Historicamente, nada é imutável e nada é insubstituível. Não fosse assim, a própria noção de história, entendida como a sucessão de eventos no tempo, seria seriamente comprometida e a previsão de Fukuyama não faria sentido algum. Por outro lado, em geral todas as mudanças são lentas e graduais, mantendo-se durante muito tempo pontos de intercessão entre os modelos antigo e moderno.
O
feudalismo tornou-se um sistema inconveniente para os proprietários
e foi substituído pelo capitalismo. Isso não ocorreu de um dia para
o outro. Ao lado de empreendimentos realizados já sob o espírito do
novo sistema econômico, muitos feudos persistiram durante décadas,
talvez por mais de século, antes de sucumbir por completo. Na
verdade, o modelo de grandes fazendas que persistiu até o final do
século XIX e início do século XX, com seus escravos, não possui
diferença de monta com a prática econômica do milênio anterior.
O
capitalismo, por sua vez, não é idêntico a si mesmo desde que
surgiu com a burguesia mercantilista a partir do século XVI. Aquele
sistema, atualmente, seria repelido pela imensa maioria das
legislações dos países mais avançados, pois implicava um tal
nível de liberalismo que seria incompatível com as modernas
exigências normativas de dignidade da pessoa humana e do
trabalhador. Nesse sentido, o capitalismo atual é muito mais
socialista do que poderiam imaginar alguns teóricos econômicos do
século XIX, inclusive Marx.
Ocorre
que a sociedade humana, diferentemente dos grupos e bandos de animais
irracionais, possui como exigência fundante e irredutível de seu
agrupamento coletivo a criação de um ambiente de justiça social
cada vez mais abrangente e, consequentemente, de que toda vivência
seja uma experiência de dignidade e de elevação espiritual.
A
partir dessa exigência, um sistema político-econômico perfeito
deveria ser de tal ordem que permitisse ao ser humano realizar-se em
suas diversas dimensões, seja profissional, artística, cultural,
esportiva ou qualquer outra, e, além disso, participar ativamente da
construção social. Chamemos essas necessidades mais relevantes do
ser humano de “florescimento”.
Todavia,
o capitalismo possui inegáveis contradições que dificultam essas
conquistas. A necessidade quase obsessiva de busca pela lucratividade
e de acumulação de riqueza embaça a finalidade primeira que
deveria pautar todo e qualquer direito de propriedade: a perseguição
de um interesse público e de uma função social.
A
propriedade deve ser justificada, não sob o prisma de direito
potestativo da pessoa em virtude da mera conquista pela força (toda
propriedade é uma conquista da força real ou potencial, o
dinheiro), mas sob a ótica de sua utilidade como meio para alcançar
o bem da sociedade. Por exemplo, o direito à propriedade de uma casa
é interessante para a sociedade, pois não exigirá que a família
utilize de todo e qualquer meio, inclusive a violência, para
obtenção de um abrigo, o que justifica socialmente a sua função.
Fica mais difícil justificar socialmente um bilionário.
Observado
sob o ângulo da função social da propriedade e da consequente
possibilidade de florescimento, o capitalismo, no modelo atual, é
ineficiente, somente permitindo o florescimento de um número
bastante reduzido de pessoas.
Além
disso, a dinâmica do capitalismo envolve o surgimento frequente de
crises, que são solucionadas através de guerras ou intervenções
no mercado. O século XX foi repleto de guerras, grandes e pequenas,
notadamente as duas grandes guerras, enquanto o início do século
XXI parece demonstrar que estão sendo privilegiadas as pequenas
guerras, como as do Iraque e do Afeganistão. Quanto às crises
resolvidas por intervenções estatais, como as crises de 1929 e de
2008, análises indicam que se tornarão cada vez mais frequentes.
Tanto as guerras, como as intervenções, sempre atingem mais
severamente a parte mais necessitada da população.
É
importante ressaltar esse ponto: todas as guerras são econômicas,
mesmo as camufladas sob o manto da religião.
Por
fim, o capitalismo no formato moderno implica um achaque inesgotável
às reservas naturais, com redução dos biomas naturais e poluição
do meio circundante além da que seria recomendável.
Todas
essas crises são os sintomas febris que denunciam uma doença que
exige um remédio para a mudança do quadro patológico que está
ameaçando a nossa sobrevivência como espécie.
