Existem
pessoas que defendem, com argumentos inteligentes e racionais, ser o
capitalismo o melhor ambiente possível para o desenvolvimento da
sociedade e do conhecimento tecno-científico do ser humano. Segundo
elas, a competitividade impõe ao capitalista oferecer inovações
tecnológicas aos consumidores, sob pena de, em última análise,
falirem. Citam, como exemplo dessas rápidas inovações, os
computadores, telefones celulares, televisores, automóveis, produtos
que mal saem das prateleiras e já estão obsoletos.
São
pessoas e opiniões que devem ser respeitadas, o que não impede afirmar que o raciocínio, porém,
é equivocado. Aparentemente, confundem mudanças de design e
novidades superficiais e supérfluas com verdadeiras inovações
científicas e tecnológicas. Além disso, colocam num mesmo balaio o
que é oferecido com tudo aquilo que poderia sê-lo. Os balaios são
diferentes.
Na
verdade, assim como ocorre na gestão de todos os seus interesses, o
sistema capitalista move-se exclusivamente pela lógica do lucro,
pouco se importando com a qualidade da invenção ou com a
necessidade que as pessoas dela possam ter. Uma inovação somente é
disponibilizada para os consumidores se estiverem em absoluta
sintonia com a lucratividade. Qualquer outra novidade, por mais
benefícios potenciais que encerre, mas que escape dessa lógica, é
simplesmente ignorada ou, pior, escondida das pessoas.
As
inovações mais importantes, aquelas que seriam capazes de mudar a
vida das pessoas, talvez reduzir drasticamente a pobreza e a
poluição, apenas para ficar em dois exemplos, estas dificilmente
são ou serão disponibilizadas pela singela vontade do empreendedor
capitalista.
Existem
relatos de que um veículo movido à água teria sido inventado na
década de 1970 e que sua patente teria sido comprada com o único
propósito de ser arquivada indefinidamente. Ainda que tal invenção
não tenha existido, é pura ingenuidade crer que as companhias
petrolíferas deixariam algo assim ser produzido.
Não
se pode imaginar que os carros elétricos ainda sejam raros porque
sua produção seja muito complexa, sabendo que eles precederam os
carros à gasolina, que acabaram prevalecendo porque o petróleo era,
como ainda é, mais barato.
Essa
é a lógica subjacente ao movimento do capital: o interesse da
sociedade e do ser humano não é relevante para as decisões dos
acionistas, apenas o lucro. Sob essa métrica autista, invenções
benéficas serão retardadas ou jamais postas em prática se assim
for necessário à manutenção do lucro. Pelo contrário, mecanismos
poluidores e energeticamente perdulários continuarão a ser vendidos
enquanto derem lucros. Não fosse assim, a principal matriz
energética dos domicílios partiria de uma produção caseira
barata, com a utilização de energia solar e armazenamento em
baterias para uso noturno, coisa para a qual já existe tecnologia
suficiente. Isso não ocorre porque quebraria as companhias
fornecedoras de energia.
Quais
as razões que supõe-se existir para que um bem de consumo durável
na verdade não tenha nada de durável? O conhecimento humano é
capaz de produzir uma geladeira que dure mais de trinta anos ou uma
lâmpada que nunca queime. Por que não se faz isso? Porque isso
contraria a lógica do capital segundo a qual o hiperconsumo é
salutar para a economia.
Quem
se importa com os danos causados ao meio-ambiente por esse consumo
tresloucado? Os capitalistas com certeza não, tanto que,
sabidamente, criaram a famosa obsolescência programada, segundo a
qual um produto deve ser projetado para que dure exatamente um certo
tempo. Chega-se ao cúmulo de colocar um chip num impressora para que
ela somente imprima, por exemplo, mil cópias e, depois disso, pare
de funcionar. Lâmpadas são testadas para que durem, no máximo, uma
certa quantidade de horas acesas.
Não
existe qualquer acanhamento ou prurido em causar doenças, até
câncer, nos consumidores se isso carrear lucros aos cofres das
empresas. Durante anos "cientistas" comprados defenderam
que o cigarro não fazia mal algum à saúde, enquanto as propagandas
exibiam fumantes que, montados em seus corcéis brancos ou surfando
uma linda onda, eram exemplos de saúde, de contato com a natureza,
com os animais, de vida feliz, além de conseguirem seduzir, entre as
baforadas, os homens e mulheres mais belos do mundo.
