domingo, 11 de novembro de 2012

Teórico alemão repreende STF

Claus Roxin é um dos mais influentes estudiosos do direito penal alemão, sendo o introdutor do princípio da bagatela na doutrina jurídico-criminal em seu país. Segundo essa doutrina, de forma bem resumida, não cabe a condenação de ninguém por lesão sem gravidade alguma. Ao lado disso, ele é, também, o principal teórico do domínio do fato, teoria largamente utilizada pelo STF no julgamento do chamado "mensalão" do PT.
Durante o julgamento, diversos juristas pátrios manifestaram incômodo com a perspectiva que nossa Suprema Corte adotou para a aplicação da teoria do domínio do fato. Segundo o STF, a mera posição hierárquica de José Dirceu conduziria necessariamente à presunção de que ele tinha o conhecimento e o comando dos supostos ilícitos praticados no esquema do "mensalão".

Ora, trata-se de entendimento que contraria absolutamente as mais comezinhas lições sobre culpabilidade e o dever do estado de produzir prova do fato típico praticado pelo agente. Mesmo o cidadão comum, não iniciado nos mistérios do Direito, possui o conhecimento intuitivo de que paira sobre todas as pessoas a presunção geral de inocência até que se produza prova em contrário, sendo ônus do acusador produzir tal prova. O acusador é o Estado, sendo dele o poder-dever de utilizar toda a sua imensa estrutura jurídico-policial para descobrir elementos que permitam determinar o nexo de causalidade entre o ato criminoso e a ação/omissão de alguém, como forma de, estabelecida a culpa, permitir a condenação desse alguém. O que não cabe, inclusive pela enorme disparidade de forças, é utilizar toda essa estrutura para esmagar o direito de defesa de quem é acusado.
Não bastassem as opiniões de juristas pátrios, o próprio Claus Roxin, como dito o principal teórico do domínio do fato, em entrevista concedida à Folha de São Paulo, transcrita ao final desse texto, posiciona-se de forma contrária ao entendimento casuístico do Supremo, produzindo crítica ao modo como a teoria foi aplicada no julgamento do "mensalão", expressamente afirmando-se contra a adoção da presunção de culpa do acusado.
Os institutos de direito em matéria de liberdade, igualdade e justiça, foram conquistados com guerra, morte e sangue de milhões de seres humanos. Essa conquista, parida com violência e sofrimento, não decorreu do acaso ou de uma busca por deleite, mas em função da visão de que a condição do homem como lobo do homem ou homem sujeito à mercê do Estado encontra limites intransponíveis que foram sendo delineados ao longo da difícil história de desenvolvimento da civilização. Um desses limites é a liberdade, que somente poderá ser cerceada quando indubitável a culpa.
Institutos e princípios criados para a proteção dos indivíduos e, em última análise, da própria sociedade, não podem ser distorcidos, através de exercícios intelectivos fraudulentos, para produção do efeito contrário àquilo que se propõem. Ainda que algum culpado eventualmente se beneficie de institutos como a presunção geral de inocência e permaneça impune dos malfeitos de que é culpado, isso em nada reduz a importância desses institutos históricos do direito, cujos objetivos possuem bitola bem mais larga do que a mera proteção individual, qual seja, impedir a utilização da força do Estado para perseguição de desafetos ou para alcançar intuitos totalitaristas.
Em nome desses princípios históricos de proteção do indivíduo contra os excessos do estado, não cabe, por exemplo, em virtude de um sentimento difuso de pânico contra o terrorismo, criar uma lei restritiva de liberdades e garantias individuais. Isso porque, por mais que seja apropriado o combate ao terrorismo, essa mesma lei, no futuro, na hipótese de ascensão de um governo inescrupuloso, certamente será usada contra o indivíduo não terrorista, como meio de opressão de inimigos.
Em função desses mesmos princípios, não se pode compactuar com a decisão do maior tribunal do país, que deveria zelar pelos princípios constitucionais, de resvalar para o casuísmo e sonegação de direitos individuais elementares, ainda que, supostamente, movido por bons propósitos. O povo, sábio, costuma dizer que de bons propósitos o inferno está cheio. Mecanismos de direito não podem ser espoliados de seus propósitos benéficos para alcançar objetivos maléficos com mera aparência legal. No caso, não tendo sido alcançada a alternância de poder pelo instrumento legalmente previsto, que é o voto popular, aparentemente se tenta eliminar o PT, ou pelo menos extirpá-lo do poder, através de manipulação do aparato judicial. Como diz o velho adágio, para os amigos, tudo, para os inimigos, a lei. O problema da sociedade compactuar com isso é que, hoje, o alvo é o PT, amanhã poderá ser qualquer um do povo, com maior fragilidade do que um grande partido.
Adotar a posição simplista de que houve, de fato, um conjunto de crimes albergado sob a denominação de "mensalão" é a ponta mais frágil da história. O que se esconde por trás dessa "informação" é o que mais interessa, pois não há um só prefeito, governador, ministro e jamais existiu ou existirá presidente da República, cujos atos, se investigados a fogo e ferro, escaparão das garras da justiça caso utilizados os mesmos parâmetros adotados nessa investigação do "mensalão" do PT, principalmente a famigerada teoria do domínio do fato na forma como foi utilizada pelo Supremo. No futuro, a admitir-se o presente linchamento jurídico do PT, todos os governos ficarão fragilizados sob a ameaça de chantagens jurídico-policiais.
Especificamente no caso do "mensalão", tudo leva a crer que o resultado foi antecipado, buscando-se durante o processo investigativo e penal apenas suporte teórico para dar amparo à conclusão desejada desde antes de ser aposto o primeiro carimbo oficial no primeiro inquérito.
As evidências de um golpe de estado velado estão reveladas. São visíveis para quem possuir o desejo de enxergar.

