Claus
Roxin é um dos mais influentes estudiosos do direito penal alemão,
sendo o introdutor do princípio da bagatela na doutrina
jurídico-criminal em seu país. Segundo essa doutrina, de forma bem
resumida, não cabe a condenação de ninguém por lesão sem
gravidade alguma. Ao lado disso, ele é, também, o principal teórico
do domínio do fato, teoria largamente utilizada pelo STF no
julgamento do chamado "mensalão" do PT.
Durante
o julgamento, diversos juristas pátrios manifestaram incômodo com a
perspectiva que nossa Suprema Corte adotou para a aplicação da
teoria do domínio do fato. Segundo o STF, a mera posição
hierárquica de José Dirceu conduziria necessariamente à presunção
de que ele tinha o conhecimento e o comando dos supostos ilícitos
praticados no esquema do "mensalão".
Ora,
trata-se de entendimento que contraria absolutamente as mais
comezinhas lições sobre culpabilidade e o dever do estado de
produzir prova do fato típico praticado pelo agente. Mesmo o cidadão
comum, não iniciado nos mistérios do Direito, possui o conhecimento
intuitivo de que paira sobre todas as pessoas a presunção geral de
inocência até que se produza prova em contrário, sendo ônus do
acusador produzir tal prova. O acusador é o Estado, sendo dele o
poder-dever de utilizar toda a sua imensa estrutura jurídico-policial
para descobrir elementos que permitam determinar o nexo de
causalidade entre o ato criminoso e a ação/omissão de alguém,
como forma de, estabelecida a culpa, permitir a condenação desse
alguém. O que não cabe, inclusive pela enorme disparidade de
forças, é utilizar toda essa estrutura para esmagar o direito de
defesa de quem é acusado.
Não
bastassem as opiniões de juristas pátrios, o próprio Claus Roxin,
como dito o principal teórico do domínio do fato, em entrevista
concedida à Folha de São Paulo, transcrita ao final desse texto,
posiciona-se de forma contrária ao entendimento casuístico do
Supremo, produzindo crítica ao modo como a teoria foi aplicada no
julgamento do "mensalão", expressamente afirmando-se
contra a adoção da presunção de culpa do acusado.
Os
institutos de direito em matéria de liberdade, igualdade e justiça,
foram conquistados com guerra, morte e sangue de milhões de seres
humanos. Essa conquista, parida com violência e sofrimento, não
decorreu do acaso ou de uma busca por deleite, mas em função da
visão de que a condição do homem como lobo do homem ou homem
sujeito à mercê do Estado encontra limites intransponíveis que
foram sendo delineados ao longo da difícil história de
desenvolvimento da civilização. Um desses limites é a liberdade,
que somente poderá ser cerceada quando indubitável a culpa.
Institutos
e princípios criados para a proteção dos indivíduos e, em última
análise, da própria sociedade, não podem ser distorcidos, através
de exercícios intelectivos fraudulentos, para produção do efeito
contrário àquilo que se propõem. Ainda que algum culpado
eventualmente se beneficie de institutos como a presunção geral de
inocência e permaneça impune dos malfeitos de que é culpado, isso
em nada reduz a importância desses institutos históricos do
direito, cujos objetivos possuem bitola bem mais larga do que a mera
proteção individual, qual seja, impedir a utilização da força do
Estado para perseguição de desafetos ou para alcançar intuitos
totalitaristas.
Em
nome desses princípios históricos de proteção do indivíduo
contra os excessos do estado, não cabe, por exemplo, em virtude de
um sentimento difuso de pânico contra o terrorismo, criar uma lei
restritiva de liberdades e garantias individuais. Isso porque, por
mais que seja apropriado o combate ao terrorismo, essa mesma lei, no
futuro, na hipótese de ascensão de um governo inescrupuloso,
certamente será usada contra o indivíduo não terrorista, como meio
de opressão de inimigos.
Em
função desses mesmos princípios, não se pode compactuar com a
decisão do maior tribunal do país, que deveria zelar pelos
princípios constitucionais, de resvalar para o casuísmo e sonegação
de direitos individuais elementares, ainda que, supostamente, movido
por bons propósitos. O povo, sábio, costuma dizer que de bons
propósitos o inferno está cheio. Mecanismos de direito não podem
ser espoliados de seus propósitos benéficos para alcançar
objetivos maléficos com mera aparência legal. No caso, não tendo
sido alcançada a alternância de poder pelo instrumento legalmente
previsto, que é o voto popular, aparentemente se tenta eliminar o
PT, ou pelo menos extirpá-lo do poder, através de manipulação do
aparato judicial. Como diz o velho adágio, para os amigos, tudo,
para os inimigos, a lei. O problema da sociedade compactuar com isso
é que, hoje, o alvo é o PT, amanhã poderá ser qualquer um do
povo, com maior fragilidade do que um grande partido.