O
cientista americano Clair Cameron Patterson, numa pesquisa geoquímica
que pretendia estabelecer a idade exata da Terra, descobriu por acaso
que a quantidade de chumbo existente na superfície terrestre era
milhares de vezes superior à que existia cem ou duzentos anos antes
de sua pesquisa. Investigando mais a fundo, concluiu que isso se
devia ao hábito da época, décadas de 1940-60, de colocar grande
quantidade de chumbo na gasolina, nas tintas, pesticidas e em
diversos outros produtos. O chumbo é reconhecidamente um veneno para
o ser humano em qualquer quantidade. Na época de Patterson, cada ser
humano na Terra carregava cem vezes mais chumbo do que o normal,
estando próximos do envenenamento.
Ao
perceberem, assustados, a possibilidade de perda de lucro, o que
fizeram os capitalistas? Pagaram a outros cientistas para preparem
pesquisas que dissessem o contrário. Por causa disso, Patterson
demorou vinte anos para convencer os políticos americanos do perigo
que rondava cada vida humana. Atualmente não há mais dissenso
científico quanto aos efeitos daninhos do chumbo.
Claro
que se pode argumentar que, tanto no caso do cigarro, como no do
chumbo, a verdade acabou por prevalecer. Sim, é fato, mas em quanto
tempo e a que custo? E se não fosse a necessidade de lucro, em
quanto tempo tais produtos daninhos teriam sido retirados do mercado?
O petróleo está poluindo o mundo há mais de um século. Quanto
tempo mais?
É
assim que continua a funcionar o capitalismo. Hoje estão pagando
pesquisas científicas para convencer a população de que a
atividade industrial humana é incapaz de provocar as mudanças
climáticas que todos estão testemunhando. Segundo eles, os
cientistas que dizem o contrário são eco-chatos terroristas.
É
possível, mas se os eco-chatos estiverem certos, como é muito
possível que estejam, e a temperatura realmente continuar a subir,
então o aquecimento da água do mar poderá liberar a imensa
quantidade de metano que repousa tranquilamente nas águas gélidas
do fundo oceânico. Se isso ocorrer, então toda essa conversa, de
fato, não terá importância alguma, pois seremos todos promovidos a
outro estado de existência. Aquele... que dura para sempre.
Mesmo
que, por algum milagre, o metano continue lá no fundo do mar, o
aquecimento é capaz de conduzir a uma outra era do gelo. Mas, quem
liga? É só comprar um casaquinho no shopping da esquina, se ainda
houver shopping.
A
história demonstra que os cientistas que se alinham com as empresas
são, em geral, por elas regiamente pagos para isso. Em outras
palavras, não são confiáveis.
O
fato é que jamais o próprio capitalista irá adotar livremente
qualquer inovação científica ou tecnológica que reduza o seu
lucro, ainda que essa inovação seja salutar para os seres humanos.
Compete, portanto, ao Estado exercer o seu poder regulatório para
impor tais inovações.
Fala-se
muito em globalização econômica, objetivo febrilmente perseguido
pelas empresas, mas não é muito discutido entre as pessoas o que,
de fato, significa essa expressão. Poucos percebem o nexo entre
globalização e desregulamentação, outro alvo fortemente
perseguido pelo capital. Tanto um, como outro, são filhos diletos do
neo-liberalismo que se fortaleceu a partir dos governos do americano
Reagan e da britânica Thatcher e que, aqui no Brasil, namorou e
noivou com o PSDB de Fernando Henrique Cardoso.
A
globalização é a tentativa de supressão das fronteiras para o
capital. A eliminação das fronteiras, contudo, é somente para o
capital. As pessoas devem permanecer dentro de suas fronteiras, pois
não é saudável para o capital que os trabalhadores transitem
livremente de um país para o outro, buscando melhores opções.
Globalização individual, somente através da internet.