Para quem se interessar, transcreve-se a seguir a entrevista, inacreditavelmente publicada na Folha de São Paulo, ainda que com parcas perguntas.
Da Folha
Participação no comando de esquema tem de ser provada
Um dos responsáveis por teoria citada no julgamento do STF, jurista alemão diz que juiz não deve ceder a clamor popular
Daniel Marenco/Folhapress


Claus Roxin, que esteve há duas semanas em seminário de direito penal do Rio
Insatisfeito com a jurisprudência alemã -que até meados dos anos 1960 via como participante, e não como autor de um crime, aquele que ocupando posição de comando dava a ordem para a execução de um delito-, o jurista alemão Claus Roxin, 81, decidiu estudar o tema.
Aprimorou a teoria do domínio do fato, segundo a qual autor não é só quem executa o crime, mas quem tem o poder de decidir sua realização e faz o planejamento estratégico para que ele aconteça.
Roxin diz que essa decisão precisa ser provada, não basta que haja indícios de que ela possa ter ocorrido.
Nas últimas semanas, sua teoria foi citada por ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) no julgamento do mensalão. Foi um dos fundamentos usados por Joaquim Barbosa na condenação do ex-ministro José Dirceu.
"Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado", diz Roxin. Ele esteve no Rio há duas semanas participando de seminário sobre direito penal.
Folha - O que o levou ao estudo da teoria do domínio do fato?
Claus Roxin - O que me perturbava eram os crimes do nacional socialismo. Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito, tem de responder como autor e não só como partícipe, como queria a doutrina da época.
Na época, a jurisprudência alemã ignorou minha teoria. Mas conseguimos alguns êxitos. Na Argentina, o processo contra a junta militar de Videla [Jorge Rafael Videla, presidente da Junta Militar que governou o país de 1976 a 1981] aplicou a teoria, considerando culpados os comandantes da junta pelo desaparecimento de pessoas. Está no estatuto do Tribunal Penal Internacional e no equivalente ao STJ alemão, que a adotou para julgar crimes na Alemanha Oriental. A Corte Suprema do Peru também usou a teoria para julgar Fujimori [presidente entre 1990 e 2000].
É possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica?
Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso.
O dever de conhecer os atos de um subordinado não implica em co-responsabilidade?
A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados.
A opinião pública pede punições severas no mensalão. A pressão da opinião pública pode influenciar o juiz?
Na Alemanha temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública.

2 comentários :


  1. Caríssimo, sou um mero acadêmico e já havia "batido nessa tecla" desde o início do julgamento do "mensalão". Agora o mais ilustre doutrinador sobre essa teoria reafirma o que eu, mero acadêmico de direito, já sabia. Agora, dá para imaginar que os eminentes e doutos ministros do STF não sabiam? E pode notar, a grande imprensa omite a declaração do mais iminente doutrinador e estudioso da "teoria do domínio do fato". Até na folha onde saiu a matéria, não aparece na página principal e não tem nenhum comentário. Esse julgamento todo é e está sendo uma armação. Porque a Globo, depois de uma declração de um estudioso tão eminente não faz uma entrevista com ele? PS - como sabemos existe também a aplicação da teoria do domínio do fato no caso de pessoas jurídicas (que tem a ver com a "vontade institucional), mas embora esse "gancho" jurídico nada tenha a ver com o julgamento do "mensalão", pois no caso não estava a se julgar pessoas jurídicas, mas pessoas físicas, a GAFE cometida pelo ministro Marco Aurélio foi GRITANTE, quando ele para defender a aplicação da teoria do domínio do fato (se contrapondo a explanação brilhante do Lewandosviski - que foi contra a sua aplicação distorcida ao caso), disse que, no Brasil, ela já havia sido utilizada para pessoas jurídicas e governos (tremendo ato falho que demonstrou que ele estava querendo atingir o PT e o governo, pois não havia nenhuma pessoa jurídica no banco dos réus...). Pano rápido...

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  2. Pois é, Anônimo, para quem tem olhos, as coisas estão aí para ver...

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