sexta-feira, 28 de abril de 2017

A greve geral e o ponto de convulsão social

O movimento das placas tectônicas na crosta terrestre é produzido pelo acúmulo de tensão entre elas que, em determinado momento, alcança um nível insuportável e determina o terremoto que faz as placas se moverem, uma para cima e a outra para baixo. Esse movimento, ao mesmo tempo que destrói parte da superfície do planeta, faz surgir uma nova, produzindo uma reacomodação das forças e inaugura um novo tempo de paz geológica. Até que novo terremoto a interrompa.
As forças que movimentam os poderes da sociedade agem de forma similar. Ocasionalmente, um terremoto social produz uma modificação no cenário dos macropoderes que dominam a política. Entendam que não uso a palavra "política", aqui, como sinônimo de "política partidária-eleitoral". A verdadeira política é muito mais ampla e certamente seus maiores centros de poder não se encontram em Brasília. Um ou outro se localiza em bairros elegantes de cidades brasileiras, como o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro.
Vou dar um exemplo de movimento tectônico social.
Em Niterói, minha cidade natal, existem dois fatos históricos que provavelmente jamais serão esquecidos pela população. Um deles não tem nada a ver com o assunto: aqui ocorreu o maior incêndio da história do Brasil, em número de vítimas fatais, o incêndio do Gran Circo Americano. O outro é o que nos interessa: um exemplo histórico de movimentação da placa tectônica social. Antes da existência da ponte Rio-Niterói, praticamente toda a ligação com o município do Rio de Janeiro era realizada através do serviço de barcas. Até o ano de 1959, esse serviço de transporte marítimo estava nas mãos de um grupo privado, o grupo Carreteiro. Os proprietários só pensavam em enriquecer e, enquanto acumulavam mais e mais riquezas, adquirindo mansões e fazendas aos olhos do povo, prestavam serviços cada vez piores por preços cada vez maiores. Em maio daquele ano, após mais uma greve dos marítimos, utilizada como justificativa para mais um pedido de aumento da tarifa pelos proprietários, a população se viu concentrada em frente à estação das barcas, sem condição de embarcar e sendo violentamente reprimida por militares que foram ao local para tentar contornar o problema. Não era pouca gente, pois as barcas transportavam metade dos niteroienses da época. Pois bem, após assistir várias pessoas sendo agredidas pelos militares, um dos populares teve a ideia de arremessar uma pedra em direção a uma das vidraças da estação hidroviária. Foi o que bastou para iniciar uma violenta catarse popular, que terminou com a estação completamente destruída. Não satisfeitos, os populares se dirigiram ao escritório da empresa, em local próximo, e também o destruíram. Ainda com gosto de sangue na boca, a massa popular iniciou um caminhada de três quilômetros em direção à residência de um dos sócios da empresa. Avisados, ele e a família sabiamente fugiram antes da chegada dos populares. A casa foi saqueada, o que não foi levado foi destroçado, com os móveis luxuosos sendo lançados das janelas superiores e do telhado. Depois, foi incendiada. No dia seguinte, a família Carreteiro não era mais a proprietária da empresa, que foi estatizada. O episódio ficou conhecido como a "Revolta das Barcas" e Niterói, hoje uma cidade de classe média semi-dominada por um alinhamento ideológico "coxinha", foi consagrada na ocasião como a "pequena Bastilha".