Adotar
a posição simplista de que houve, de fato, um conjunto de crimes
albergado sob a denominação de "mensalão" é a ponta
mais frágil da história. O que se esconde por trás dessa
"informação" é o que mais interessa, pois não há um só
prefeito, governador, ministro e jamais existiu ou existirá
presidente da República, cujos atos, se investigados a fogo e ferro,
escaparão das garras da justiça caso utilizados os mesmos
parâmetros adotados nessa investigação do "mensalão" do
PT, principalmente a famigerada teoria do domínio do fato na forma
como foi utilizada pelo Supremo. No futuro, a admitir-se o presente
linchamento jurídico do PT, todos os governos ficarão fragilizados
sob a ameaça de chantagens jurídico-policiais.
Especificamente
no caso do "mensalão", tudo leva a crer que o resultado
foi antecipado, buscando-se durante o processo investigativo e penal
apenas suporte teórico para dar amparo à conclusão desejada desde
antes de ser aposto o primeiro carimbo oficial no primeiro inquérito.
As
evidências de um golpe de estado velado estão reveladas. São
visíveis para quem possuir o desejo de enxergar.
Para
quem se interessar, transcreve-se a seguir a entrevista,
inacreditavelmente publicada na Folha de São Paulo, ainda que com
parcas perguntas.
Da
Folha
Participação
no comando de esquema tem de ser provada
Um
dos responsáveis por teoria citada no julgamento do STF, jurista
alemão diz que juiz não deve ceder a clamor popular
Daniel
Marenco/Folhapress
Claus
Roxin, que esteve há duas semanas em seminário de direito penal do
Rio
Insatisfeito
com a jurisprudência alemã -que até meados dos anos 1960 via como
participante, e não como autor de um crime, aquele que ocupando
posição de comando dava a ordem para a execução de um delito-, o
jurista alemão Claus Roxin, 81, decidiu estudar o tema.
Aprimorou
a teoria do domínio do fato, segundo a qual autor não é só quem
executa o crime, mas quem tem o poder de decidir sua realização e
faz o planejamento estratégico para que ele aconteça.
Roxin
diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja
indícios de que ela possa ter ocorrido.
Nas
últimas semanas, sua teoria foi citada por ministros do STF (Supremo
Tribunal Federal) no julgamento do mensalão. Foi um dos fundamentos
usados por Joaquim Barbosa na condenação do ex-ministro José
Dirceu.
"Quem
ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E
isso deve ser provado", diz Roxin. Ele esteve no Rio há duas
semanas participando de seminário sobre direito penal.
Folha
- O que o levou ao estudo da teoria do domínio do fato?
Claus
Roxin - O que me perturbava eram os crimes do nacional socialismo.
Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato
organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito,
tem de responder como autor e não só como partícipe, como queria a
doutrina da época.
Na
época, a jurisprudência alemã ignorou minha teoria. Mas
conseguimos alguns êxitos. Na Argentina, o processo contra a junta
militar de Videla [Jorge Rafael Videla, presidente da Junta Militar
que governou o país de 1976 a 1981] aplicou a teoria, considerando
culpados os comandantes da junta pelo desaparecimento de pessoas.
Está no estatuto do Tribunal Penal Internacional e no equivalente ao
STJ alemão, que a adotou para julgar crimes na Alemanha Oriental. A
Corte Suprema do Peru também usou a teoria para julgar Fujimori
[presidente entre 1990 e 2000].
É
possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado
supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição
hierárquica?
Não,
em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma
organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma
ordem. Isso seria um mau uso.
O
dever de conhecer os atos de um subordinado não implica em
co-responsabilidade?
A
posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o
domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção
["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a
considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante
ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios
realizados.
A
opinião pública pede punições severas no mensalão. A pressão da
opinião pública pode influenciar o juiz?
Na
Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui
também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas
suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito. O
juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública.
ResponderExcluirCaríssimo, sou um mero acadêmico e já havia "batido nessa tecla" desde o início do julgamento do "mensalão". Agora o mais ilustre doutrinador sobre essa teoria reafirma o que eu, mero acadêmico de direito, já sabia. Agora, dá para imaginar que os eminentes e doutos ministros do STF não sabiam? E pode notar, a grande imprensa omite a declaração do mais iminente doutrinador e estudioso da "teoria do domínio do fato". Até na folha onde saiu a matéria, não aparece na página principal e não tem nenhum comentário. Esse julgamento todo é e está sendo uma armação. Porque a Globo, depois de uma declração de um estudioso tão eminente não faz uma entrevista com ele? PS - como sabemos existe também a aplicação da teoria do domínio do fato no caso de pessoas jurídicas (que tem a ver com a "vontade institucional), mas embora esse "gancho" jurídico nada tenha a ver com o julgamento do "mensalão", pois no caso não estava a se julgar pessoas jurídicas, mas pessoas físicas, a GAFE cometida pelo ministro Marco Aurélio foi GRITANTE, quando ele para defender a aplicação da teoria do domínio do fato (se contrapondo a explanação brilhante do Lewandosviski - que foi contra a sua aplicação distorcida ao caso), disse que, no Brasil, ela já havia sido utilizada para pessoas jurídicas e governos (tremendo ato falho que demonstrou que ele estava querendo atingir o PT e o governo, pois não havia nenhuma pessoa jurídica no banco dos réus...). Pano rápido...
Pois é, Anônimo, para quem tem olhos, as coisas estão aí para ver...
ResponderExcluir