Impressionante
a capacidade analítica do saudoso Zygmunt Bauman no que concerne ao
desvelamento dos mecanismos que põem o mundo em funcionamento. Seus
livros trazem incontáveis lições sobre os processos de formação
e desenvolvimento das interrelações sociais, principalmente os que
determinam as macrorrelações, mas aqui e ali também produzindo a
narrativa dos micropoderes que se digladiam no cotidiano, o campo da
realidade mais próxima dos humanos.
No
livro Em busca da política (1),
há um capítulo especialmente interessante (2),
que trata do desenvolvimento do conceito de ideologia ao longo do
tempo. Há muito ensinamento, ali, cuja apreensão serve
perfeitamente ao propósito de compreender o momento político
vivenciado no Brasil atual.
A
palavra “ideologia” embute em si mesma o significado de estudo ou
ciência das ideias. De fato, nasce legitimamente com essa pretensão
plenamente epistemológica, real, de organizar e fiscalizar as ideias
surgidas com o timbre de “ciência”. Separar o joio do trigo, eis
a pretensão científica inicial da ideologia. Com o passar do tempo,
porém, o significante permaneceu o mesmo, mas o significado sucumbiu
a um processo irreversível de deterioração. De serva da ciência,
a palavra ideologia passou a significar justamente o oposto de saber
científico: o senso comum ou, como traduzido por alguns filósofos e
sociólogos, a “atitude natural” perante o mundo. Os ideólogos
perceberam o potencial do novo saber para o direcionamento da vontade
popular e, de fiscais das ideias, passaram à condição de seus
autores. Conspurcaram, viciaram, a noção de ideologia, pondo-a a
serviço dos interesses de dominação. Marx foi um dos primeiros
pensadores a utilizar o termo já nessa acepção viciada, quando a
utiliza como título em A ideologia alemã.
Senso
comum ou atitude natural significa, no dizer de Bauman, que faz
remissão ao filósofo Edmund Husserl, “esse caldo de cultura para
opiniões tolas e infundadas que se disfarçam de conhecimento
verdadeiro”. Segundo Bauman, Husserl acreditava que somente através
da “redução fenomenológica”, seria possível alcançar a visão
da realidade “real”, ou seja, a realidade despida das diversas
camadas de erro que turvam a visão da pessoa comum. Em outras
palavras: tire toda a grossa capa suja de senso comum que reveste a
realidade e eis que ela surgirá nua e crua, como é verdadeiramente.
A capacidade de lapidar o diamante bruto recém extraído da mina do
real, contudo, infelizmente, não se encontra ao alcance dos
mineiros. Há uma proposital limitação cognitiva que os impede de
produzir a joia oriunda do produto do próprio trabalho. Isso os
coloca na condição de alvos fáceis da manipulação ideológica.
Sem lapidação, o diamante é pouco mais do que uma pedra.
Embora
o senso comum, ou atitude natural, em virtude de seus evidentes (para
quem os enxerga) equívocos e contradições, tenha validade no tempo
e no espaço, sendo superado, em algum momento, pela narrativa
histórica a ser contada no futuro, o fato é que, no presente, a
ausência de inteligência no debate público, degenerada que é pela
ideologia dominante (rectius: senso comum que prepondera na
atitude política das pessoas), dificulta enormemente o caminhar da
humanidade em direção aos avanços civilizatórios que nos
tornaria, efetivamente, uma espécie diferenciada em razão da
inteligência. Nesse sentido, pode-se afirmar que é a primazia do
senso comum sobre a inteligência crítica que ainda mantém uma
porção significativa da população humana na condição de animais
irracionais.
É
claro que o discurso hegemônico não surge com a criação da
ideologia. Ele já existia, disseminado através das religiões e,
posteriormente, daquilo que se entendia como ciência. O que Bauman
pretende ressaltar, creio, é como o poder é capaz de deturpar todo
e qualquer conhecimento humano para transformá-lo em ferramenta útil
para se perpetuar na dominância.
Quem
é o autor e como se produz e reproduz o discurso ideológico
hegemônico? A resposta é óbvia: siga o dinheiro, estúpido! A
ideologia dominante deve produzir um mundo no qual a manutenção da
ordem e a vontade de progresso sejam o padrão dominante de
comportamento.
A
manutenção da ordem deve ser entendida como a submissão ao
ordenamento legal ainda que ao custo da fome e da própria vida.
Rebeliões por insatisfação com a renda ou com as condições
materiais de existência, mesmo as realizadas por populações
incontroversamente miseráveis, deve ser vista pelo restante da
população como coisa de baderneiros, terroristas e vândalos.
Decisões públicas amargas, capazes de conduzir a miséria a níveis
inimagináveis, devem ser percebidas pela maioria da população como
dolorosas, porém inevitáveis.
