segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Capitalismo: o custo da ganância

Existem muitas definições possíveis para a palavra trabalho. Certamente a mais primitiva, aquela que compartilhamos com os demais animais, é a que o conceitua como a atividade de natureza física voltada à obtenção, no ambiente natural, dos elementos necessários à sobrevivência. Os leões, por exemplo, “trabalham” em média quatro horas diárias, passando o resto do dia convivendo com os demais membros do bando ou simplesmente dormindo1. Alguns animais necessitam “trabalhar” bem mais. Os pandas gigantes costumam passar doze horas diárias colhendo e comendo bambu2.
No que toca ao ser humano pré-histórico, imaginando que possuía comportamento similar ao dos atuais primatas superiores, como o gorila, presume-se que deveria passar de 8 a 9 horas em atividades necessárias à alimentação3, ou, mais precisamente, no exercício da caça e da coleta. Nesse tempo, não havia excedente de produção individual. Cada ser humano caçava e coletava apenas o necessário para a alimentação própria e do grupo. Pelo contrário, vingava a escassez e um estado permanente semi-famélico.
Com o advento da agricultura e da pecuária, duas novidades surgiram: (a) a necessidade de fixação em determinado ponto geográfico para o desenvolvimento da cultura agro-pecuária e (b) a produção excedente. Da primeira, e como consequência do instinto animal de proteção do território, surgiu a criação cultural humana da propriedade. Do desenvolvimento da segunda, resultado direto do instinto animal do egocentrismo e consequente necessidade de acumulação, surgiu a criação cultural humana da submissão de um ser por outro da mesma espécie, a exploração do homem pelo homem.
Abram-se parênteses para esclarecer que o único valor real, subjacente a toda a economia, é o trabalho. A matéria-prima extraída da Terra não possui valor em si, sendo seu valor medido pelo tempo e energia despendido em sua extração. O capital investido na empresa, nesse sentido, é apenas um outro nome para “trabalho acumulado”. Capital é, assim, uma espécie de bateria através da qual se armazena a energia do trabalho. Portanto, como ninguém consegue trabalhar mais do que uma pessoa, pois somos todos uma única pessoa, a riqueza somente é conseguida através da tomada de posse do trabalho alheio. Voltando ao exemplo do reino animal, se um leão for visto impondo sua propriedade sobre as carcaças de mil zebras abatidas, todos teremos certeza de que não foi ele que as caçou, mas que se apropriou da caça de outros animais. É claro que, no reino animal, dificilmente esse leão conseguirá manter essa posse. Os animais são menos inteligentes do que nós e, por isso, são incapazes de vislumbrar a enorme vantagem em permitir que um só tenha mais do que necessita, enquanto outros não tenham nada.
A partir do tempo histórico de criação da atividade agropastoril, o ser humano, plantando e criando animais em terras que passou a consideradar somente suas, iniciou uma era que poderia ser dourada: a obtenção da natureza de muito mais do que era necessário para a subsistência grupal. Todavia, utilizando sua imensa capacidade alquímica de transformar ouro em dejeto escatológico, o ser humano aproveitou-se disso para apresentar uma terceira novidade ao reino humano: a transformação do trabalho em fator de produção. Deixando de ser apenas a atividade estritamente destinada a manter-se vivo, o trabalho iniciou sua carreira de elemento a ser considerado para o aumento da produtividade em nome alheio. A partir daí, até a louca complexidade das relações sociais e econômicas que a atualidade presencia, foi um pulo histórico de quase quinze mil anos. Durante todo esse tempo, uma extrema minoria de seres humanos escravizou quase a totalidade dos demais seres humanos.
De fato, a palavra correta a ser utilizada é escravidão, que apenas variou de modo e condições. Desde a mais selvagem escravidão do chicote e pelourinho, até o que modernamente é denominado de emprego, no qual o salário de subsistência substituiu o pagamento em senzala e alimento. É claro que, em todos os tempos, sempre existiram os escravos privilegiados, que servem à Corte e andam de roupas finas e calçam sapatos bonitos, e quase nem se sentem escravos. Ao lado deles, entretanto, penam os escravos desfavorecidos, que sentem o peso da escravidão em toda a sua dimensão vil e degradante. Nos tempos modernos, a classe média representa os escravos privilegiados, enquanto os pobres e miseráveis suportam a vileza do capitalismo em sua integralidade. O chicote e o pelourinho foram substituídos, como tática de incutir o medo e a sensação de insegurança que resultam em obediência, pela quase completa omissão social, capaz de destruir a dignidade individual, tornando os desfavorecidos uma espécie de refugo desprezível do capitalismo moderno, como pontifica Bauman em “Vidas desperdiçadas”4.
