Existem
muitas definições possíveis para a palavra trabalho. Certamente a
mais primitiva, aquela que compartilhamos com os demais animais, é a
que o conceitua como a atividade de natureza física voltada à
obtenção, no ambiente natural, dos elementos necessários à
sobrevivência. Os leões, por exemplo, “trabalham” em média
quatro horas diárias, passando o resto do dia convivendo com os
demais membros do bando ou simplesmente dormindo1.
Alguns animais necessitam “trabalhar” bem mais. Os pandas
gigantes costumam passar doze horas diárias colhendo e comendo
bambu2.
No
que toca ao ser humano pré-histórico, imaginando que possuía
comportamento similar ao dos atuais primatas superiores, como o
gorila, presume-se que deveria passar de 8 a 9 horas em atividades
necessárias à alimentação3,
ou, mais precisamente, no exercício da caça e da coleta. Nesse
tempo, não havia excedente de produção individual. Cada ser humano
caçava e coletava apenas o necessário para a alimentação própria
e do grupo. Pelo contrário, vingava a escassez e um estado
permanente semi-famélico.
Com
o advento da agricultura e da pecuária, duas novidades surgiram: (a)
a necessidade de fixação em determinado ponto geográfico para o
desenvolvimento da cultura agro-pecuária e (b) a produção
excedente. Da primeira, e como consequência do instinto animal de
proteção do território, surgiu a criação cultural humana da
propriedade. Do desenvolvimento da segunda, resultado direto do
instinto animal do egocentrismo e consequente necessidade de
acumulação, surgiu a criação cultural humana da submissão de um
ser por outro da mesma espécie, a exploração do homem pelo homem.
Abram-se
parênteses para esclarecer que o único valor real, subjacente a
toda a economia, é o trabalho. A matéria-prima extraída da Terra
não possui valor em si, sendo seu valor medido pelo tempo e energia
despendido em sua extração. O capital investido na empresa, nesse
sentido, é apenas um outro nome para “trabalho acumulado”.
Capital é, assim, uma espécie de bateria através da qual se
armazena a energia do trabalho. Portanto, como ninguém consegue
trabalhar mais do que uma pessoa, pois somos todos uma única pessoa,
a riqueza somente é conseguida através da tomada de posse do
trabalho alheio. Voltando ao exemplo do reino animal, se um leão for
visto impondo sua propriedade sobre as carcaças de mil zebras
abatidas, todos teremos certeza de que não foi ele que as caçou,
mas que se apropriou da caça de outros animais. É claro que, no
reino animal, dificilmente esse leão conseguirá manter essa posse.
Os animais são menos inteligentes do que nós e, por isso, são
incapazes de vislumbrar a enorme vantagem em permitir que um só
tenha mais do que necessita, enquanto outros não tenham nada.
A
partir do tempo histórico de criação da atividade agropastoril, o
ser humano, plantando e criando animais em terras que passou a
consideradar somente suas, iniciou uma era que poderia ser dourada: a
obtenção da natureza de muito mais do que era necessário para a
subsistência grupal. Todavia, utilizando sua imensa capacidade
alquímica de transformar ouro em dejeto escatológico, o ser humano
aproveitou-se disso para apresentar uma terceira novidade ao reino
humano: a transformação do trabalho em fator de produção.
Deixando de ser apenas a atividade estritamente destinada a manter-se
vivo, o trabalho iniciou sua carreira de elemento a ser considerado
para o aumento da produtividade em nome alheio. A partir daí, até a
louca complexidade das relações sociais e econômicas que a
atualidade presencia, foi um pulo histórico de quase quinze mil
anos. Durante todo esse tempo, uma extrema minoria de seres humanos
escravizou quase a totalidade dos demais seres humanos.
De
fato, a palavra correta a ser utilizada é escravidão, que apenas
variou de modo e condições. Desde a mais selvagem escravidão do
chicote e pelourinho, até o que modernamente é denominado de
emprego, no qual o salário de subsistência substituiu o pagamento
em senzala e alimento. É claro que, em todos os tempos, sempre
existiram os escravos privilegiados, que servem à Corte e andam de
roupas finas e calçam sapatos bonitos, e quase nem se sentem
escravos. Ao lado deles, entretanto, penam os escravos
desfavorecidos, que sentem o peso da escravidão em toda a sua
dimensão vil e degradante. Nos tempos modernos, a classe média
representa os escravos privilegiados, enquanto os pobres e miseráveis
suportam a vileza do capitalismo em sua integralidade. O chicote e o
pelourinho foram substituídos, como tática de incutir o medo e a
sensação de insegurança que resultam em obediência, pela quase
completa omissão social, capaz de destruir a dignidade individual,
tornando os desfavorecidos uma espécie de refugo desprezível do
capitalismo moderno, como pontifica Bauman em “Vidas
desperdiçadas”4.
