a ferramenta utilizada na investigação dos comportamentos passados em relação aos ditames da lei e da moral. É a ética que nos informa se a ação humana realizada foi benéfica ou prejudicial para a sociedade.
Por outro lado, quando se diz que um determinado comportamento não foi ético, isso não significa necessariamente que ele ocorreu contrariamente aos ditames da lei, mas que foi maléfico ao corpo social, pois o bem da coletividade é o real interesse da ética. Vocacionada para a proteção do interesse coletivo, impõe um comportamento individual orientado para o atendimento primacial das necessidades da sociedade, acima da lei e ainda que esta seja omissa ou assim não exija.
É claro que, numa sociedade desenvolvida, presume-se que a lei, criada por representantes do povo, seja o farol ético a ser seguido, de modo que, num mundo ideal o comportamento ético seria equivalente à obediência estrita da lei. Não vivemos, porém, num mundo ideal. No mundo real, no qual vivemos, a riqueza corrompe a democracia; por isso, ela é frágil, rala, não efetivamente representativa. As leis são manipuladas para atender interesses poderosos, tanto no processo legislativo de criação, como posteriormente, na interpretação a elas dada pelos tribunais. Enfim, as próprias leis ou a jurisprudência, com regularidade lamentável, nascem com objetivos antiéticos, corrompidos.
Estabelecida a fragilidade da democracia e o uso corrompido da política como instrumento de manutenção da dominação, o peso ético da regra civilizada que estipula obediência irrestrita do indivíduo à lei é relativo. Observado que a ética está vocacionada à proteção do interesse coletivo, em determinadas situações o comportamento mais benéfico a seguir pode ser aquele orientado pelo inconformismo e pela irresignação. Obviamente, o próprio inconformismo há de ser ético, não sendo admissível que, em nome do bem comum, cometam-se atrocidades, morticínios, torturas e estupros, como historicamente são registrados, vide revoluções francesa e russa. Existem meios éticos, mesmo com a inobservância das leis, para a demonstração da revolta, como passeatas, paralisações, greves, boicotes, desobediência civil pacífica, além de outros. Sem dúvida alguma, porém, o melhor e mais adequado meio de aprimorar o ambiente ético ocorre através de uma melhor seleção dos representantes políticos nos quais se votará. Tentar enxergar quem, de fato, representa os interesses do povo é imprescindível. Podem ocorrer situações distintas, mas raramente: via de regra, ricos possuem objetivos opostos aos dos pobres. O curioso é que, em geral, ricos não votam em candidatos que desejam beneficiar pobres; todavia, com frequência, pobres votam em candidatos cujo objetivo é atender aos interesses dos ricos.
Ao fim da análise do comportamento individual, concluímos que as ações do ser humano ainda se explicam majoritariamente pelo mecanismo dos instintos, sendo pouco relevante a camada cultural sobre o comportamento. Por conta disso, move-se quase inteiramente em função do egoísmo inato, buscando o melhor para si, somente favorecendo o altruísmo em situações muito especiais. Dadas essas características que lhe são inerentes e, portanto, inarredáveis, cabe ao corpo social utilizar dos recém-adquiridos atributos da racionalidade e da cultura, para construir uma sociedade boa através da imposição de uma normatividade que favoreça o altruísmo compulsório, utilizando desse mecanismo para reduzir a indignidade a que foi reduzida uma imensa porção da população humana ao redor do mundo. Disso depende a felicidade comum e constitui obrigação ética dos governantes buscar esse caminho, sob pena de persistência e mesmo aumento da violência urbana que adoece praticamente todos os sistemas coletivos do planeta, o que atinge e causa sofrimento, ainda que em graus distintos, tanto aos ricos como aos pobres.
De todo modo, independentemente das conjecturas filosóficas sobre a natureza boa ou má do ser humano, o valor do processo civilizatório é indubitável. Sendo assim, vale delinear uma visão simplificada da genealogia da civilização, o que passaremos a tentar levar a cabo nos próximos artigos.
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