A
desejada globalização econômica representa a libertação do
capital das restrições da localidade. Nada mais significa do que a
pretensão de libertar-se da política e da localidade, podendo o
capital acordar num país e dormir em outro, sem amarras locais. A
pretendida desregulamentação é um tentáculo da globalização,
tratando-se de outro caminho através do qual o capital busca escapar
ao poder político estatal e facilitar sua organização nas diversas
partes do mundo.
Todavia,
é importante ressaltar que a desregulamentação almejada, como nos
adverte Baumann, não é ausência de regulação, mas mitigação ou
mesmo inexistência de regulação estatal. A regulação continuaria
existindo, mas autônoma, criada pelo próprio capital em cada uma de
suas estruturas ou empresas, estabelecendo formas próprias de
mediação com os consumidores, com os empregados, com os
fornecedores, enfim, com todos que participassem da cadeia produtiva,
todos subordinados às normas de cada empresa.
Não
é preciso imaginação para concluir a que isso levaria a
humanidade, bastando ler os livros de história, pois já houve essa
experiência histórica, de um mundo quase isento de atuação
estatal regulatória, na fase do liberalismo econômico da Revolução
Industrial, durante o qual jornadas de doze horas de trabalho eram
corriqueiras, com salários de indigência e ninguém para quem
recorrer em caso de lesão a direitos sofrida por trabalhadores e
consumidores.
Essa
voracidade somente não prosseguiu século XX adentro porque, por
diversos fatores, como as duas grandes guerras e a assunção do
comunismo russo, tornou-se necessária a presença de um Estado forte
que atuava como um poder moderador do apetite capitalista. Terminado
o paradigma russo, o motivo que subjaz ao intento neo-liberalista é
mitigar, senão eliminar totalmente, o poder político estatal.
Atualmente,
em virtude da separação entre economia globalizada e legislação
local, a política está desvinculada do poder real, transferido que
foi para as corporações econômicas. Sem poder efetivo, a política
distancia-se dos anseios populares, não representa mais os
interesses da sociedade. Os políticos militam em favor de seus
próprios interesses, sem discurso social, sem causa altruísta, sem
projeto político e sem preocupação ética.
A
ausência de finalidade na política é o principal fator para a
pungente desilusão política verificada na população em geral. Os
políticos não mais simbolizam a vontade popular. Nas grandes
manifestações populares atuais, nas passeatas, os partidos
políticos são hostilizados e convidados a não participar, o que
jamais se viu e beira mesmo o paradoxo se evidenciada a razão de
existir dos partidos políticos, que é justamente representar uma
determinada fatia de pensamento político da população.
Nesse
novo fatiamento do bolo social, os partidos não possuem mais direito
a nenhuma fatia.
A
globalização e a excessiva desregulamentação da atividade
econômica são absolutamente deletérias para o desenvolvimento de
uma sociedade humana mais justa e igualitária.
Se,
por um lado, um Estado enfraquecido, esvaziado de poder, é ruim para
a sociedade humana, por outro, atende perfeitamente aos interesses do
capital, que vê aumentar a autonomia de suas decisões. Esse arranjo
somente é bom para a super-elite, que avança cada vez com mais
apetite no bolo da divisão da riqueza.
A
concentração de renda vem aumentando assustadoramente. Nas últimas
décadas, rompeu-se o círculo virtuoso iniciado a partir da Segunda
Guerra que produzia filhos mais instruídos e mais ricos do que os
pais. De um modo geral, os filhos atuais, até mesmo em países
considerados desenvolvidos, como os Estados Unidos, não somente
estão mais pobres e menos cultos que seus pais, como sequer possuem
condições de sair da casa paterna para uma vida autônoma. Vimos
nascer a geração dos adultescentes imaturos que, aos quarenta anos,
continuam solteiros, morando com os pais e utilizando o pouco
dinheiro que ganham para propósitos possíveis, e superficiais, como
viagens de turismo barato (do tipo conheça dez países em dois dias
e gabe-se disso), roupas de etiqueta ou bugigangas eletrônicas.
O
capitalismo permissivo, livre ou quase-livre da atuação regulatória
e fiscalizatória do Estado, é daninho para o indivíduo, para a
sociedade e para o planeta. Ainda que se admita o capitalismo como o
melhor sistema econômico, e não o estou fazendo, deve ele ser
fortemente mitigado pela atuação do Estado, que é o ente surgido,
pensado e desenvolvido pelo ser humano para representar e perseguir
os interesses da coletividade.
