É absolutamente descabida, por falsa, a ideia que se tenta passar de que os valores do bolsonarismo e do esquerdismo estão ambos num mesmo saco axiológico. Isso somente serve aos desonestos intelectuais, que possuem interesse em confundir o debate político e pouco se importam com as consequências dessa salada que inventam.
A sociedade brasileira enfrenta o grave problema social representado pelas rupturas familiares e sociais por conta da opinião política. Isso é um fato. Um grande entrave para a correta problematização dessa questão, porém, reside justamente no reducionismo de afirmar a “política”, de forma abrangente, como a causa dos afastamentos. Passa-se, assim, a falsa ideia de que os rompimentos são motivados por causa banal, fútil, que é a “política”. Nem de longe isso está correto.
Vários são os exemplos de pessoas que jamais romperam seus relacionamentos, embora familiares e amigos tenham optado por caminhar em espectro político-ideológico distinto. Pessoas de direita jamais antes se afastaram dos amigos e familiares esquerdistas, assim como esses nunca deixaram de falar com os que votaram sucessivamente na direita; em Collor, FHC, Alckmin, Serra ou Aécio. Nem mesmo os mais antigos, que aderiram ao golpe militar, se afastaram dos esquerdistas que conheciam. Pelo contrário, era comum, na época, os direitistas protegerem “seus comunistas”, sendo exemplo disso Roberto Marinho, que, apesar de adesista de primeira hora ao golpe, costumava dizer, acerca dos jornalistas da Globo, que “dos meus comunistas cuido eu”, não admitindo a interferência dos militares.
O estremecimento massificado das relações sociais por conta da política, que assistimos nesse momento, apresenta-se, portanto, como um fato inédito na história recente do país, ao menos desde a década de 1960 para cá. E, é bom reprisar, não se dá por uma singela divergência de opiniões políticas superficiais. O ponto nevrálgico da situação é a repulsa ao discurso individual que evidencia um choque com a civilidade, com a humanidade, temas absolutamente suprapartidários e essenciais para a saúde da democracia e da sociedade.
Em outras palavras, a ruptura social até decorre, sim, da política, mas não dessa que mais abertamente desencanta a população, a política com “p” minúsculo, dos conchavos, da corrupção, das manobras, enfim, da que mais intensamente movimenta a rotina dos partidos políticos. Nada disso. A pendenga que dividiu famílias e amizades vai muito além disso, colocando-se no registro da política com “P” maiúsculo; aquela que se preocupa com as grandes questões existenciais, vinculadas ao valor ínsito da personalidade e que secundariza o problema econômico, pois o valor da economia, ao menos para os humanos sensíveis, é claramente inferior ao da vida e não somente vida, mas vida com dignidade.
É absolutamente descabida, por falsa, a ideia que se tenta passar de que os valores do bolsonarismo e do esquerdismo estão ambos num mesmo saco axiológico. Isso somente serve aos desonestos intelectuais, que possuem interesse em confundir o debate político e pouco se importam com as consequências dessa salada que inventam. A distopia bolsonarista almeja uma sociedade fundada na violência física, na lei do oeste do pistoleiro armado, na tortura e assassinato de inimigos e na destruição do meio-ambiente; tudo isso para a manutenção, a qualquer custo, da hierarquia injusta na repartição da riqueza.
O sonho utópico das esquerdas, por outro lado, de modo geral, visa a redução das indignidades a que são submetidas bilhões de pessoas ao redor do mundo. A esquerda persegue o fim da fome e da miséria por ser capaz de enxergar um mundo possível no qual a riqueza possa existir, todavia sem a contrapartida necessária atual de adultos e crianças esquálidos, famintos. Pessoas que padecem de diversos modos de insegurança vital (física, alimentar, habitacional e outras); inseguranças essas que grassam mundo afora, mesmo em países considerados “avançados”, como os EUA; violentando bilhões de vidas, cada uma delas importante, necessária e insubstituível.
É claro que há quem vislumbre o bolsonarismo como um movimento paladino pela justiça distributiva. Apesar de paradoxal, isso existe, mesmo após inúmeros exemplos desavergonhados de falta de sensibilidade social e, mesmo, crueldade bolsonarista, que deixam à mostra, nua e crua, a forma de pensar desse movimento perverso e, como se vê agora, genocida. Apenas para ficar num exemplo, há uma fotografia na qual um dos filhos do presidente aparece armado de pistola, junto com outro bolsonarista armado de fuzil, exibindo um cartaz com a inscrição sarcástica “Eu, pacificamente, vou te matar”. Nada de anormal num movimento cujo símbolo é a “arminha” feita com os dedos. Inacreditável, mesmo, é uma pessoa mentalmente saudável continuar a apoiar o bolsonarismo mesmo após incontáveis exemplos desavergonhados de crueldade, insensibilidade e ferocidade como esse. Não é possível; essa pessoa há de padecer de algum grau de patologia psiquiátrica. Contudo, segundo pesquisa recente, 14% da população brasileira ainda enxerga o bolsonarismo como solução social, mesmo após a matança generalizada decorrente da inércia do governo em relação às ações de combate à pandemia. Loucura, ignorância profunda, desespero, tudo isso junto, deve ser responsável por deformações de opinião dessa envergadura.