O desenvolvimento da inteligência parecia capaz de, progressivamente, conduzir o ser humano ao paraíso na Terra, a saber, diferenciar-se dos animais irracionais pela desnecessidade de trabalhar para obtenção da mera sobrevivência, o que possibilitaria o florescimento pessoal em suas dimensões artística, cultural, esportiva e humanitária ou, numa só palavra: espiritual. De fato, o desenvolvimento progressivo da técnica foi aumentando a produtividade do ser humano e, bem aplicada, poderia reduzir a jornada de trabalho humano para, quem sabe, algo similar a de animais considerados menos inteligentes do que os humanos, como os leões, quatro horas por dia. A união da ciência e da técnica conduziu à explosão tecnológica a partir de meados do século XIX, com precipitação abissal a partir de metade do século XX. Todavia, a carga média de trabalho diário do ser humano ainda é similar a dos Australopithecus, dos escravos de todas as épocas e lugares, dos servos do feudalismo e dos operários da Revolução Industrial. Não é raro, ainda hoje, a prática de jornadas de doze horas. Em termos de trabalho, portanto, à revelia das maravilhas tecnológicas, a imensa maioria dos seres humanos jamais saiu da pré-história.
O aumento de produtividade não gerou ganho significativo na renda do trabalhador e tampouco em seu tempo livre. Pelo contrário, o resultado mais imediato para o trabalhador é o conhecido desemprego estrutural, ou seja, a perda total de renda. Ora, se o incrível ganho de produtividade decorrente da tecnologia aplicada não implicou ganho proporcional no tempo livre do trabalhador e tampouco em seu salário, para onde ele se dirigiu? A resposta, óbvia, é que praticamente toda o incremento na produtividade foi convertido em aumento da mais-valia e, consequentemente, do lucro. Num exemplo grosseiro, se o trabalhador produz cinco produtos por hora e seu salário corresponde a um produto por hora, isso significa que ele recebe por apenas vinte por cento do que produz, de modo que trabalha de graça por oitenta por cento de sua jornada. Esse tempo extra, apropriado pelo capitalista, é a mais-valia, ou, para que fique bem claro, escravidão. Como tudo que é ruim pode piorar, se uma inovação tecnológica qualquer permite dobrar a produtividade – dez produtos por hora – com manutenção do salário, a exploração duplica, pois agora seu salário corresponde a apenas dez por cento do que produz, o que importa em escravidão por noventa por cento da jornada.
O que a elite escravocrata faz com esse dinheiro? Promove o bem-estar social? Impulsiona o crescimento cultural da humanidade? Pratica ações de recuperação ambiental do planeta? Desenvolve projetos de recuperação de espécies ameaçadas? Incrementa inovações em matrizes energéticas mais limpas? Claro que não. Óbvio que parte da riqueza é gasto em superfluidades, como propriedades elegantes, brinquedos caros (automóveis exclusivos, iates, aviões e outros) e outras ostentações, mas isso é muito pouco perto da riqueza gerada. Padecesse a elite somente do vício da futilidade e a humanidade estaria salva. O problema é que a elite acrescenta, à indecente frivolidade, a mesquinhez da insensibilidade social. Como o excedente de produção é muito grande e a riqueza, incalculável, há necessidade de articular gastos muito maiores para dar vazão ao resultado do trabalho acumulado que é sonegado à população mundial.
Basicamente, a maior parte do dinheiro é gasto no mercado especulativo, criando-se uma economia fictícia, sem base no mundo real da produção. O problema é que o mercado especulativo inevitavelmente produz as chamadas bolhas, que um dia estouram e dão azo às sucessivas crises da economia. As crises econômicas estão ficando mais próximas no tempo e, a cada aparição, geram um rombo maior. Os governos dos países centrais lidam com as crises cíclicas principalmente em duas frentes: (a) com o agigantamento do aparelho militar-repressivo que garante a manutenção da ordem capitalista e (b) com injeção de dinheiro público no caixa privado das empresas para salvar o capitalismo das mesmas crises cíclicas. Dito de um modo mais duro e cru: para alongar o tempo intercrises, produzem armas, promovem guerras e, depois, recuperam o que foi destruído; e, após a crise, sob a alegação de bem comum, colocam dinheiro público em cofres privados para garantir o retorno ao ponto de partida para a próxima crise.
