O direito à liberdade de opinião e expressão do pensamento é uma conquista inarredável da modernidade; não se pode compactuar com sua mitigação, muito menos extinção, somente se admitindo sua extensão em direção, num futuro capaz de lidar melhor com as diferenças, à liberdade total.
A liberdade de manifestação da opinião e de expressão encontra-se dentre os direitos mais sagrados da humanidade, possivelmente superior em importância ao direito de propriedade, encontrando proteção em âmbito internacional pelo artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
Artigo 19 - Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
No território brasileiro, a manifestação de opinião e expressão é garantida pelos incisos IV e IX do artigo 5º da Constituição, segundo os quais, respectivamente, são livres “a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” e “a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Trata-se de um direito cujo exercício parece ser natural ao ser humano moderno. Caso indagássemos nas ruas sobre o que pensam sobre a validade do direito de opinião, certamente nove em dez entrevistados diriam tratar-se de um bem sagrado do ser humano, um direito ínsito à própria existência da pessoa. Contudo, na maior parte da história esse direito não existiu ou, quando existiu, foi permitido de forma absolutamente limitada. Expressar opiniões já matou muita gente ao longo do “corre” da humanidade, para utilizar uma gíria desse momento “grande irmão”.
O direito à liberdade de opinião e expressão do pensamento é uma conquista inarredável da modernidade; não se pode compactuar com sua mitigação, muito menos extinção, somente se admitindo sua extensão em direção, num futuro capaz de lidar melhor com as diferenças, à liberdade total.
"Eu posso não concordar com uma palavra do que você diz, mas defenderei até a morte o direito de dizê-las". A frase, atribuída a Voltaire, mas possivelmente de autoria da escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall, resume a intensidade do direito de manifestação do pensamento, contendo em si um outro direito que, por vezes, passa despercebido pelas pessoas: o direito à crítica (“posso não concordar”).
Nem a declaração dos direitos humanos, nem a constituição, nenhum princípio democrático, atribuem à pessoa o direito de não ter sua opinião criticada, inclusive porque resultaria em contradição em termos, dado que a crítica, alguns não se dão conta, é também uma opinião, encontrando sua exposição acobertada pelo mesmo direito que protege o autor do pensamento criticado. A garantia é, meramente, do direito de possuir, expor e, se for o caso, manter a própria opinião mesmo após as críticas recebidas; nada além disso.
Relembra-se que toda liberdade envolve restrições e todo direito é limitado pelo interesse coletivo. O direito e a liberdade da pessoa encontra sua fronteira no direito e na liberdade da outra. É do interesse coletivo que as opiniões expostas sejam dissecadas e, se for o caso, criticadas, dado que a crítica pode pôr em evidência uma opinião deletéria para a comunidade, o que, deveras, se tornou comum no país de um tempo para cá, com negacionismos e terraplanismos.
Tornar público o próprio pensamento com a pretensão de indiscutibilidade, incriticabilidade e recepção positiva geral é arrogância qualificada pela imodéstia. Isso vale para todos nós. Opiniões de pessoas comuns somente não recebem críticas generalizadas pela ausência de repercussão, o que não impede que receba resposta dos ouvintes locais. O conselho que se dá aos que tem horror da crítica e não deseja recebê-la é: não exponha posicionamento público sobre assunto algum; isso vale para opiniões publicadas nas redes sociais.
A democracia é o espaço ideal para o exercício da liberdade de opinião, mas seus próprios atributos a tornam também o campo necessário para a exposição das divergências, sendo o debate o principal motor de solução dos conflitos de opiniões. Obviamente, opinião se combate com opinião. O limite da opinião e da crítica é a argumentação teórica, não podendo chegar ao desforço físico. E, claro, a defesa do direito de opinião se esgota na mera opinião, não podendo resvalar para o cometimento de crimes através do discurso. Opiniões não podem ser acobertados pela invocação do direito de livre expressão do pensamento quando a ponderação dos interesses em jogo revelar que possui objeto criminoso e, portanto, deletério para a sociedade.
Discurso de ódio não encontra guarida no direito à liberdade de opinião, pois defende, para a concretização do objeto do discurso, a prática da violência física e verbal entre as pessoas, com potencial para iniciar inclusive uma disputa armada entre os cidadãos, uma guerra civil. Foi mais ou menos o que ocorreu recentemente no caso do deputado brucutu: entendeu-se que o direito à imunidade parlamentar possuía um interesse coletivo socialmente menos preponderante do que a defesa da paz social, da democracia e dos poderes do Estado.
