
Ninguém
sabe exatamente o que é a vida. Ninguém sabe exatamente o que é a
morte. Ninguém sabe sequer se vida e morte existem de fato. Tudo
pode não passar de ilusão, de ficção. Essa ideia, aliás, foi
explorada no filme Matrix.
Vamos
supor, todavia, que tudo que nos cerca não seja uma miragem e exista
de fato. Pense bem: todos os átomos que o compõem sempre estiveram
aqui. Você, no que diz respeito à matéria que compõe seu corpo, é
eterno. Quando Carl Sagan dizia que somos feitos de pó de estrelas
era exatamente isso que ele pretendia afirmar, a nossa imortalidade
material. Por algum motivo inexplicável, certo dia átomos que se
encontravam dispersos se juntaram, formaram um corpo e ganharam algo
intangível chamado “consciência”. Antes de um corpo se formar,
essa consciência não existia ou não podia interagir com o mundo.
Depois da morte do corpo, quando os átomos voltam a se separar, a
consciência novamente deixa de existir ou de interagir com o mundo.
Por
toda a eternidade, mesmo quando nada mais existir, quando talvez
restar apenas uma minúscula bola fundamental, como a que já existiu
antes do Big Bang, todas as partículas corporais que você possui
agora, cada uma delas, ainda existirão. Quanto à sua alma, quanto à
sua consciência... quem sabe?
Então,
o que estamos fazendo aqui exatamente nesse momento? Por que nascemos
e morremos se nascer e morrer parece tão insignificante para os
desígnios do universo?
Essa
resposta, obviamente, somente pode ser alcançada através da fé.
Contudo, algumas coisas parecem bastante óbvias. Por exemplo, a
única coisa que aparentemente jamais esteve presente no universo e
que é fruto exclusivo de cada um dos seres humanos já nascidos ou
por nascer é, justamente, essa coisa imaterial chamada mente, alma,
consciência, espírito ou seja lá que nome se queira dar a essa
vontade que temos em relação a nós e ao que nos cerca. Tudo o mais
é comprovadamente eterno e pertence a esse mundão chamado cosmos. A
única exceção, o único componente transitório desse universo,
que aparentemente aqui só permanece com a vida e que depois deixa de
existir ou vai para um outro lugar desconhecido, é essa consciência.
Logicamente,
existe a possibilidade de o universo estar contido na consciência e
não o contrário, mas, presumindo-se que a nossa percepção esteja
correta e que a consciência faça parte do universo e não o inverso, então, me parece que essa é a coisa mais importante que
existe para o ser humano. Em relação a tudo o mais.
Justamente
a coisa mais fugaz, mais fugidia, mais delicada, menos palpável e,
por isso mesmo, mais importante, deve ser preservada, nossas almas,
nossas consciências. Independentemente de qualquer fé, de qualquer
religião, de qualquer rito, de qualquer solenidade.
Como,
porém, preservar nossas consciências?
Quando
uso o verbo preservar não estou, obviamente, utilizando-o em sua
acepção popular de conservar no estado em que se encontra. Se algo
está deteriorado, não adianta mergulhá-lo em formol, isso somente
irá perpetuar o estrago.
Refiro-me
a abrigar nossas consciências do mal, do dano, de efeitos maléficos
que possam incidir sobre nossas almas. E isso nada tem a ver com
espiritualidade de religião, de cartilha, até porque ser religioso,
em princípio, nada tem a ver com professar uma religião.
Esse
discurso, até aqui, baseia-se em algo puramente racional: a
constatação de que há uma clara distinção entre matéria e mente
e que a matéria possui duração comprovadamente infinita (tanto
quanto infinita é a duração dos átomos do universo), enquanto a
mente é formada a partir de algo completamente desconhecido pelo
homem e de duração no tempo igualmente desconhecida. Por ora, para
todos os efeitos científicos, a mente é algo completamente
imaterial, embora esteja abrigada e obtenha sua fonte de energia da
matéria.
Pois
bem, então devemos proteger-nos do mal. O mal aqui não representa o
diabo, o inferno, leviatã, satanás, demiurgo, gênio do mal, ou
seja lá que mítica figura demoníaca utilize-se para
personificá-lo. O mal é uma ideia oposta a de bem, sem qualquer
personalização, antropomorfização, sem qualquer idealização. O
mal existe sempre onde o bem não está. A ausência da ideia do bem
é ocupada pela ideia do mal. Ou seja, não existe o nada absoluto.