O
desenvolvimento da inteligência parecia capaz de, progressivamente,
conduzir o ser humano ao paraíso na Terra, a saber, diferenciar-se
dos animais irracionais pela desnecessidade de trabalhar para
obtenção da mera sobrevivência, o que possibilitaria o
florescimento pessoal em suas dimensões artística, cultural,
esportiva e humanitária ou, numa só palavra: espiritual. De fato, o
desenvolvimento progressivo da técnica foi aumentando a
produtividade do ser humano e, bem aplicada, poderia reduzir a
jornada de trabalho humano para, quem sabe, algo similar a de animais
considerados menos inteligentes do que os humanos, como os leões,
quatro horas por dia. A união da ciência e da técnica conduziu à
explosão tecnológica a partir de meados do século XIX, com
precipitação abissal a partir de metade do século XX. Todavia, a
carga média de trabalho diário do ser humano ainda é similar a dos
Australopithecus, dos escravos de todas as épocas e lugares, dos
servos do feudalismo e dos operários da Revolução Industrial. Não
é raro, ainda hoje, a prática de jornadas de doze horas. Em termos
de trabalho, portanto, à revelia das maravilhas tecnológicas, a
imensa maioria dos seres humanos jamais saiu da pré-história.
O
aumento de produtividade não gerou ganho significativo na renda do
trabalhador e tampouco em seu tempo livre. Pelo contrário, o
resultado mais imediato para o trabalhador é o conhecido desemprego
estrutural, ou seja, a perda total de renda. Ora, se o incrível
ganho de produtividade decorrente da tecnologia aplicada não
implicou ganho proporcional no tempo livre do trabalhador e tampouco
em seu salário, para onde ele se dirigiu? A resposta, óbvia, é que
praticamente toda o incremento na produtividade foi convertido em
aumento da mais-valia e, consequentemente, do lucro. Num exemplo
grosseiro, se o trabalhador produz cinco produtos por hora e seu
salário corresponde a um produto por hora, isso significa que ele
recebe por apenas vinte por cento do que produz, de modo que trabalha
de graça por oitenta por cento de sua jornada. Esse tempo extra,
apropriado pelo capitalista, é a mais-valia, ou, para que fique bem
claro, escravidão. Como tudo que é ruim pode piorar, se uma
inovação tecnológica qualquer permite dobrar a produtividade –
dez produtos por hora – com manutenção do salário, a exploração
duplica, pois agora seu salário corresponde a apenas dez por cento
do que produz, o que importa em escravidão por noventa por cento da
jornada.
O
que a elite escravocrata faz com esse dinheiro? Promove o bem-estar
social? Impulsiona o crescimento cultural da humanidade? Pratica
ações de recuperação ambiental do planeta? Desenvolve projetos de
recuperação de espécies ameaçadas? Incrementa inovações em
matrizes energéticas mais limpas? Claro que não. Óbvio que parte
da riqueza é gasto em superfluidades, como propriedades elegantes,
brinquedos caros (automóveis exclusivos, iates, aviões e outros) e
outras ostentações, mas isso é muito pouco perto da riqueza
gerada. Padecesse a elite somente do vício da futilidade e a
humanidade estaria salva. O problema é que a elite acrescenta, à
indecente frivolidade, a mesquinhez da insensibilidade social. Como o
excedente de produção é muito grande e a riqueza, incalculável,
há necessidade de articular gastos muito maiores para dar vazão ao
resultado do trabalho acumulado que é sonegado à população
mundial.
Basicamente,
a maior parte do dinheiro é gasto no mercado especulativo,
criando-se uma economia fictícia, sem base no mundo real da
produção. O problema é que o mercado especulativo inevitavelmente
produz as chamadas bolhas, que um dia estouram e dão azo às
sucessivas crises da economia. As crises econômicas estão ficando
mais próximas no tempo e, a cada aparição, geram um rombo maior.
