O
movimento das placas tectônicas na crosta terrestre é produzido
pelo acúmulo de tensão entre elas que, em determinado momento,
alcança um nível insuportável e determina o terremoto que faz as
placas se moverem, uma para cima e a outra para baixo. Esse
movimento, ao mesmo tempo que destrói parte da superfície do
planeta, faz surgir uma nova, produzindo uma reacomodação das
forças e inaugura um novo tempo de paz geológica. Até que novo
terremoto a interrompa.
As
forças que movimentam os poderes da sociedade agem de forma similar.
Ocasionalmente, um terremoto social produz uma modificação no
cenário dos macropoderes que dominam a política. Entendam que não
uso a palavra "política", aqui, como sinônimo de
"política partidária-eleitoral". A verdadeira política é muito mais
ampla e certamente seus maiores centros de poder não se encontram em
Brasília. Um ou outro se localiza em bairros elegantes de cidades
brasileiras, como o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
Vou
dar um exemplo de movimento tectônico social.
Em Niterói, minha cidade natal, existem dois fatos históricos que provavelmente jamais serão esquecidos pela população. Um deles não tem nada a ver com o assunto: aqui ocorreu o maior incêndio da história do Brasil, em número de vítimas fatais, o incêndio do Gran Circo Americano. O outro é o que nos interessa: um exemplo histórico de movimentação da placa tectônica social. Antes da existência da ponte Rio-Niterói, praticamente toda a ligação com o município do Rio de Janeiro era realizada através do serviço de barcas. Até o ano de 1959, esse serviço de transporte marítimo estava nas mãos de um grupo privado, o grupo Carreteiro. Os proprietários só pensavam em enriquecer e, enquanto acumulavam mais e mais riquezas, adquirindo mansões e fazendas aos olhos do povo, prestavam serviços cada vez piores por preços cada vez maiores. Em maio daquele ano, após mais uma greve dos marítimos, utilizada como justificativa para mais um pedido de aumento da tarifa pelos proprietários, a população se viu concentrada em frente à estação das barcas, sem condição de embarcar e sendo violentamente reprimida por militares que foram ao local para tentar contornar o problema. Não era pouca gente, pois as barcas transportavam metade dos niteroienses da época. Pois bem, após assistir várias pessoas sendo agredidas pelos militares, um dos populares teve a ideia de arremessar uma pedra em direção a uma das vidraças da estação hidroviária. Foi o que bastou para iniciar uma violenta catarse popular, que terminou com a estação completamente destruída. Não satisfeitos, os populares se dirigiram ao escritório da empresa, em local próximo, e também o destruíram. Ainda com gosto de sangue na boca, a massa popular iniciou um caminhada de três quilômetros em direção à residência de um dos sócios da empresa. Avisados, ele e a família sabiamente fugiram antes da chegada dos populares. A casa foi saqueada, o que não foi levado foi destroçado, com os móveis luxuosos sendo lançados das janelas superiores e do telhado. Depois, foi incendiada. No dia seguinte, a família Carreteiro não era mais a proprietária da empresa, que foi estatizada. O episódio ficou conhecido como a "Revolta das Barcas" e Niterói, hoje uma cidade de classe média semi-dominada por um alinhamento ideológico "coxinha", foi consagrada na ocasião como a "pequena Bastilha".
O
que isso nos ensina? A lição mais importante é que há um limite
contingencial insuperável para a imposição de sacrifícios e
espoliações à população, limite esse dependente de um
alinhamento oportuno de inúmeros fatores. Ainda que necessárias,
reformas estruturais capazes de redesenhar o modelo socioeconômico
devem ser produzidas de forma sempre atenta ao humor da população,
que é, na verdade, a origem do poder. Lição não aprendida por
Maria Antonieta, na leitura da lenda urbana que circula sobre os
croissants.
Impor
uma sequência de graves reduções de direitos, que atingem
indistintamente as classes sociais, sem uma discussão ampla na
sociedade, sob uma embarcação de justificativas que fazem água por
todos os lados e, pior, por um governo sem a legitimidade conferida
pelo voto, é fazer um convite à convulsão social.