Existe o bem e existe sua ausência, o mal.
Alguém
poderia indagar, e no espaço, no cosmos, onde nada existe, nenhum
planeta, nenhum astro, nada, é ali que está o mal? Não, mesmo ali,
há algo e esse algo é o bem.
Sem
querer adentrar na questão da matéria escura que preenche todo o
universo invisível, o que já afastaria essa questão do vazio
espacial, o fato é que, ali, naquele suposto espaço vazio, existem
forças físicas atuando infinitamente, forças gravitacionais,
forças eletromagnéticas e quetais. Ali já existe o que define o
bem: o equilíbrio natural. Portanto, em qualquer lugar do universo,
o mal será o contrário disso, que vem a ser a falta de equilíbrio
natural.
Chamo
consciência àquilo que se convencionou denominar "alma" e
de equilíbrio o que comumente se chama "bem".
O
que é o equilíbrio natural? O equilíbrio natural é constituído
de tudo que é necessário para que a existência se processe sem
perturbações.
Sempre
que os caminhos da natureza se desenvolvam sem interferência da
consciência para além da necessidade do corpo, o bem está
ocorrendo. Por outro lado, sempre que os caminhos da natureza são
desviados, de alguma forma, pela atividade humana consciente que dela
retira além do minimamente necessário para a manutenção da vida
humana, então o mal se processou.
E
por esse caminho sinuoso e não muito claro, tenho que reconhecer,
chega-se ao que entendo como minha verdade: o mal é algo inexistente
na natureza e somente existe a partir da existência da consciência,
humana ou não.
Toda
a criação universal, com exceção da consciência, é o bem e está
sempre em equilíbrio enquanto não afetada pela consciência.
Então
a consciência é um mal? Respondo que não.
A
consciência é a razão da existência do mal porque somente através
dela ele é percebido. Sem a consciência, existem apenas os fatos da
natureza e eles são apenas causa e efeito, sem dimensão moral. O
fato natural que destrói é o mesmo que cria.
A
consciência produzirá ou não o mal de acordo com a maneira pela
qual descreverá o evento. Seria impossível a existência do mal se
não pudesse a consciência descrevê-lo.
A
criação, em si, não pode ser um mal. Uma chama ou uma pedra, por
si, não podem representar o mal.
Então,
se o mal é inexistente na natureza e se o ser humano é parte da
natureza, como pode o mal realmente existir?
Será
que somente existe o bem e o mal é uma criação, uma invenção,
humana? Será o mal apenas um modo especial de descrever o bem da
natureza que não é compreendido em sua inteireza? Será que o mal é
algo somente ideal, que persiste em nossas consciências como um
amigo imaginário, fantasioso, da criança porque talvez precisemos
desse amigo imaginário?
Então,
se a conclusão é que o mal não existe, não há necessidade de nos
protegermos dele. Ou há?
Por
incrível que pareça, não existe nenhum paradoxo na afirmação de
que o mal não existe naturalmente, mas ainda assim é necessário
que acautelemos contra ele.
Ocorre
que o ser humano possui a incrível habilidade de transformar em
realidade o que é apenas mental. Se, por um lado, afirmo que o mal
não existe na natureza, por outro lado também afirmo que, embora
isso, ele existe efetivamente em nossa consciência e que sua
existência meramente ideal é ainda assim prejudicial para os
humanos, tanto no que concerne ao indivíduo, como à sociedade.
Por
isso mesmo, por existir dentro de nossas consciências, o mal é
capaz de produzir resultados concretos no meio exterior. Dessa forma,
o mal, que até então era efetivamente inexistente na natureza, nela
produz efeitos reais, não em relação à natureza, mas somente em
relação ao próprio ser humano.
O
mal caminha, pois, de uma consciência para outra.
Essa
capacidade de algo imaterial produzir efeito material é similar ao
que ocorre com a própria consciência, que, embora não seja real no
sentido de existir materialmente, produz efeitos visíveis, tendo
sido o mais importante deles descrito por René Descartes: o simples
fato de ser possível comprovar a existência do pensamento é capaz
de comprovar que nós existimos enquanto consciências. É importante
perceber que, para Descartes, a verdade mais real e intensa, aquela
mais imediata e cristalina, é a existência do pensamento e não da
extensão, que é a matéria.
Segundo
o filósofo Heráclito, “nós vemos os opostos, o bem e o mal, mas
Deus vê harmonia”. Com esse pensamento, Heráclito claramente
assume que somente nós, seres humanos, é que percebemos, tanto o
bem, quanto o mal. No que se refere ao divino, tudo que existe,
existe em harmonia, em equilíbrio.