Abra-se
aqui um parênteses para ressaltar que se está tratando de sistema
econômico e não de sistema político. Seja qual for o modo
escolhido para conduzir a economia, a manutenção da democracia é
imprescindível. Segundo uma visão particular da natureza e dos fins
da democracia - a busca por uma sociedade fundada nos princípios da
justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade - o
capitalismo apresenta-se extremamente anti-democrático.
Deve
ser veementemente repudiada qualquer espécie de ditadura, ainda que,
supostamente, socialista.
A
propriedade privada e a livre-iniciativa sem dúvida são basilares
para o tipo de sociedade na qual a maioria dos humanos decidiu viver,
mas são princípios secundários em relação a outros mais
relevantes, como, principalmente, o da dignidade da pessoa humana, o
da liberdade individual e o imperativo da fraternidade social.
Tanto
a propriedade privada, como a livre iniciativa devem estar
subordinadas ao cumprimento de sua função social, entendida esta
não somente o direito de o Estado desapropriar pela conveniência
pública, mas evidenciada principalmente pelo dever de que sejam
ambas direcionadas para a produção do máximo de felicidade
possível para a sociedade.
Dado
que toda a energia das empresa é exclusivamente proveniente de sua
estrutura humana, pois o trabalho é atributo exclusivo do ser humano
(robôs são planejados, construídos, operados e manutenidos por
seres humanos), não parece razoável compatibilizar, ou relativizar,
o princípio da dignidade da pessoa humana com a ideia de uma empresa
direcionando a totalidade da energia humana para o enriquecimento
exclusivo de seu dono e, quando muito, numa fração menor, de seus
diretores.
Hoje
vive-se num mundo em que o trabalho humano não é sagrado, ainda
que, sem ele, a dignidade se esvaia muito rapidamente. Benefícios de
assistência social são veementemente condenados, ainda que sejam
absolutamente necessários para que desempregados e seus dependentes
não se vejam na contingência da miséria e da fome. Em paralelo, a
chamada "livre-iniciativa", subvertendo a lógica do risco
do empreendimento, é protegida com imensas quantidades de dinheiro
público, sob o argumento de que existem empresas que não podem
quebrar. É a política do Robin Hood ao contrário, onde o dinheiro
do pobre acaba por encher o bolso do rico cujo negócio
contingencialmente deu errado.
Curiosamente,
quando a empresa está saudável financeiramente, mas resolve
extinguir uma determinada unidade que emprega milhares de pessoas,
tal resolução é pacífica e privadamente resolvida numa mera
assembleia de acionistas, pois, afinal, trata-se de uma decisão
particular. Os trabalhadores? Bom, dizem os senhores acionistas, isso
é um problema público, não nosso.
A
globalização e a desregulamentação são as faces mais tenebrosas
de um capitalismo que agora ousa, não apenas pronunciar o próprio
nome, como despudoradamente afirmar a que veio.
O
que interessa é o lucro e o dividendo, o ser humano é um problema a
ser contornado, talvez eliminado.
Belo texto Marcinho parabéns!!! embora eu não concorde em alguns pontos ( como sempre) é sempre muito bom ser confrontado com os meus pontos de vistas, fazendo com que eu passe a ter um outra visão. abraços Vander
ResponderExcluirVander, visões diferentes sobre a realidade são ótimas e bem-vindas, pois oxigenam as discussões.
ResponderExcluirValeu pela visita. Abração, cara. Marcio Valley.
Você sabe quanto tempo levou para escrever esse texto? Fico impressionada com o fluxo de pensamentos. Vem um após o outro, de forma ordenada e de uma levada só ou você vai construindo aos poucos? Como trabalho com o processo da escrita, fico pensando essas coisas... Para além disso, gostei muito do texto e hoje vou dar uma proposta de redação sobre os avanços tecnológicos a serviço da cidadania e algumas coisas que você diz podem conduzir a um diálogo que gere conteúdo para as redações dos pré-vestibulandos.
ResponderExcluirOi, Marcinha. O fluxo de pensamento vem num caudal. Depois da massa bruta pronta, dou umas buriladas. Beijos. Marcio Valley.
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