Sob
qualquer ângulo que se analise - filosófico, sociológico ou
antropológico -, um sistema que autoriza um único ser humano a
alcançar a riqueza de um Bill Gates ou de um Carlos Slim possui
claramente uma enorme contradição, um grande vício em si.
O
planeta Terra é um sistema fechado e o dinheiro é finito, o que
implica que a acumulação de riqueza no bolso de uma pessoa, nada
mais significa que obtê-lo do bolso de outra. A acumulação
demasiada de uma pessoa empobrece milhões de outras, sendo daninha
para o próprio capitalismo ao provocar o sufocamento da capacidade
aquisitiva de milhões de potenciais consumidores. Isso, como está
claro, conduz à redução da rentabilidade do capital numa
perspectiva mais alongada.
Considerado
que o modelo atual de capitalismo exige crescimento econômico sem
fim e progressivo aumento de lucratividade, o mercado local revela-se
insuficiente para esse propósito, o que pressupõe permanente venda
de excedentes para o exterior. Em outras palavras, exige-se a máxima
exploração do ser humano e a busca de novos mercados (leia-se,
novos seres humanos para serem explorados) quando o mercado local
exauriu a sua capacidade de permitir maior lucratividade (maior
exploração). Isso ocorre desde as grandes navegações. Atualmente
ganhou o nome de globalização.
Ocorre
que os mercados do mundo estão se igualando. A última fronteira
aparentemente será a África. Assim, numa perspectiva de longo
prazo, a busca de novos mercados exploratórios é absolutamente
insustentável. Um dia os mercados se igualarão e não existirão
novas fronteiras a serem desbravadas.
Não
há dúvida, pois, de que o capitalismo terá que se modificar, seja
porque o modelo se esgotará, seja porque aumentará a pressão
popular para a conquista de uma sociedade e de um planeta mais
saudáveis e dignos.
O
que virá em seguida? Não se sabe. Chamemos de qualquer outro nome o
próximo sistema econômico que virá, mas não de socialismo. Isso
talvez acalme as almas mais sensíveis.
Porém,
um dia, num futuro que penso de médio prazo, teremos que aprender a
lidar com um mercado consumidor de tamanho estabilizado ou mesmo em
redução, regionalizado e com contrapartidas equivalentes de
importações e exportações.
Basicamente,
creio, na contramão dos especialistas (que me perdoem pela ingênua
audácia), que o futuro privilegiará a extrema pulverização da
economia, em pequenas e médias empresas regionalizadas, que não
suportará a existência de um abismo entre as rendas, com diferença
de, no máximo, talvez quatro ou cinco vezes entre o maior salário
(do patrão ou dos empregados mais destacados) e o menor, lembrando
que isso num mundo em que o menor salário será digno. A
participação dos empregados no direcionamento dos negócios da
empresa é uma tendência que parece irreversível.
E
mais. Acho que, ao lado disso, haverá sim uma drástica mitigação
do conceito de soberania e que pessoas e mercadorias poderão
circular livremente, com alfândegas inexistentes ou muito mais
maleáveis.
Nesse
mundo, o consumo de mercadorias com grande impacto ambiental-social,
como veículos particulares e os bens duráveis de uma forma geral,
será objeto de alguma espécie de restrição, talvez na produção
(que sejam efetivamente duráveis e não necessitem de reposição à
todo momento), talvez no preço (como desestímulo ao consumo),
talvez na proibição pura e simples da produção ou do consumo,
talvez tudo isso junto. Nesse mundo, a inovação será de fato uma
inovação e não mera maquiagem.
Esse
novo sistema poderá exigir que os municípios substituam os governos
centrais no exercício da política de verdade, aquela entendida como
meio de atendimento às demandas sociais exigidas para alcançar o
bem estar dos cidadãos. Afinal, ninguém mora de fato num país ou
num estado. Todas as pessoas moram em municípios e é lá que devem
exercer primacialmente os seus direitos políticos de cidadão. Não
existe lógica racional que justifique que a maioria dos recursos
tributários seja destinada à União ou ao estado. Tais entes
estatais devem receber, da arrecadação dos municípios e não da
taxação das pessoas, os resíduos tributários estritamente
necessários à sua atuação precípua (defesa, interesses
interestaduais e intermunicipais).
O
nome desse futuro sistema político-econômico não se sabe, porém,
parece estar próximo daquilo que Marx previu. E, também como ele
previu, resultará das contradições do capitalismo. Não será
comunismo, mas dificilmente poderá continuar a ser chamado de
capitalismo.
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