Protágoras
afirmava que “o homem é a medida de todas as coisas e cada um tem
o direito de determinar, por si, o que é o bem e o que é o mal”,
querendo com isso dizer, segundo penso, que é o próprio homem a
medida do que é o bem e do que é o mal. Cada pessoa, assim, terá
uma definição de mal ou de bem particular, própria.
Em
resumo, o bem e o mal existem enquanto existe o ser humano.
Logicamente, essa afirmação pressupõe que somente os humanos, no
universo, possuem consciência.
A
necessidade de equilíbrio do homem com a natureza vem afirmada na
máxima dos estóicos, segundo a qual o mais alto bem do homem está
em agir em harmonia com o mundo.
Para
Santo Agostinho, o mal é ausência do bem, da mesma maneira que as
trevas são a ausência da luz, enquanto Abelardo entendia que
justiça e injustiça de um ato não estão no ato em si, porém na
intenção de quem o pratica. Em outras palavras, Abelardo desloca o
mal para uma posição ideal, não real, de modo que o mal está na
consciência de quem o pratica e não na atividade realizada, humana
ou não.
Hobbes
afirma que aquilo que agrada ao homem é bom e o que lhe causa dor ou
desconforto é ruim. A afirmação utilitarista de Hobbes, filósofo
classificado como materialista, atribui ao bem e ao mal uma natureza
maleável, de modo que a mesma coisa pode ser entendida como bem ou
como mal dependendo de como essa coisa foi percebida pelo homem, como
um agrado ou como uma dor. Portanto, o mal pode ser produzido
exatamente da mesma forma que o bem e assim será classificado pelo
ser humano se a mesma atividade anteriormente prazerosa se apresentar
dolorosa.
Muitas
vezes, para os olhos de quem faz, o bem é o que foi feito; enquanto
para os olhos de quem recebe a coisa feita, o bem é tudo o que ainda
falta ser feito.
A
filosofia taoísta, de onde provêm o yin e yang, feng-shui,
acupuntura, I Ching, é uma antiga cultura de origem chinesa baseada
na manutenção ou no restabelecimento do equilíbrio, do corpo, do
espírito, de tudo; equilíbrio essencial para que a existência siga
o fluxo natural de todas as coisas. Nós, humanos, não somos seres
especiais, somos apenas seres, partes do todo, que, como tal, deve
respeito à natureza de todas as coisas. Temos consciência e essa
consciência deve ser utilizada de uma forma que não ofenda a nossa
própria natureza e a natureza das coisas. A máxima taoísta é de
que devemos nos sujeitar às coisas sem procurar descobrir suas
causas. O taoísmo filosófico, não religioso, busca levar o homem a
uma harmonia com a natureza através do livre exercício de seus
instintos e suas imaginações. É, grosso modo, uma filosofia
ecologicamente correta. A filosofia do taoísmo ilustra bem aquilo
que afirmo: que, no geral, as respostas mais adequadas não estão
nos extremos, mas no centro, em equilíbrio.
A
filosofia grega igualmente pregava que o sentido de justiça e de
verdade estava, não nos extremos, mas entre eles, em equilíbrio.
No
que diz respeito à dicotomia bem-mal, concluo que, se filosofias tão
diferentes, como a grega e a oriental, alcançaram idêntica
conclusão no sentido de que a verdade e a justiça se revelam no
equilíbrio, o equilíbrio é fundamental para o ser humano. A falta
de equilíbrio pode ser mesma a razão de sua destruição, seja como
indivíduo, seja como sociedade.
E
concluo mais: que não existem o bem e o mal como verdades absolutas;
o bem será aquilo que o ser humano deve fazer para evitar o
desequilíbrio pessoal ou coletivo.
Se
houver necessidade de conceituar bem ou mal, então o bem será o
equilíbrio e o mal o desequilíbrio.
A
manutenção da consciência livre do mal implica, pois, que a
mantenhamos em equilíbrio. Equilíbrio com a natureza, equilíbrio
com a coletividade.
Para
entendermos o que é o desequilíbrio e como podemos alcançar o
equilíbrio, há que percorrer a seara dos desejos possíveis e dos
que racionalmente se deve evitar. Há que aprender o conceito de
têmpera e a diferenciar covardia de resignação.
Por
vezes, as pessoas se agarram fortemente a conceitos morais apenas
para esconder suas fraquezas, seus medos. Isso, certamente, é um
desequilíbrio.