Os EUA possuem quase dez mil ogivas nucleares e a Rússia mais de sete mil5, sem contar os demais países. Uma estimativa otimista do orçamento militar dos EUA aponta mais de seiscentos bilhões de dólares anuais de gastos militares6. A Segunda Guerra custou aos americanos cerca de cinco trilhões de dólares em valores atualizados. Somadas, as guerras do Iraque e do Afeganistão custaram aos governos do mundo seis trilhões de dólares e a manutenção de tropas americanas nestes países custa dezesseis bilhões de dólares por mês7 ao povo dos EUA.
Cessada a 2ª Guerra, os EUA estiveram constantemente envolvidos em conflitos menores, mas custosos. Jamais estiveram um ano sequer sem bombardear outro país. Claro que não se trata de defesa da liberdade e da democracia, mas de puro cálculo capitalista. Sem mencionar as guerras não declaradas, manipuladas através de títeres locais, como costumeiramente ocorre na América Latina e parece ser o caso do golpe antidemocrático promovido no Brasil em 2016.
Na famosa bolha imobiliária americana que gerou a crise de 2008, o governo americano resolveu premiar os irresponsáveis especuladores com a aquisição dos títulos podres que micaram na mão dos gananciosos bilionários. Foram gastos quase um trilhão de dólares do povo americano para salvar os ricos investidores8. O presidente americano da época era George W. Bush, que se notabilizou por criar dívida para o Tesouro americano superior à soma das dívidas produzidas por todos os presidentes americanos anteriores, de George Washignton a Bill Clinton9. O recorde, porém, durou pouco. No governo seguinte, o presidente Barack Obama superou seu antecessor ao criar dívida maior do que a soma de todos os presidentes americanos anteriores, inclusive George W. Bush. Obama assumiu a presidência com a dívida americana na casa dos nove trilhões de dólares e, ao deixá-la, a dívida subira para cerca de vinte trilhões de dólares10. Se Bush filho premiou banqueiros irresponsáveis com um trilhão de dólares, Obama resolveu, em 2009, apenas um ano depois da doação de Bush, dobrar a bondade: doou dois trilhões de dólares do povo americano para os banqueiros bilionários que arriscam, no cassino da especulação financeira, o dinheiro obtido com a exploração da humanidade11.
Calcula-se que, no total, a crise especulativa de 2008 tenha custado aos cofres americanos, até o ano de 2009, a título de socorro financeiro a bancos, montadoras e outros atores do mercado financeiro, o total inacreditável de dez trilhões de dólares12. Apesar dessa montanha de dinheiro, não houve melhora significativa nos níveis de emprego e de renda no país. Para se ter uma ideia da dimensão dessa fortuna, caso o governo americano resolvesse direcionar o dinheiro para o povo e não para os bilionários, cada americano, rico ou pobre, receberia cerca de trinta mil dólares ou cerca de cem mil reais. O empreendedorismo tão decantado pelo sonho americano agradeceria. Isso sem considerar os elevados gastos militares já mencionados, que poderiam também ser direcionados em benefícios diretos para a população. Todavia, como não é permitido a redução da desigualdade social, sob pena de danificar a máquina de produzir dinheiro inútil, finge-se que se está ajudando os pobres com o dinheiro colocado no cofre dos ricos.
O problema nesse jogo de ganha-ganha especulativo com a garantia de socorro financeiro com dinheiro público pós-ruptura de bolhas é que as crises são cada vez mais frequentes e cada vez exigem injeção de mais dinheiro. Isso é indicativo de que, em breve, será impossível salvar o mercado e a quebradeira geral será inevitável. A confiança no dólar é garantida pela falsa crença na saúde da economia americana, cuja dívida pública ultrapassa os cem por cento do PIB desde 201113, saúde essa que é confirmada pelos triplos A concedidos pelas mesmas agências de rating que são sócias do capitalismo mais selvagem. Basta lembrar que essas mesmas agências concediam triplos A aos títulos imobiliários um dia antes da explosão da bolha de 2008. Isso significa que darão notas excelentes para os títulos americanos até um dia antes de uma eventual explosão da economia americana, quando ocorrer.