A
vontade de progresso, por sua vez, serve para incutir na maioria da
população a ideia de que o ser humano é o senhor do planeta, cujas
riquezas naturais existem exclusivamente para a sua satisfação, e
que todos são potencialmente empreendedores capazes de enriquecer
indefinidamente, de modo que o respeito ao patrimônio alheio atual
significa o respeito ao patrimônio próprio no futuro.
É
assim, basicamente, que as duas ideias hegemônicas garantem o mundo
tal e qual ele se apresenta: através do paroxismo dos conceitos de
ordem e de progresso.
Quem
produz o discurso hegemônico, e o reproduz, é quem dele se
beneficia: a elite. Embora dele se beneficiem, e ajudem a reproduzir,
a elite, nesse caso, não é representada pela classe média ou pela
pequena burguesia, os pouco ricos. A elite capaz de direcionar a
ideologia é formada pelos muito ricos. Somente a classe rica é
capaz de financiar a produção de pensamento e sua disseminação
global. Não está ao alcance de “riquinhos” custear a ciência
econômica produzida em universidades de prestígio mundial, que
produzirão o material científico pleno de jargões obscuros
propositais, pois úteis à finalidade de permitir a interpretação
subjacente ao senso comum econômico que será repetido
nauseantemente pelos pseudo-sábios econômicos empregados pela
grande mídia e acabará por ser agregado inclusive pelas academias
de menor prestígio, cujos “cientistas”, assim, se colocam na
condição de simples “mineradores” do conhecimento, incapazes,
como qualquer um do povo, de lapidar o diamente que extraem da rocha
com a própria picareta.
E
é isso que assistimos no Brasil atual. Um apego tão elevado,
irracional, a uma noção supostamente ética de combate a um dano
social verdadeiro – a corrupção – que autoriza a destruição
de outros elementos tão ou mais importantes socialmente, a saber, o
respeito à democracia, a supremacia dos direitos e liberdades
individuais em face do poder coercitivo do Estado e a valorização
do trabalho e do trabalhador, dentre outros.
A
responsável pela disseminação da ideia daninha de que o combate à
corrupção deve ser feita “custe o que custar” é a ideologia
dominante, que já nos forçara o pensamento idêntico de que o
combate às drogas deve ser levado às últimas consequências, pouco
importando a avaliação da dimensão dos prejuízos sociais
colaterais que isso provocar. Tal pensamento, em última análise,
permite supor o massacre de populações inteiras, desde que
justificada por uma combate “ético” apelativo qualquer, desde a
imposição de um regime “democrático” à força, como em nome
da “autodeterminação” dos povos que serão massacrados, sem
opção, pela guerra que os libertará. Tudo isso é naturalizado,
pela população, por conta de estarem “zumbificados” pelo
discurso hegemônico. O horror, nesse caso, passa a não mais
horrorizar.
O
“embate” entre um juiz visto como herói nacional e um cidadão
acusado sem provas, cuja ausência de provas é vista como
comprovação de culpa, sinaliza com bastante preocupação para o
ponto a que chega a irracionalidade provocada pela ideologia. Não se
percebe que o massacre kafkaniano hoje é contra quem odeio, mas
amanhã será contra quem amo. A alteridade morre e de suas cinzas
nasce a arbitrariedade e o despotismo.
A
ideologia dominante é capaz de transformar heróis em inimigos
públicos, golpistas e ditadores em democratas e inquisidores em
juízes imparciais. A resistência civil à indignidade se torna
vandalismo e terrorismo. A covardia institucional, capaz de matar com
bala de borracha disparada à queima-roupa e quebrar cassetete na
cabeça de manifestante, é comemorada como cumprimento estrito do
dever. A pusilanimidade moral de autoridades que deveriam zelar pela
paz social, mas se acovardam ante a grita pseudomoral dos que tem
voz, é vista como sabedoria.
É
ela, também, a ideologia, que permite a imposição de quatorze anos
de trabalhados forçados para toda a população, sem sequer arranhar
os interesses dos ricos, sem que isso cause uma convulsão social.
Autoriza o corte de direitos trabalhistas históricos, absolutamente
consagrados, como a vedação à terceirização da atividade-fim,
sem que sobrevenha uma greve geral por tempo indeterminado. Determina
a mitigação ou extinção de direitos vinculados ao estador de
bem-estar social, criados como mecanismo de redução das
desigualdades e auxiliares no combate ao crime vinculado ao desespero
existencial de subsistência, não somente sem resistência da
população, mas sob seus aplausos.
Tudo
porque é sonegado à população o conhecimento verdadeiro sobre as
relações de causa e efeito que permeiam as interrelações sociais
através do mecanismo de criação e disseminação da ideologia
favorável à dominação, que inverte completamente a verdadeira
inteligência sobre a sociedade e seus meandros. O que é ruim, passa
a ser bom, e o que é bom, torna-se péssimo.