Há quem entenda que ninguém tem o direito de julgar os outros. É uma opinião e quem entende assim tem o direito de torná-la pública, o que fornece a oportunidade para sua crítica: trata-se de pura ingenuidade e quem a profere certamente julga incessantemente as pessoas à sua volta. Isso porque os seres humanos fazem isso o tempo todo; produzem julgamentos sobre tudo o que os rodeia, desde o momento em que nascem até o fatídico dia no qual morrem. Trata-se de um comportamento natural e instintivo. No estado de natureza, os humanos tinham que avaliar com rapidez e sabedoria os animais que deles se aproximavam, inclusive outros humanos. Uma má avaliação poderia resultar em sua morte. Ainda temos forte esse instinto e uma análise cuidadosa e isenta revela ser algo que continua sendo importante para a sobrevivência. É com base nele que nos aproximamos ou repudiamos pessoas por vezes logo nos primeiros contatos. Sentimos “algo”, alguns diriam “uma energia” negativa ou positiva. Avaliamos as pessoas, sempre, e é desse ato de julgar que nascem simpatias e antipatias, amizades e inimizades, casamentos e divórcios, compras e desistências, contratações e demissões.
Sempre que possível, é melhor que o juízo de valor sobre o outro permaneça apenas na consciência; contudo, algumas situações podem exigir a exposição da avaliação íntima. Num ou noutro caso, o resultado prático, se haverá afastamento ou não, será o mesmo.
Atualmente, critica-se o cancelamento das pessoas nas redes sociais por conta de suas opiniões ou ações. O debate ganhou relevo recentemente em consequência da 21ª edição de um reality show brasileiro. Não é razão desse texto abordar a perplexidade causada por um programa dessa natureza já durar por longos 21 anos e com audiência. Nossa questão é o direito de opinião e o de crítica. No caso em questão, um dos participantes, até então um dos favoritos para vencer o game, proferiu opinião política que desagradou profundamente seus simpatizantes, o que gerou uma onda de cancelamento das inscrições de seguidores nas redes. Alguns colunistas da imprensa se posicionaram contra o cancelamento, argumentando com o direito de opinião do participante e a intolerância dos canceladores. Será que é demonstração de intolerância esse tipo de cancelamento? Vejamos.
Inicialmente, esclareço que “cancelamento”, aqui, será entendido como crítica pública seguida de distanciamento do cancelado por iniciativa do cancelador.
Cancelamento se apresenta como uma crítica velada; nenhuma opinião necessita ser formalizada para a prática do boicote contra pessoas que fizeram algo ou expuseram opinião que afronta o pensamento dos canceladores. Em relação aos famosos, deixa-se de seguir a rede social do cancelado e, eventualmente, de adquirir seus produtos. Quanto aos conhecidos, o cancelamento resulta, em geral, em suspensão ou rompimento da amizade.
Não há dúvida de que o melhor caminho numa disputa de opiniões é aceitar que elas são diferentes, com respeito mútuo e manutenção do relacionamento. Esse é o modo mais civilizado de lidar com o outro. Ora, divergências existem sobre mil coisas; religião, esporte, política, arte, etc. É perfeitamente possível a manutenção dos laços entre alguém que gosta do amarelo e outra que prefere o azul; MPB e funk; religioso e ateu; pintura clássica e abstrata; enfim, todas as possíveis opções entre duas ou mais vertentes da manifestação da cultura.
Colocada a infinidade de posicionamentos individuais possíveis sobre os mais diversos assuntos, tem-se que, de fato, não se justificam cancelamentos em função de bobagens, pequenezas, opiniões irrelevantes. Não se deixa de lado uma amizade de longa data por conta de um time de futebol, opção musical ou mesmo de uma opinião sobre política com “p” minúsculo (a que se preocupa com partidarismos), como a opção eleitoral por um determinado candidato, um que não destoa flagrantemente do conjunto do pensamento político da sociedade civilizada. A palavra a ser destacada aqui é “civilizada”.