O que o mundo assiste pode significar a materialização da profecia marxiana de destruição do capitalismo em função de suas contradição internas. Além da contradição marcada pela exclusão de grande massa dos trabalhadores do processo produtivo, o que provoca ausência de renda e, portanto, de demanda, há ainda a questão do capitalismo liberal, produtivo, ter sido engolido pelo capitalismo monopolista ou financeiro, que pouco se preocupa com a produção, centrando sua atenção na especulação e na derrubada de barreiras, inclusive as provocadas pela concorrência. Uma capitalismo que renega a concorrência está fadado a sucumbir. Nesse jogo de grande aquisições, as corporações se armaram de um poder político insuperável, capaz de influenciar diretamente as políticas locais e prejudicar os capitalistas vinculados à produção que ainda resistem. Os tubarões estão se comendo.
Por conta de tanta contradição, embora o potencial de produtividade hoje seja gigantesco, é incapaz de gerar emprego e renda. Sem renda, como manter a roda econômica gerando? Uma uberização total da economia é inimiginável e tampouco é possível supor um terceiro setor que absorva tamanho contingente de trabalhadores. Há um problema no meio da sala da economia que parece insolúvel: saímos da economia fundada na carência para uma economia de abundância potencial. A abundância somente não é real em função do império do lucro, cujo princípio basilar impede que seja fabricado o que não se consegue vender. O que interessa não é a necessidade humana, mas a existência de lucro.
A sandice é tamanha que os bilionários se recusam a perceber que, melhor do que aparatos militares custosos e de terríveis aplicações práticas, a manutenção de seu status depende de manter a população com a sensação de segurança gerada por mecanismos como o estado de bem-estar social e programas de renda mínima, que ainda possuem o duplo benefício extra de custarem menos em riqueza e vidas do que a destruição das guerras e servirem de estimulantes para a economia.
Tudo o que foi dito em relação aos EUA se aplica aos demais países, ainda que em doses menores, Brasil inclusive. A guerra política brasileira, cujo fim não se vislumbra, é parte integrante dessa luta encarniçada pela manutenção de princípios econômicos que estão ruindo aceleradamente.
O fim está próximo. O que virá depois? Socialismo, nova Idade Média ou a hecatombe atômica? Difícil dizer. Por via das dúvidas, quem puder, que passe a comprar ouro. Quando a quebradeira começar, papel nenhum valerá nada. Nem mesmo esse pequeno retângulo de papel pintado de verde que chamam dólar.
1Extraído em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Le%C3%A3o
2Extraído em 28/08/2017 de: http://istoe.com.br/5109_A+VIDA+SEXUAL+DOS+PANDAS/
3Extraído em 28/08/2017 de: http://ciencia.estadao.com.br/blogs/herton-escobar/cerebro-grande-nasceu-na-cozinha/
4BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiciadas: la modernidad y sus parias, Buenos Aires, Editorial Paidós, 2012
5Extraído em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pa%C3%ADses_com_armamento_nuclear
6Extraído em 28/08/2017 de: http://internacional.estadao.com.br/blogs/radar-global/comparacao-de-gastos-com-defesa-nos-eua-e-no-mundo/
7Extraído em 28/08/2017 de: http://www.revistaplaneta.com.br/a-guerra-dos-3-trilhoes-de-dolares/
8Extraído em 28/08/2017 de: https://pt.wikipedia.org/wiki/Crise_do_subprime
9Extraído em 28/08/2017 de: http://www.ocongressista.com.br/2016/04/os-eua-entrarao-em-crise-e-este-e-o.html
10Extraído em 28/08/2017 de: http://bomsenso.org/2017/01/25/desmistificando-obama-o-contador-de-historias/
11Extraído em 28/08/2017 de: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,plano-financeiro-de-obama-vai-injetar-us-2-trilhoes-para-salvar-bancos,321740
12Extraído em 28/08/2017 de: https://www.terra.com.br/economia/eua-ja-gastaram-us-10-trilhoes-contra-crise,e33817a7adc4b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html
13Extraído em 28/08/2017 de: http://terracoeconomico.com.br/evolucao-da-divida-publica-americana-desde-1969-historia-contada-por-um-grafico

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