Vontade
é uma disposição íntima para realizar determinada ação ou
omissão. A vontade somente se concretiza materialmente se
encontradas, externamente ao agente, as condições ideais para tal.
Poder, portanto, é a capacidade de produzir tais condições ideais
de materialização da vontade. Em outras palavras, poder é a
capacidade decisória unilateral de realização da vontade. Quanto
maior a possibilidade de concretização das vontades do agente,
maior o seu poder.
No
estado de natureza, o poder de cada indivíduo é quase ilimitado,
somente encontrando barreiras na extensão da própria força física
e na capacidade de resistência do outro. Assassinato, estupro e
roubo, para ficar nesses exemplos, integram o rol de ações
inerentes à natureza animal. Um leão desafiante, ao vencer e,
ocasionalmente, matar o macho alfa anterior, tomará pela força a
propriedade do bando e passará a ter preponderância sexual sobre
todas as fêmeas do grupo. Para iniciar seu reinado, matará todos os
filhotes do bando. As fêmeas não somente aceitarão a nova
liderança e a matança dos próprios filhotes, como entrarão
imediatamente no cio, para satisfazer o novo rei e lhe conceder os
próprios descendentes. Os leões não dominantes, para dar vazão ao
instinto de reprodução, estuprarão eventualmente as fêmeas
desgarradas, cujos filhotes serão aceitos no bando pela suposição
de que são crias do macho alfa. Todas essas ações – assassinato,
roubo, infanticídio e estupro – não constituem, obviamente,
crimes na natureza, mas contingências naturais absolutamente normais
e, segundo biólogos, saudáveis para o equilíbrio natural e para a
saúde genética.
No
estado de natureza, pois, se o indivíduo for suficientemente forte,
sua vontade se imporá sobre a dos outro. A imposição de uma
vontade sobre a outra é justamente o que se chama “poder”.
Quando
o ser humano passou a viver em sociedade, um dos principais motivos
que o conduziu a aceitar reduzir seu próprio poder individual, se
não o principal, foi justamente a intenção de reduzir o poder
individual do outro e selecionar, por via da ação cultural, as
ações moralmente aceitáveis no seio da coletividade. Em benefício
de todos, ações que eram naturais em termos de ação individual,
passaram a ser criminalizadas. Resumindo: desde o início, a
experiência social não criou o Estado para ampliar o poder
individual, mas para reduzi-lo. O Estado serve, ou deveria servir, ao
propósito de mitigar a capacidade do indivíduo mais forte de ferir
o direito alheio à vida, à integridade física e à propriedade.
Nesse
sentido, a cantilena neoliberal de redução do Estado significa,
nada mais, nada menos, do que diminuir o poder estatal de interferir
na ação que um indivíduo exerce sobre o outro. Mais
especificamente: visa ao retorno ao estado de natureza.
O
neoliberalismo é sinônimo, assim, de saudosismo da selvageria, da
barbárie e da lei do mais forte que imperava no estado de natureza.
O neoliberalismo, em essência, é um libelo contra o que se entende
por humanidade, contra tudo o que nos diferencia da animalidade
selvagem. É uma ação não-cultural, portanto.
A
palavra liberalismo provêm de “liberdade”. Liberdade, no sentido
sofista pretendido pelo neoliberalismo, seria representado pela
expressão francesa laissez faire, com significado aproximado
de “faça e deixe fazer”. Seu paroxismo conduziria à
possibilidade de escravização do ser humano, resultado que, durante
milhares de anos, já foi considerado normal pela humanidade na luta
pela sobrevivência. Na verdade, materialmente falando, a escravidão
já está de volta em diversas regiões do planeta, agora
caracterizado pelo pagamento de salários aviltantes e sonegação
dos direitos humanos mais básicos, como o do respeito à dignidade
da pessoa. Não há mais necessidade de grilhões, pois a falta de
dinheiro impede a mobilidade; capitães do mato são dispensáveis,
pois, nos setores sem especialização, há fartura de mão de obra
sobressalente para os que deixam de retornar ao trabalho; senzalas
são obsoletas, as favelas e outros locais de submoradia tomaram esse
lugar.
Liberdade
de verdade, no entanto, somente é possível através da sociedade
humana organizada, ou seja, por meio da existência de um Estado
forte capaz de inibir a vontade individual. Parece um contrassenso,
mas não é. Liberdade total corresponde à possibilidade de poder
absoluto individual de decidir o que, quando e como fazer o que se
deseja fazer. É o leão matando os filhotinhos para assumir o poder.
É a natureza em estado puro, selvagem e indisciplinada. No caso do
ser humano, é a possibilidade de crianças de sete anos submetidas a
jornadas de 12 horas, como já existiu na História.
A
liberdade do ser humano cultural é a liberdade responsável.
Trata-se de limitar o interesse individual ao interesse da
coletividade. Tal limitação somente pode ser efetiva se imposta
pela força do império estatal. Justamente em função da
necessidade de estabelecer a ideia comum de liberdade responsável, o
neoliberalismo está naufragando, ou já naufragou, nos países
centrais, somente ainda insistindo em seus efeitos nefastos nos
periféricos.
No
que concerne ao Brasil, o neoliberalismo, praticado na gestão do
PSDB no governo federal e que agora retorna travestido de governo
golpista de Michel Temer, mas com o mesmo PSDB controlando as
marionetes nos bastidores obscuros do poder, simboliza o retorno da
opressão, da sonegação dos direitos trabalhistas mais básicos, da
revogação da Lei dos Sexagenários e do ataque aos cofres públicos
pelos mais poderosos, beneficiados por juros estratosféricos.
No
limite, se não refreado a tempo, a fraude do neoliberalismo
conduzirá à redução de porções cada vez maiores do poder do
Estado. Chegará o dia em que o leão desafiante matará o líder,
afugentará os outros machos, assassinará os filhotes e estuprará
as leoas e ninguém poderá reclamar.
Afinal,
faça e deixe fazer.
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