O que isso nos ensina? A lição mais importante é que há um limite contingencial insuperável para a imposição de sacrifícios e espoliações à população, limite esse dependente de um alinhamento oportuno de inúmeros fatores. Ainda que necessárias, reformas estruturais capazes de redesenhar o modelo socioeconômico devem ser produzidas de forma sempre atenta ao humor da população, que é, na verdade, a origem do poder. Lição não aprendida por Maria Antonieta, na leitura da lenda urbana que circula sobre os croissants.
Impor uma sequência de graves reduções de direitos, que atingem indistintamente as classes sociais, sem uma discussão ampla na sociedade, sob uma embarcação de justificativas que fazem água por todos os lados e, pior, por um governo sem a legitimidade conferida pelo voto, é fazer um convite à convulsão social.
O mundo assiste, atualmente, à ascensão de uma direita raivosa, elitista e preconceituosa. No Brasil, não é diferente. Por essas bandas, os símbolos desse posicionamento abjeto, que no entanto já ousa dizer seu nome, são Bolsonaro e Dória. Essa direita fascistoide – além de golpista em terras tupiniquins – corre contra o tempo, auxiliados na tarefa por uma das piores representações do parlamento e do STF que já existiram na história nacional, pressionando pela mitigação extrema ou mesmo extinção dos direitos sociais e das garantias e liberdades individuais conquistados desde a promulgação da Constituição de 1988.
Forma-se, de forma ainda velada, um acúmulo elevado de tensões sociais bem capazes de provocar um terremoto político-social no país. Como dito, os primeiros sinais foram as invernadas de junho de 2013.
O sintoma mais relevante da aproximação de um distúrbio social, segundo penso, surge da constatação popular de inexistência de alternativas, ou seja, quando o indivíduo não encontra solução para a agressão que atribui ao Estado. Mesmo indefesos camundongos atacam quando não há fuga possível.
O segundo fator, por ordem de importância, ocorre quando a sonegação de direitos atinge conjuntamente as classes desfavorecidas e a classe média, exatamente o que ocorreu no caso da Revolta das Barcas. Não há força estatal de violência capaz de deter a massa quando a classe média se une à dos pobres na reivindicação de algum interesse. As invernadas de junho de 2013 são uma exemplo disso. Novamente um exemplo de protestos populares fomentados por valores abusivos de tarifa de transporte coletivo, as Jornadas de Junho uniram, principalmente, estudantes oriundos de todas as classes sociais, a maioria das classes média e pobre. Exemplos maiores de que os governos são incapazes de prever – ou minimamente desleixados quanto – as consequências da imposição de sacrifícios desmedidos e injustos ao povo são as revoluções Francesa e Russa, basicamente resultados de crises de abastecimento de alimentos, provocadas pela insanidade estatal, que atingiram, não somente os desfavorecidos, mas também as classes intermediárias.
A greve geral de hoje (28/4/2017), é a primeira grande sinalização para a classe dominante de que algo não vai bem no seio da população. É algo como se o povo estivesse advertindo: tomem cuidado, queimaremos suas empresas e suas mansões. Não faço apologia disso, apenas advirto para a forma como entendo os sinais.
Tudo aquilo que vier a acontecer, daqui em diante, ficará por conta da atuação de nossas Marias Antonietas. Se agirem com idêntico sarcasmo, oferecendo brioches inexistentes a quem tem fome de pão, o circo irá pegar fogo com muito mais violência do que a do incêndio do Gran Circo Americano.
O fator "prisão de Lula" é capaz de se tornar o catalisador desse terremoto.
