
É
curiosa essa inclinação que certas pessoas possuem a imaginar que
basta uma modificação no nome das coisas para que elas melhorem.
Certa
época de minha vida, durante quatro anos, fui policial civil e era
batata: toda vez que um novo Secretário de Segurança Pública
assumia, os departamentos mudavam de nome ou de sigla. Comecei
trabalhando na Seção de Atividades Cartorárias, cuja sigla era
SAC. Tempos depois, com a mudança do Secretário, a sala em que
trabalhava continuava a mesma zona mas a seção virou Setor de
Cartório, SeC, assim mesmo, com a vogal “e” em minúscula, cujo
profundo significado escapou-me completamente. É que não fiz MBA em
Administração Pública. Por fim, se não me falha a memória,
transmutou-se o setor em Setor de Cartório Legal que Funciona de
Verdade, SCLFV, ou algo assim. Brincadeirinha.
Talvez
esteja exagerando, mas as mudanças eram pra valer pois sempre que
alteravam o nome da sala eles mudavam a placa da porta. Acho que se
não mudar a placa não dá certo. Deve ser alguma simpatia, sei lá.
Só
sei que em cerca de quatro anos trabalhei em vários setores com
nomes distintos embora sem sair do lugar. Nenhum deles jamais
funcionou direito. Talvez tenha faltado um ou outro detalhe que
“eles” não consideram tão importantes, como máquina de
datilografia (é gente, sou dessa época), papel e gente.
Atualmente
trabalho na Justiça do Trabalho, onde as modificações nos nomes
não são tão frequentes mas possuem o seu encanto.
Aliás,
essa coisa de não gostarmos de certas palavras vem de longe.
Chamamos palavras de baixo calão, ou de palavrão, às palavras que
consideramos ofensivas e não dignas de nossa classe ou estirpe.
Trata-se de um misto de tradição elitista com arrogância e
soberba.
A
função da palavra, de qualquer palavra, é transmitir nosso
pensamento a outra pessoa. Por meio dela, pretendemos que o outro
adquira a mesma abstração que passa pela nossa cabeça. A palavra
é, assim, nossa real telepatia.
Quando
digo “árvore”, quero que o outro imagine uma árvore em sua
cabeça.
Por
essa ótica, a grosseria ou a injúria não reside na palavra por si
mesma, mas no intuito com o qual a utilizamos, intuito esse que no
geral demonstramos através da entonação.
Portanto,
se um médico, por exemplo, te diz, de forma natural, “você está
com uma pequena infecção na vagina”, isso em nada diferiria se
ele utilizasse a palavra buceta, que, em termos abstratos, é a mesma
coisa.
Além
disso, palavras se modificam com o tempo e o que foi considerado
palavrão um dia, no outro poderá não ser mais. Da mesma forma, a
palavra que hoje é tida por formal, pode vir a ser convertida em
palavra de baixo calão.
Chato,
por exemplo, não é mais considerado palavrão, embora seja o nome
daquele parasita da virilha que suga sangue, o piolho da púbis, e já
tenha sido reputado gravemente ofensivo.
Caralho,
por outro lado, que antes designava apenas o mastro principal de uma
galera (um barco antigo), hoje é tido por palavrão horrendo. Aliás, a galera saiu do
mar e deixou de ser embarcação, vindo à terra numa onda para
simbolizar turma ou bando de gente.
Acho
que foi essa mesma onda de antipatia por determinadas palavras que
inspirou aqueles piolhos de púbis que são os politicamente
corretos, que mudam o nome da coisa e... pronto, imaginam que o
problema está resolvido. Favela passa a ser comunidade e a galera já
tem água, esgoto, luz, segurança, escola e posto de saúde. Beleza,
hein?
Desde
que o negão virou afrodescendente suas chances na sociedade
multiplicaram-se, com certeza. Ou não?
E
as mulheres feias se sentirão melhor por serem chamadas de
“cosmeticamente diferenciadas”? Sei não, periga elas correrem
mais rápido para a cirurgia-plástica.
Sou
baixinho e dou uma “agressão física a soco” (porrada) em quem
me chamar de “verticalmente prejudicado”. Verticalmente
prejudicado é o mastro principal da galera (tradução: baixinho é
o caralho).
Os
cegos não passaram a enxergar melhor depois que passaram a ser
“visualmente desafortunados”, assim como as carecas continuaram
lustrosas quando viraram “capilarmente desvantajadas”.
Lembro-me
que, antes, os portadores de síndrome de down eram apelidados de
mongóis. Isso decorria de seus olhos amendoados, como os das pessoas
originárias da Mongólia. De que modo isso pode ser considerado
ofensivo? E não é ofensivo para os habitantes da Mongólia que
alguém considere ofensivo ser chamado de mongol?
Hoje
em dia os pais de pessoas com alguma deficiência física ou mental
chamam seus filhos de “especiais”. Ora, minhas filhas são,
hum... normais e para mim também são especiais. Qualquer filho é
especial para o pai, independentemente de portar ou não deficiência.
O que ocorre, na prática, é uma falha na comunicação. Você
entende que o filho da pessoa é portador de alguma deficiência, mas
não sabe de qual e fica com medo de perguntar e ferir alguma
suscetibilidade. Por conta disso, se você tinha alguma contribuição
específica a dar, não a dará.
Já
imaginaram uma discussão de trânsito entre dois politicamente
corretos que não usam palavrões, um branco judeu gordo e um negro
velho gay? Seria algo assim (ambos com raiva):
--
Ô, seu afrodescendentão filho da prostituta, que fezes são essas?
O senhor não percebeu que a preferência era minha? Prostituta que
lhe pariu, só podia ser afrodescendente mesmo.
--
Qual é, seu branco portador de sobrepeso capaz de tampar o poço
(tradução: rolha de poço)? Filho da prostituta é você. Não mexe
com a minha mãe, hein?
--
E pelo seu modo de ser vejo que, além de afrodescendentão, ainda é
homoafetivinho. Era só o que me faltava. Vai pagar o prejuízo,
ouviu, ou não me chamo Levy!
--
Ah, eu sabia, pra logo falar em dinheiro só podia ser um indivíduo
econômico descendente da tribo de Israel (tradução: judeu pão
duro). Vai morrer seco no deserto, ô, hebreu de sobrepeso!
--
Olha aqui, não pense que somente por você ser cronologicamente
abastado (tradução: matusalém) eu irei te perdoar, seu esperma
doidivanas (tradução: porra louca).
A
pergunta é: ficou menos ofensivo de parte a parte? Creio que não.
A
ofensa não reside na palavra dita, mas na forma como foi
verbalizada. A mais acarinhada das palavras, eu posso dizer “mãe”
em tom ofensivo ao, por exemplo, afirmar, de um político corrupto,
que eu sei a espécie de “mãe” que ele é para os seus
apadrinhados. E posso xingar a mãe de um amigo de forma carinhosa,
ao saudá-lo, depois de longo tempo, com um afetuoso “puta que o
pariu, que saudade de você, cara”.
Bom,
espero que essa onda politicamente correta não vá muito longe e que
passemos a tentar modificar as coisas e não seus nomes. Nomes são
meras palavras, não significam nada.
Como
dizia Cássia Eller, “palavras apenas, palavras pequenas,
palavras”.
Nenhum comentário :
Postar um comentário