Por outro lado, essa mesma ruptura social acaba por comprovar que o binômio direita x esquerda continua presente e relevante no cenário sócio-político, tanto que é capaz de provocar tamanho estrago na paz social. E parece, também, corroborar a frase do filósofo conservador Roger Scruton, de que “pessoas normais não são de esquerda”. Anote: ser “normal” não significa ser saudável ou estar correto; simboliza apenas o que é considerado comum, o que ocorre com mais frequência. Se o mais comum é não ter visões ou alucinações, o “normal” é ser não-esquizofrênico; entretanto, se a maior parte da população fosse acometida regularmente de visões e alucinações, o “normal”, nessa hipótese, seria, pelo contrário, ser esquizofrênico.
No caso da opinião política, a história demonstra que a “normalidade”, aquilo que representa a maior porção do pensamento da população humana em todos os tempos, implica adesão ao status quo, a entrega resignada à servidão voluntária, a aceitação a todas as imposições do rei, mesmo as mais cruéis, as mais desonrosas. Ora, isso é justamente o que o pensamento político de direita defende e que encontra ressonância no slogan positivista “ordem e progresso”. No caso, “ordem” é o respeito às leis produzidas pela elite para manter tudo como está e “progresso”, por sua vez, embute a ideia de riqueza, que, como sabemos, no correr da história, sempre beneficia somente alguns poucos privilegiados e cujo alcance depende fundamentalmente da subserviência do povo à necessidade de empoderamento ilimitado dos membros da elite.
Ser de esquerda é o contrário disso; é a persistente sensação de incômodo com o estabelecido, com a injustiça social; é o inconformismo, a irresignação com a existência de milhões de favelas insalubres em volta do mundo, nas quais bilhões de pessoas famélicas residem em suas malocas inseguras, da janela das quais conseguem ver as mansões dos vizinhos que moram nesses enclaves luxuosos chamados condomínios, um pequeno punhado de pessoas que vivem nababesca e desavergonhadamente como testemunhas oculares da miséria e da degradação humanas, males dos quais, na verdade, são os principais responsáveis. E mal pagam impostos pelo privilégio...
Não, de fato ainda não é normal ser de esquerda, o que é uma pena. Porém, quando forem muitos os que compreenderem o significado real da adesão ao pensamento de esquerda; quando formarem a maior porção da população; esse mundo será bem diferente, mais justo e igualitário. Esse é o motivo de estigmatizarem tanto a esquerda: ela é um perigo, não para a riqueza em si, mas para um modelo de riqueza que é social e ambientalmente prejudicial; para a injustificável loucura do cassino financeiro, responsável direto por ainda existir miséria em massa nesse pequeno globo terrestre que habitamos.
É isso, basicamente, o que pauta as rupturas sociais em questão. Não diferenças oriundas de meras opiniões sobre “politiquinhas” fúteis, mas uma intensa e justificável rejeição a demonstrações de apoio a quem prega a tortura, o assassinato político e social (principalmente pretos pobres das favelas), a homofobia, a misoginia e tantas outras indignidades. Ao lado disso, quem optou pelo bolsonarismo escolheu também colocar em risco a vida e a integridade física dos parentes e amigos que são esquerdistas, ameaçados a todo instante de prisão, tortura e fuzilamento, não somente pelos insanos bolsonaristas comuns, mas pelo principal deles, seu Messias. Afastar-se dessas pessoas, por amadas que fossem, representa, para quem é de esquerda, uma questão de vida ou morte.
Tudo tem limite, tudo tem consequências. As pessoas de esquerda não se afastaram de seus amores por pequenezas. Não foi por “política”, foi pela desumanidade apresentada pelo ser amado. O amor não pode ser invocado como justificativa para a prática ou aceitação da monstruosidade pelas pessoas que amamos.
Não se pode reduzir o afastamento social decorrente da polarização a uma futilidade. Trata-se, possivelmente, de um dos eventos mais importantes na história da sociedade brasileira e que, certamente, será objeto de estudos acadêmicos no futuro; talvez já sejam. Um evento que poderá moldar, espera-se para melhor, o futuro do país. A polarização é bastante amarga para as relações individuais, porém salutar para a sociedade. Evidencia o que antes era vergonha oculta nas almas, por isso mesmo difícil de combater; o mal íntimo que se tornou em impensável orgulho; a luta a ser travada, não fora, mas dentro das pessoas; deixa à mostra o caminho a ser tomado.
Não nos permitamos deixar que tanto sofrimento do coração se torne em vão.
Com os corações apertados que seja, sigamos pela estrada que a dor nos indicou: o humanismo. Oxalá, nos conduza em direção a um futuro mais justo, mais saudável e no qual familiares e amigos possam, juntos, voltar a festejar a vida em comum.
Bravo II!
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