O
mundo assiste, atualmente, à ascensão de uma direita raivosa,
elitista e preconceituosa. No Brasil, não é diferente. Por essas
bandas, os símbolos desse posicionamento abjeto, que no entanto já ousa dizer seu
nome, são Bolsonaro e Dória. Essa direita fascistoide – além de
golpista em terras tupiniquins – corre contra o tempo, auxiliados
na tarefa por uma das piores representações do parlamento e do STF
que já existiram na história nacional, pressionando pela mitigação
extrema ou mesmo extinção dos direitos sociais e das garantias e
liberdades individuais conquistados desde a promulgação da
Constituição de 1988.
Forma-se,
de forma ainda velada, um acúmulo elevado de tensões sociais bem
capazes de provocar um terremoto político-social no país. Como
dito, os primeiros sinais foram as invernadas de junho de 2013.
O
sintoma mais relevante da aproximação de um distúrbio social,
segundo penso, surge da constatação popular de inexistência de
alternativas, ou seja, quando o indivíduo não encontra solução
para a agressão que atribui ao Estado. Mesmo indefesos camundongos
atacam quando não há fuga possível.
O
segundo fator, por ordem de importância, ocorre quando a sonegação
de direitos atinge conjuntamente as classes desfavorecidas e a classe
média, exatamente o que ocorreu no caso da Revolta das Barcas. Não
há força estatal de violência capaz de deter a massa quando a
classe média se une à dos pobres na reivindicação de algum
interesse. As invernadas de junho de 2013 são uma exemplo disso.
Novamente um exemplo de protestos populares fomentados por valores
abusivos de tarifa de transporte coletivo, as Jornadas de Junho
uniram, principalmente, estudantes oriundos de todas as classes
sociais, a maioria das classes média e pobre. Exemplos maiores
de que os governos são incapazes de prever – ou minimamente
desleixados quanto – as consequências da imposição de
sacrifícios desmedidos e injustos ao povo são as revoluções
Francesa e Russa, basicamente resultados de crises de abastecimento
de alimentos, provocadas pela insanidade estatal, que atingiram, não
somente os desfavorecidos, mas também as classes intermediárias.
A
greve geral de hoje (28/4/2017), é a primeira grande sinalização
para a classe dominante de que algo não vai bem no seio da
população. É algo como se o povo estivesse advertindo: tomem cuidado, queimaremos suas
empresas e suas mansões. Não faço apologia disso, apenas advirto para a forma como entendo os sinais.
Tudo
aquilo que vier a acontecer, daqui em diante, ficará por conta da
atuação de nossas Marias Antonietas. Se agirem com idêntico
sarcasmo, oferecendo brioches inexistentes a quem tem fome de pão, o
circo irá pegar fogo com muito mais violência do que a do incêndio
do Gran Circo Americano.
O
fator "prisão de Lula" é capaz de se tornar o
catalisador desse terremoto.