Tudo, aparentemente até o universo, possui limites. No campo da opinião, principalmente a que aborda a política com “P” maiúsculo (a que trata das grandes questões públicas suprapartidárias), a fronteira das relações interpessoais é demarcada por visões de mundo, não somente diametralmente opostas, mas que se autorrepelem, se autodestroem, sem possibilidade de existência mútua. Uma somente pode existir no vazio da outra. Para ficar num exemplo de uma enorme diferença na visão de mundo que em nada impede a manutenção do relacionamento pessoal, religiosos e ateus podem perfeitamente manter amizade sólida e íntima quando ambos compartilham de idêntico respeito principiológico à pessoa, sua vida, integridade física e direito à manutenção da dignidade pela singela circunstância de ser humana. Essa amizade se tornará inviável se um deles revelar-se defensor ou se omitir em relação a discursos e comportamentos que impliquem destruição dos direitos garantidores desses princípios fundantes.
Os que defendem ou não se incomodam com a apologia ou as práticas abusivas e brutais da tortura, do assassinato, do racismo, da homofobia, da misoginia e outras que violam violentamente a dignidade humana, não podem pretender manter amizade ou proximidade com pessoas que enxergam nessas práticas uma ofensa inaceitável aos próprios e mais profundos princípios, norteados para o humanismo, para a civilidade e para a redução das diferenças injustas entre as pessoas. Não se trata de ser intolerante, mas de não admitir a intolerância. Justa é a pessoa que não tolera o intolerável.
O ser humano deseja amizade e proximidade com pessoas que, embora tendo opiniões contrárias, enxergam o mundo mais ou menos com o mesmo formato e com o mesmo senso de humanidade. Que sentido há na exigência de que uma pessoa mantenha contato ou amizade com outra, ou continue a segui-la (no caso das redes), cuja opinião se choca frontalmente com seus mais intensos e, por isso mesmo, inafastáveis princípios e sentimentos? O cancelamento, em determinadas situações, pode ser salutar. O que teria ocorrido na Alemanha dos anos 1930 se todos tivessem cancelado as pessoas que aderiram ou não se opuseram ao discurso nazista? É bastante provável que, diante da demonstração de contrariedade popular, Hitler não tivesse encontrado o solo fértil que encontrou para avançar com seu projeto de destruição e genocídio.
Manter distância da monstruosidade parece um comportamento saudável para quem não deseja se contaminar ou estimular sua ascensão. Por outro lado, monstros sentem-se atraídos pela monstruosidade, mesmo aqueles que não conseguem se enxergar como tal. O nazista Eichman possuía essa visão embaçada sobre si mesmo, o que era comum entre os adeptos do nazismo. Achavam-se o máximo da espécie humana enquanto assavam judeus, homossexuais e ciganos nos fornos dos campos de concentração.
Claro que o perdão há de ser concedido aos que se arrependerem dos posicionamentos indignos do passado. Perdoar é salutar e pacifica a sociedade. Só que o passo a ser dado não cabe ao cancelador, mas ao cancelado: basta a ele “cancelar” a monstruosidade a qual aderiu e pedir desculpas pela estúpida adesão, possivelmente irrefletida. Reconhecer que se desviou do caminho da humanidade é importante. Dado esse passo, certamente será novamente acolhido. Humanos são compreensivos, monstros é que não.
O país experimenta um momento no qual opiniões bárbaras, indignas e desumanas estão, pouco a pouco e cada vez mais, tornando-se socialmente aceitáveis, normalizando a prática do mal. O distanciamento e o abandono de pessoas que aderem ao discurso protofascista pode, numa visão pouco aprofundada, aparentar crueldade contra o cancelado, mas, sem dúvida alguma, trata-se de protegê-lo dele próprio. Todos são beneficiados por esse tipo de crítica pública, cancelados e canceladores; ela é uma condenação à selvageria. Contra o específico posicionamento político aqui abordado, com altíssimo grau de possibilidades malignas para o coletivo, o cancelamento apresenta-se como a resistência possível nesse instante histórico contra as hordas políticas selvagens que assaltaram o país, com potencial para destruir as bases da sociedade integrada por cancelados e canceladores.
Cancelamento contra a barbárie é o ato civilizado que a todos compete. É o que temos em mãos no momento. Vamos cancelar o fascismo enquanto há tempo.
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