Era o segundo semestre de 1986. Tinha acabado de ingressar na Faculdade de Direito. A vida, e suas vicissitudes, forçaram-me iniciar a faculdade com uma idade em que muitos a completam. Tinha 23 anos e meio, completaria 24 em dezembro.
Durante
o segundo grau, terminado quase quatro anos antes, fui ativista
estudantil febril e entrei na faculdade com muito do gás político
adquirido quando secundarista.
O início da faculdade coincidira com
a eleição para governador do estado. A disputa tinha dois fortes
concorrentes: Moreira Franco, pelo PMDB, e Darcy Ribeiro, pelo PDT.
Correndo por fora, com chances quase nulas, estava o meu candidato,
Fernando Gabeira, pelo PT.
Independentemente
de Gabeira ser o candidato do PT, nutria uma forte simpatia por ele
em virtude de sua história. Gabeira era lendário entre os
adolescentes politizados de esquerda. Um cara que ousou desafiar o
stablishment não somente político, como no aspecto dos costumes,
pautados por uma moral extremamente conservadora, preconceituosa e
obscurantista. Quem, com mais de cinquenta, não ouviu falar de
Gabeira e sua famosa sunga de crochê?
Gabeira
era a novidade verde no seio da política, não no sentido de falta de maturidade, mas de abordagem ecológica. Marina da Silva não
passava de mera esperança política quando Gabeira já discutia uma
agenda ambiental para o país junto com ativistas como Alfredo
Sirkis e Carlos Minc, além de artistas famosos na época, como
Lucélia Santos e Lúcia Veríssimo. Eles fundariam o Partido Verde
naquele mesmo ano, em 1986.
Por
sua história, votaria em Gabeira naquele ano mesmo que não fosse ele o candidato do
PT, partido no qual, no ardor da época, eu depositava na urna meu
voto, ainda de papel, de forma vinculada, de vereador a presidente da
república.
Nesse
primeiro semestre de faculdade, fiz uma campanha ardente pelo voto em
Gabeira. No final, ele obteve pouco mais de oito por cento da
votação, uma votação pouco expressiva, mas ainda assim um recorde para o PT no estado. O conservadorismo carioca
venceu dois ótimos candidatos de esquerda, Gabeira e Darcy.
Esse
episódio, no início da faculdade, me custou o apelido de
“Gabeirinha” durante os cinco anos do curso de Direito. Ainda
hoje, quando encontro antigos colegas de faculdade, sou chamado de
“Gabeirinha”. Acho que, na verdade, poucos se lembram do meu
nome.
Passadas
as eleições, Gabeira deixou o PT e iniciou sua trajetória no
Partido Verde. Minha admiração por ele em nada foi reduzida. Em 2002, retornou ao PT em curta passagem, saindo novamente por não
aceitar a realpolitik conduzida por Lulinha Paz e Amor. O processo
foi similar ao que levou à saída de Chico Alencar, Heloísa Helena
e a própria Marina, pessoas pelas quais mantive o respeito e a
admiração. Até a última eleição para deputado federal, por
exemplo, meu candidato a deputado federal, no qual votava desde o PT,
continuou a ser o Chico Alencar. Esse noivado antigo com o Chico começou a
esfriar esse ano, por sua relutância em se colocar ao lado do
governo Dilma contra esse congresso ultraconservador messiânico, mas
isso é outra história.
Na
última eleição, contudo, minha admiração por Marina da Silva se
esvaiu por completo. A acreana se igualou ao que há de pior na
política. Como é possível sair do PT atirando contra as imposições
do fisiologismo praticado como meio de angariar a governabilidade e,
contraditoriamente, se aliar a Aécio Neves no segundo turno? Qual a
coerência disso? Em que exatamente a Marina vislumbra diferença
ética entre os governos tucanos de Fernando Henrique Cardoso,
Alckmin em São Paulo e do próprio Aécio Neves no governo de Minas
Gerais? Onde as práticas diferem?
A
única explicação, óbvia, é a vontade desmedida de poder, que se
rende à opinião publicada com o objetivo de não perder votos na
camada mais histérica dos eleitores brasileiros.
Quanto
à Heloísa Helena, Chico Alencar e Gabeira, para ficar nesses
exemplos, nada havia mudado, mesmo com a decisão da Heloísa de se
filiar ao partido da Marina ou da já assinalada relutância do Chico
Alencar em batalhar contra o obscurantismo.
Contudo, o sinal de alerta em relação ao Gabeira já havia piscado quando ele foi
contratado pela Globo. O problema é que a Globo não contrata
ninguém sem brilho próprio, incapaz de trazer audiência, sem que
essa pessoa tenha afinidade com a ideologia global. E se uma grande
estrela, com luz própria, como Jô Soares, começa a destoar do seu
cântico medieval, começa a enfrentar problemas, como ver reduzido o
tempo de seu programa e, além disso, ser colocado de madrugada, com
visibilidade prejudicada.
A
Folha de São Paulo, para disfarçar um pouco sua inclinação
retrógrada, mantém um Jânio de Freitas como colunista. Em
quaisquer das empresas da Globo, não existe uma só pessoa
defendendo qualquer ato do governo, unanimidade de opiniões que, por
si só, expõe a tendenciosidade. Quando há contratação, a escolha
recai sobre um Lauro Jardim, que desmerece maiores considerações.