Os governos dos países centrais lidam com as crises cíclicas
principalmente em duas frentes: (a) com o agigantamento do aparelho
militar-repressivo que garante a manutenção da ordem capitalista e
(b) com injeção de dinheiro público no caixa privado das empresas
para salvar o capitalismo das mesmas crises cíclicas. Dito de um
modo mais duro e cru: para alongar o tempo intercrises, produzem
armas, promovem guerras e, depois, recuperam o que foi destruído; e,
após a crise, sob a alegação de bem comum, colocam dinheiro
público em cofres privados para garantir o retorno ao ponto de
partida para a próxima crise.
Os
EUA possuem quase dez mil ogivas nucleares e a Rússia mais de sete
mil5,
sem contar os demais países. Uma estimativa otimista do orçamento
militar dos EUA aponta mais de seiscentos bilhões de dólares anuais
de gastos militares6.
A Segunda Guerra custou aos americanos cerca de cinco trilhões de
dólares em valores atualizados. Somadas, as guerras do Iraque e do
Afeganistão custaram aos governos do mundo seis trilhões de dólares
e a manutenção de tropas americanas nestes países custa dezesseis
bilhões de dólares por mês7
ao povo dos EUA.
Cessada
a 2ª Guerra, os EUA estiveram constantemente envolvidos em conflitos
menores, mas custosos. Jamais estiveram um ano sequer sem bombardear
outro país. Claro que não se trata de defesa da liberdade e da
democracia, mas de puro cálculo capitalista. Sem mencionar as
guerras não declaradas, manipuladas através de títeres locais,
como costumeiramente ocorre na América Latina e parece ser o caso do
golpe antidemocrático promovido no Brasil em 2016.
Na
famosa bolha imobiliária americana que gerou a crise de 2008, o
governo americano resolveu premiar os irresponsáveis especuladores
com a aquisição dos títulos podres que micaram na mão dos
gananciosos bilionários. Foram gastos quase um trilhão de dólares
do povo americano para salvar os ricos investidores8.
O presidente americano da época era George W. Bush, que se
notabilizou por criar dívida para o Tesouro americano superior à
soma das dívidas produzidas por todos os presidentes americanos
anteriores, de George Washignton a Bill Clinton9.
O recorde, porém, durou pouco. No governo seguinte, o presidente
Barack Obama superou seu antecessor ao criar dívida maior do que a
soma de todos os presidentes americanos anteriores, inclusive George
W. Bush. Obama assumiu a presidência com a dívida americana na casa
dos nove trilhões de dólares e, ao deixá-la, a dívida subira para
cerca de vinte trilhões de dólares10.
Se Bush filho premiou banqueiros irresponsáveis com um trilhão de
dólares, Obama resolveu, em 2009, apenas um ano depois da doação
de Bush, dobrar a bondade: doou dois trilhões de dólares do povo
americano para os banqueiros bilionários que arriscam, no cassino da
especulação financeira, o dinheiro obtido com a exploração da
humanidade11.
Calcula-se
que, no total, a crise especulativa de 2008 tenha custado aos cofres
americanos, até o ano de 2009, a título de socorro financeiro a
bancos, montadoras e outros atores do mercado financeiro, o total
inacreditável de dez trilhões de dólares12.
Apesar dessa montanha de dinheiro, não houve melhora significativa
nos níveis de emprego e de renda no país. Para se ter uma ideia da
dimensão dessa fortuna, caso o governo americano resolvesse
direcionar o dinheiro para o povo e não para os bilionários, cada
americano, rico ou pobre, receberia cerca de trinta mil dólares ou
cerca de cem mil reais. O empreendedorismo tão decantado pelo sonho
americano agradeceria. Isso sem considerar os elevados gastos
militares já mencionados, que poderiam também ser direcionados em
benefícios diretos para a população. Todavia, como não é
permitido a redução da desigualdade social, sob pena de danificar a
máquina de produzir dinheiro inútil, finge-se que se está ajudando
os pobres com o dinheiro colocado no cofre dos ricos.
O
problema nesse jogo de ganha-ganha especulativo com a garantia de
socorro financeiro com dinheiro público pós-ruptura de bolhas é
que as crises são cada vez mais frequentes e cada vez exigem injeção
de mais dinheiro. Isso é indicativo de que, em breve, será
impossível salvar o mercado e a quebradeira geral será inevitável.
A confiança no dólar é garantida pela falsa crença na saúde da
economia americana, cuja dívida pública ultrapassa os cem por cento
do PIB desde 201113,
saúde essa que é confirmada pelos triplos A concedidos pelas mesmas
agências de rating que são sócias do capitalismo mais
selvagem. Basta lembrar que essas mesmas agências concediam triplos
A aos títulos imobiliários um dia antes da explosão da bolha de
2008. Isso significa que darão notas excelentes para os títulos
americanos até um dia antes de uma eventual explosão da economia
americana, quando ocorrer.