Uma
de nossas mais evidentes Marias Antonietas, o juiz Sérgio Moro vem,
há anos, brincando com fogo na forma como trata processualmente o
ex-presidente Lula. Submeteu um ex-presidente superpopular de uma das
maiores nações do mundo ao inimaginável constrangimento de ser
conduzido à força para depoimento, sem que ele nunca tivesse se
oposto a ser ouvido. Moro literalmente fez muito, muito pouco da
opinião pública. Ninguém ousaria negar que Lula é um político de
prestígio junto à população, que goza da simpatia de cerca de um
terço dos eleitores do país. E Moro não errou por tratá-lo igual
a qualquer acusado, mas diferente. Sim, porque qualquer ladrãozinho
tem o direito de se manter calado na audiência onde será ouvido
como acusado, dado que é princípio básico de direito que ninguém
é obrigado a se defender. Se pode permanecer calado, para que o
constrangimento público? E outra: mesmo testemunhas não são
conduzidas coercitivamente senão após deixarem de comparecer à
audiência para a qual foram intimadas. Assim, outra conclusão
racional não há senão a de que Moro pretendeu apenas ridicularizar
e constranger Lula perante os cidadãos, um comportamento considerado
insuportável para os eleitores daquele que é considerado, segundo
pesquisas de vários institutos diferentes, um dos maiores e melhores
presidentes da história do país. Aliás, é hoje o candidato que
mais provavelmente seria eleito para presidente da República em
2018, o que reforça a importância de sua representação no
imaginário popular, fato que Moro deveria, como autoridade pública,
adotar a cautela e o decoro de respeitar. Ao agir como agiu, com a atitude blasé adotada pela rainha francesa, Moro
passa idêntica ideia: a de que se considera, por deter fatia considerável do poder público (ela, rainha, ele, juiz), acima dos interesses do povo,
podendo agir sem consequências. Na verdade, até agora as
instituições judiciais superiores, salvo raras exceções, a ele
tem dado suporte para pensar assim.
Além
disso, com tantas revelações bombásticas sobre corrupções que
chegam a valores incalculáveis, Moro direciona a maior atenção da
Lava Jato ao que é percebido por parte substancial do povo como
criações fantasiosas ou desimportantes, como o tríplex e o sítio
de Atibaia. Das dezenas de testemunhas ouvidas, nenhuma – repito,
nenhuma – foi capaz de provar que tais propriedades sejam de Lula.
Pelo contrário, diversas já afirmaram que não são. Ainda assim,
prossegue Moro em sua sanha persecutória. Todos sabem que irá
condenar Lula, com ou sem prova.
O
problema, para Moro, é que o caso de Lula de forma nenhuma será
recebido como o de Mateus Coutinho de Sá. Ex-executivo da OAS,
Mateus foi condenado por Moro em sentença na qual afirmava existir
"prova robusta" de culpa. Ficou um tempo preso, durante o
qual ficou desempregado e perdeu a família, pois, certamente por
conta da pressão da prisão e da opinião pública, se separou da
mulher e deixou de ter contato com a filha. Posteriormente, quando já
destruído por Sérgio Moro, foi absolvido pelo TRF-4, que declarou a
ausência de provas. É importante destacar que o TRF-4 mantém
praticamente todas as decisões de Moro, mesmo as que são contrárias
ao Direito – já alegaram que a Lava Jato é uma ação penal de
exceção e, por isso, pode se exceder em relação ao Direito –,
de modo que, para ter concluído pela ausência de prova é porque
essa carência era gritante. Repito: um inocente perdeu dinheiro,
emprego e família pela atuação desastrosa e irresponsável de um
juiz, Digo irresponsável porque, de fato, nenhum juiz pode ser
responsabilizado pela interpretação que confere ao acervo
probatório, ainda que prova nenhuma exista. Trata-se de senha certa
para a ausência de impessoalidade, o que tentou ser corrigido pelo
bravo senador Requião, mas que não seguiu adiante ante a grita dos
prejudicados, inclusive a do próprio Sérgio Moro.
Todavia,
dificilmente um erro dessa magnitude será admitida, não pelo TRF-4
ou pelos tribunais superiores, mas por grande parte da população.
Não haverá como ocultar do povo os detalhes do processo. É bom que
as Marias Antonietas dos tribunais estejam atentas – como dizem
estar quando é para condenar políticos de esquerda – aos clamores
populares.
A febre, como mostra a greve geral de
hoje, já sinalizou para o agravamento da doença.
Nossas
pomposas Marias Antonietas deveriam perceber os sinais e cuidar para
que não faltem brioches. Brioches em falta, como testemunhou a
França, por vezes causa incêndios, destruições e
guilhotinamentos.
Muito bom, ajuda a refletir e portanto decidir que caminhos tomar para vencer na luta que travamos contra os exploradores de nosso trabalho, usurpadores nossos direitos, traidores do poder que lhes demos pelo do voto(de confiança)de nos representar.
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