O
intuito final é que passe despecerbido que os recursos são
escassos, muito escassos, num planeta de riquezas finitas, e que,
embora escassos pela própria finitude, tornam-se desesperadoramente
ainda mais escassos pela apropriação irracional da maior parte da
riqueza por uma porção muito pequena, quase insignificante, de
pessoas no mundo.
Aqui
no Brasil, o discurso hegemônico transformou a operação Lava Jato
em episódio salutar de depuração ética, quando, na verdade, é
meramente um instrumento útil na luta ferrenha pelos recursos
escassos. Seu papel não é de defesa dos interesses populares, como
pensam os inocentes úteis que a defendem com ardor, mas de fazer
cessar a transferência de parte dos recursos escassos – pequena,
mas importante – que vinha sendo direcionada para o andar de baixo.
A pretensão é de que esses recursos escassos, por pouco que sejam,
continuem a jorrar somente na bolsa dos poderosos, que sequer são
brasileiros.
Esse
é o gigantesco poder do discurso hegemônico: criar, na mente dos
incautos, um inimigo imaginário cuja guerra contra sirva de
distração para o diabo prosseguir – sem ser notado – no seu
trabalho de coletar almas inocentes e ingênuas.
Um
dia, nossos netos terão acesso à História e conhecerão a
verdadeira história desse período. Isso já ocorreu, por exemplo,
em relação à Inquisição ou ao nazismo que, em suas respectivas
épocas, eram considerados pelo senso comum, pela maioria, portanto,
como atos legítimos e salutares para a sociedade. Hoje, sabemos o
quanto seus defensores foram ignorantes, tolos e enganados.
O
que nossos netos não saberão dimensionar é a participação dos
próprios avós nas agruras que sofrerão. A tolice, a ingenuidade e
a insensatez atuais serão ocultadas pelo véu da ignorância que o
tempo sempre produz em relação às massas.
Para
quem, hoje, apoia de forma incondicional operações governamentais
como a Lava Jato e as decisões de tribunais superiores que lhes
conferem legitimidade, resta ao menos o conforto de saber que sua
burrice será apagada pelo tempo. O que não será apagado, nem
agora, nem no futuro, serão os efeitos sociais daninhos de sua
escolha. O próprio apoiador sofrerá em curto prazo com o desemprego
e aposentadoria tardia. Em médio prazo, seus filhos e netos também
sofrerão com o estabelecimento de uma cultura de servidão e
menosprezo pelo trabalho e pela dignidade humana.
A
corrupção é um mal a ser combatido na sociedade como outro
qualquer, como o homicídio, o estupro e os preconceitos. Nenhum mal
justifica um combate “a qualquer preço”, pois isso, em si mesmo,
é um outro mal. Todo mal deve ser combatido com as armas da justiça
e da equidade, acima, inclusive, da mera legalidade. A dignidade
humana deve ser preservada acima de qualquer outro interesse,
inclusive os mesquinhos interesses desse ente sobrenatural chamado
“mercado”.
O
verdadeiro custo da aceitação passiva do discurso hegemônico é a
abdicação da humanidade e sua incrível capacidade de perceber o
mundo tal como ele é. Quem adere cegamente à realidade virtual
disseminada pela grande mídia, pela indústria cultural, torna-se,
apenas, um bovino a mais no grande rebanho criado para o abate pela
elite.
Ser
humano, inteligente, ou uma cabeça de gado, sem discernimento? Eis a
encruzilhada na qual somos colocados pelo atual embate “ético”
travado no país.
Todos
nascemos e morreremos um dia com a aparência humana. São as
escolhas que fazemos, em suma, é como vivemos que nos alça à
condição verdadeiramente humana inteligente e racional ou nos
mantém na animalidade irracional. Assim, é preferível optar pela
dignidade humana, de forma contramajoritária, e tornar-se um pária
na sociedade, do que aderir ao discurso fácil da pseudomoralidade e
compactuar com a iniquidade.
A
escolha parece fácil, mas, infelizmente, não é.
1 - BAUMAN,
Zygmunt. Em busca da política, Zahar, 2000.
2 - Idem,
“Digressão 1: Ideologia no mundo pós-moderno”, pág. 114.
O número de comentários é inequivocadamente a principal forma de corroborar o texto acima. Triste ...
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Obrigado, Mauro Barreto, pelo comentário. De fato, um texto com poucos comentários, não somente aqui, mas também no portal de notícias GGN, do jornalista Luis Nassif, no qual foi reproduzido. Lá apenas 4. Creio que a natureza do texto é essa mesma, de reflexão, sem muito a comentar. Mas foi bem compartilhado, o que é um alento. Abraço.
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