O
que o mundo assiste pode significar a materialização da profecia
marxiana de destruição do capitalismo em função de suas
contradição internas. Além da contradição marcada pela exclusão
de grande massa dos trabalhadores do processo produtivo, o que
provoca ausência de renda e, portanto, de demanda, há ainda a
questão do capitalismo liberal, produtivo, ter sido engolido pelo
capitalismo monopolista ou financeiro, que pouco se preocupa com a
produção, centrando sua atenção na especulação e na derrubada
de barreiras, inclusive as provocadas pela concorrência. Uma
capitalismo que renega a concorrência está fadado a sucumbir. Nesse
jogo de grande aquisições, as corporações se armaram de um poder
político insuperável, capaz de influenciar diretamente as políticas
locais e prejudicar os capitalistas vinculados à produção que
ainda resistem. Os tubarões estão se comendo.
Por
conta de tanta contradição, embora o potencial de produtividade
hoje seja gigantesco, é incapaz de gerar emprego e renda. Sem renda,
como manter a roda econômica gerando? Uma uberização total da
economia é inimiginável e tampouco é possível supor um terceiro
setor que absorva tamanho contingente de trabalhadores. Há um
problema no meio da sala da economia que parece insolúvel: saímos
da economia fundada na carência para uma economia de abundância
potencial. A abundância somente não é real em função do império
do lucro, cujo princípio basilar impede que seja fabricado o que não
se consegue vender. O que interessa não é a necessidade humana, mas
a existência de lucro.
A
sandice é tamanha que os bilionários se recusam a perceber que,
melhor do que aparatos militares custosos e de terríveis aplicações
práticas, a manutenção de seu status depende de manter a
população com a sensação de segurança gerada por mecanismos como
o estado de bem-estar social e programas de renda mínima, que ainda
possuem o duplo benefício extra de custarem menos em riqueza e vidas
do que a destruição das guerras e servirem de estimulantes para a
economia.
Tudo
o que foi dito em relação aos EUA se aplica aos demais países,
ainda que em doses menores, Brasil inclusive. A guerra política
brasileira, cujo fim não se vislumbra, é parte integrante dessa
luta encarniçada pela manutenção de princípios econômicos que
estão ruindo aceleradamente.
O
fim está próximo. O que virá depois? Socialismo, nova Idade Média
ou a hecatombe atômica? Difícil dizer. Por via das dúvidas, quem
puder, que passe a comprar ouro. Quando a quebradeira começar, papel
nenhum valerá nada. Nem mesmo esse pequeno retângulo de papel
pintado de verde que chamam dólar.
1Extraído
em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Le%C3%A3o
2Extraído
em 28/08/2017 de: http://istoe.com.br/5109_A+VIDA+SEXUAL+DOS+PANDAS/
3Extraído
em 28/08/2017 de:
http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/cerebro-grande-nasceu-na-cozinha/
4BAUMAN,
Zygmunt. Vidas desperdiciadas: la modernidad y sus parias,
Buenos Aires, Editorial Paidós, 2012
5Extraído
em 28/08/2017 de:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%ADses_com_armamento_nuclear
6Extraído
em 28/08/2017 de:
http://internacional.estadao.com.br/blogs/radar-global/comparacao-de-gastos-com-defesa-nos-eua-e-no-mundo/
7Extraído
em 28/08/2017 de:
http://www.revistaplaneta.com.br/a-guerra-dos-3-trilhoes-de-dolares/
8Extraído
em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crise_do_subprime
9Extraído
em 28/08/2017 de:
http://www.ocongressista.com.br/2016/04/os-eua-entrarao-em-crise-e-este-e-o.html
10Extraído
em 28/08/2017 de:
http://bomsenso.org/2017/01/25/desmistificando-obama-o-contador-de-historias/
11Extraído
em 28/08/2017 de:
http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,plano-financeiro-de-obama-vai-injetar-us-2-trilhoes-para-salvar-bancos,321740
12Extraído
em 28/08/2017 de:
https://www.terra.com.br/economia/eua-ja-gastaram-us-10-trilhoes-contra-crise,e33817a7adc4b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
13Extraído
em 28/08/2017 de:
http://terracoeconomico.com.br/evolucao-da-divida-publica-americana-desde-1969-historia-contada-por-um-grafico
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