Uma de nossas mais evidentes Marias Antonietas, o juiz Sérgio Moro vem, há anos, brincando com fogo na forma como trata processualmente o ex-presidente Lula. Submeteu um ex-presidente superpopular de uma das maiores nações do mundo ao inimaginável constrangimento de ser conduzido à força para depoimento, sem que ele nunca tivesse se oposto a ser ouvido. Moro literalmente fez muito, muito pouco da opinião pública. Ninguém ousaria negar que Lula é um político de prestígio junto à população, que goza da simpatia de cerca de um terço dos eleitores do país. E Moro não errou por tratá-lo igual a qualquer acusado, mas diferente. Sim, porque qualquer ladrãozinho tem o direito de se manter calado na audiência onde será ouvido como acusado, dado que é princípio básico de direito que ninguém é obrigado a se defender. Se pode permanecer calado, para que o constrangimento público? E outra: mesmo testemunhas não são conduzidas coercitivamente senão após deixarem de comparecer à audiência para a qual foram intimadas. Assim, outra conclusão racional não há senão a de que Moro pretendeu apenas ridicularizar e constranger Lula perante os cidadãos, um comportamento considerado insuportável para os eleitores daquele que é considerado, segundo pesquisas de vários institutos diferentes, um dos maiores e melhores presidentes da história do país. Aliás, é hoje o candidato que mais provavelmente seria eleito para presidente da República em 2018, o que reforça a importância de sua representação no imaginário popular, fato que Moro deveria, como autoridade pública, adotar a cautela e o decoro de respeitar. Ao agir como agiu, com a atitude blasé adotada pela rainha francesa, Moro passa idêntica ideia: a de que se considera, por deter fatia considerável do poder público (ela, rainha, ele, juiz), acima dos interesses do povo, podendo agir sem consequências. Na verdade, até agora as instituições judiciais superiores, salvo raras exceções, a ele tem dado suporte para pensar assim.
Além disso, com tantas revelações bombásticas sobre corrupções que chegam a valores incalculáveis, Moro direciona a maior atenção da Lava Jato ao que é percebido por parte substancial do povo como criações fantasiosas ou desimportantes, como o tríplex e o sítio de Atibaia. Das dezenas de testemunhas ouvidas, nenhuma – repito, nenhuma – foi capaz de provar que tais propriedades sejam de Lula. Pelo contrário, diversas já afirmaram que não são. Ainda assim, prossegue Moro em sua sanha persecutória. Todos sabem que irá condenar Lula, com ou sem prova.
O problema, para Moro, é que o caso de Lula de forma nenhuma será recebido como o de Mateus Coutinho de Sá. Ex-executivo da OAS, Mateus foi condenado por Moro em sentença na qual afirmava existir "prova robusta" de culpa. Ficou um tempo preso, durante o qual ficou desempregado e perdeu a família, pois, certamente por conta da pressão da prisão e da opinião pública, se separou da mulher e deixou de ter contato com a filha. Posteriormente, quando já destruído por Sérgio Moro, foi absolvido pelo TRF-4, que declarou a ausência de provas. É importante destacar que o TRF-4 mantém praticamente todas as decisões de Moro, mesmo as que são contrárias ao Direito – já alegaram que a Lava Jato é uma ação penal de exceção e, por isso, pode se exceder em relação ao Direito –, de modo que, para ter concluído pela ausência de prova é porque essa carência era gritante. Repito: um inocente perdeu dinheiro, emprego e família pela atuação desastrosa e irresponsável de um juiz, Digo irresponsável porque, de fato, nenhum juiz pode ser responsabilizado pela interpretação que confere ao acervo probatório, ainda que prova nenhuma exista. Trata-se de senha certa para a ausência de impessoalidade, o que tentou ser corrigido pelo bravo senador Requião, mas que não seguiu adiante ante a grita dos prejudicados, inclusive a do próprio Sérgio Moro.
Todavia, dificilmente um erro dessa magnitude será admitida, não pelo TRF-4 ou pelos tribunais superiores, mas por grande parte da população. Não haverá como ocultar do povo os detalhes do processo. É bom que as Marias Antonietas dos tribunais estejam atentas – como dizem estar quando é para condenar políticos de esquerda – aos clamores populares.
A febre, como mostra a greve geral de hoje, já sinalizou para o agravamento da doença.

Nossas pomposas Marias Antonietas deveriam perceber os sinais e cuidar para que não faltem brioches. Brioches em falta, como testemunhou a França, por vezes causa incêndios, destruições e guilhotinamentos.

Um comentário :

  1. Muito bom, ajuda a refletir e portanto decidir que caminhos tomar para vencer na luta que travamos contra os exploradores de nosso trabalho, usurpadores nossos direitos, traidores do poder que lhes demos pelo do voto(de confiança)de nos representar.

    ResponderExcluir