Quando
assevero que o mal é inexistente na natureza e que, por causa disso,
o ser humano é absolutamente incapaz de realizá-lo, não estou
afirmando a impossibilidade de sentir o mal ou que o mal não exerça
influência. Como disse, somente nossas consciências (espíritos)
não são forjadas pela matéria estelar, ou seja, não existem
materialmente falando. Assim é também com o mal. Ele existe apenas
em nossas mentes; é fruto da atividade mental.
O
mal, portanto, somente é causado pelo homem e somente nele produz
efeitos, sendo a consciência o seu berço e o seu túmulo ao mesmo
tempo.
O
bem e o mal estão em nossas mentes e dela são partes integrantes.
Como
evitar o mal e manter o equilíbrio? Creio firmemente que o
desequilíbrio indutor do mal é provocado pela inclinação que a
pessoa tem a abrir mão completamente de sua vontade em benefício
alheio ou em pensar exclusivamente em si sem considerar seu
semelhante. Tanto o altruísmo extremo, como o egoísmo desmedido,
são inclinações desequilibradoras.
Somos
seres individuais e sociais. Temos necessidades individuais e sociais
e temos a obrigação de satisfazer ambas. Visando somente os desejos
da individualidade, ocorrerá egoísmo e isso irá ferir o outro;
portanto representa o mal.
Almejando
exclusivamente o desejo alheio, haverá abnegação extremada,
anulação pessoal, e isso irá ferir-nos; igualmente representando o
mal.
O
equilíbrio que invoca o bem é representado, então, pela
possibilidade de satisfação de nossos desejos individuais e sociais
de forma harmônica, sem perder de vista que é impossível uma certa
dose de frustração, seja individual, seja social.
Nunca
poderá o indivíduo realizar tudo que deseja a sociedade, tampouco
alcançará a sociedade anular completamente os desejos individuais,
sob pena de tornarmo-nos quais formigas, onde somente o que interessa
é a coletividade.
O
indivíduo deve ser humilde para aceitar as limitações individuais
em prol da sociedade, porém forte para impor sua vontade em face de
impedimento decorrente de conceitos morais impostos pela sociedade,
mas que não se sustentam na realidade natural.
Conceitos
morais insustentáveis foram aos poucos, no decorrer da História,
sendo derrubados justamente por contrariarem o equilíbrio natural
das coisas. Preconceitos em função de orientação sexual, etnia,
adultério, divórcio, são coisas que estão sendo superadas (ainda
não o foram completamente), mas já constituíram fortíssimos
obstáculos sociais à felicidade individual, ou seja, já
representaram o mal. Existem assuntos ainda controvertidos, como
aborto, mudança de sexo, manipulação genética e outros.
Compete
ao indivíduo fazer todo o possível pela sociedade e esta deve
aceitar toda vontade individual que não seja, por si, um perigo
imediato para sua existência. O equilíbrio que conduz ao bem
encontra-se a meio caminho entre as vontades do indivíduo e da
sociedade.
Esse
ponto no meio do caminho chama-se liberdade individual responsável.
A
ninguém, em princípio, deveria ser dado o direito de dizer o que
alguém deve ou não fazer, mas todos possuem o dever de zelar pela
manutenção da liga gregária que une os indivíduos uns aos outros.
A
pessoa religiosa possui o direito de ser contra o aborto, não
realizá-lo e incentivar outros a não fazê-lo, mas não o de impor
sua crença ao outro. O Estado não deveria proibir o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, pois isso de forma nenhuma pode ofender a
sociedade. Uma pessoa heterossexual não deveria sentir-se ofendida
pelo casamento de dois homens ou de duas mulheres que sequer conhece.
Isso não é racional, nem lógico.
O
mal constitui-se dessa matéria, capaz de provocar sofrimentos
inúteis no ser humano. De obrigar o ser humano a se resignar, a
recolher seus desejos para o fundo da alma, com todas as neuroses daí
decorrentes, sem qualquer necessidade coletiva palpável. Isso, esse
desequilíbrio maligno, não existe na natureza, foi criado pelo ser
humano para ofensa de outros seres humanos.
Um
dos caminhos para libertar a consciência dos efeitos do mal é a
tolerância com o próximo e com suas vontades, o equilíbrio com a
natureza e com os demais seres, inclusive os humanos.
Escrito
no período de 10 a 26 de outubro de 2006.
Revisado
em 17 de novembro de 2010.
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