Como
não é faticamente possível que, dentre milhares de pessoas
contratadas pela Globo, uma só não seja simpatizante do governo,
não necessita ser gênio para, daí, concluir que há controle de
opiniões na empresa, que as opiniões obrigatoriamente devem
reproduzir o pensamento do patrão, passar pelo filtro Kamel ou
Bonner.
Como
dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra.
Mas,
o que isso tem a ver com Gabeira? Lamentavelmente, constato que Gabeira foi
cooptado pelo padrão global de opiniões e suspeito que sequer houve
necessidade de algum filtro. Sua coluna desse domingo, no jornal “O
Globo” é uma ode ao raciocínio tendencioso, tortuoso e
intelectualmente desonesto. É lamentável testemunhar uma
personalidade como Gabeira utilizar seu alcance político nas
comunicações para objetivos absolutamente escusos e contrários à
democracia, aliando-se ao discurso do falso moralista Fernando
Henrique Cardoso no tema “Dilma deve sair para o bem do Brasil”.
O
texto é iniciado com uma indagação: “Dilma cai ou não?”,
prossegue falando exclusivamente sobre a opinião que o próprio Gabeira desenvolveu em relação ao episódio noticiado sobre a acusação de um lobista, produzida no âmbito da Operação
Zelotes, de que um amigo de Lula teria solicitado dinheiro para o
filho de Lula.
Gabeira
não deixa margem para dúvida de que, em sua opinião, o lobista
estaria dizendo a verdade. Com essa conclusão simplista e subjetiva,
advinda de premissas equivocadas, o antigo rebelde conclui: Dilma
deve cair.
Indago
a Gabeira: ainda que o lobista tenha dito a verdade, Dilma deve cair
porque o filho de Lula recebeu vantagem indevida? É essa mesma a sua
opinião? Não necessita sequer existir um indício, por menor que
seja, de responsabilidade da própria Dilma pelo suposto malfeito?
Surpreendentemente,
Gabeira, que não é um imbecil ou um ignorante, possui a seguinte
opinião: se ele, que era deputado federal por um determinado
partido, tiver um amigo que durante o seu mandato, frequentava o seu
gabinete indiscriminadamente, e esse amigo solicitar e conseguir
ajuda de um lobista para a Maya Gabeira disputar um torneio de surf
em Portugal, então o colega de partido que atualmente é deputado
federal deve ser cassado.
O
raciocínio gabeiriano é simples assim: o sucessor responde pelo
sucedido, exatamente como ocorre com quem compra uma padaria que já
possua empregados.
Fico
me perguntando em que país o Gabeira aprendeu as lições que ora
dissemina sobre democracia. Terá sido nos países nos quais morou
durante o período em que a ditadura o expulsou do país, Suécia,
Itália ou Chile? Duvido muitíssimo.
Gabeira,
como seu ex-eleitor e ex-admirador, te aviso: em países nos quais
reina o estado de direito, a pena não pode passar da pessoa que
praticou a ação ou omissão delituosa. Se o estado de direito
estivesse vigorando no país nos anos sessenta, não teríamos a
ditadura e você não teria sido exilado, junto com tantas outras
pessoas. É inacreditável que você esteja advogando contra o estado
de direito.
Não
bastasse isso, Gabeira confessa que funda sua opinião distorcida nas
informações igualmente deformadas que são produzidas pela imprensa e pelos blogs. Duvido muito que tal opinião tenha sido construída a partir da análise de textos produzidos nos sites do jornalista Luis Nassif, do Miguel do Rosário, do Azenha em seu Viomundo, do Cafezinho, da Carta Capital do Mino Carta, do Diário do Centro do Mundo e de tantos outros.
Na verdade, ele nomeia apenas
um desses meios de comunicação brasileiro: a rádio CBN. A partir disso, já se presume o seu cardápio na aquisição de informação: revista Veja, jornal O Globo, Folha de São Paulo, Estadão, Isto É, Época e quetais.
Mesmo assim, fosse Gabeira um ignorante, que consome a notícia em seu estado bruto e sem
qualquer mastigação, estaria explicado. A CBN é da Globo, afinal,
e o padrão Kamel de informação global é bem conhecido e, de fato,
possui alto teor destrutivo nas mentes mais incautas. Mas, como já
dito, ele não é um inculto qualquer.
A acreditar no que diz Gabeira em sua coluna, ele entende que temos uma imprensa tão ética, tão
moralmente perfeita, tão comprometida com a lisura, que somente publica reportagens após exaustiva investigação, profunda e honesta, que basta uma manchete denunciar um crime que ele estará
comprovado, passemos à condenação. O Poder Judiciário, no pensamento gabeiriano, seria assim
dispensável: deixe por conta de investigação isenta patrocinada
pela revista Veja e pelo jornal O Globo.
Quem
duvida da honestidade dessas empresas?
O
problema fiscal da Globo, com sonegação bilionária e sumiço do procedimento na Receita Federal, que gerou a demissão de uma
servidora ocupante de um dos mais altos cargos da hierarquia
administrativa do Ministério da Fazenda, em nada reduz a conduta
ética e moral da platinada. O problema do envolvimento da revista
Veja com um criminoso em Brasília, que a auxiliava a produzir
manchetes negativas contra o governo, tampouco.
Gabeira
leu na Veja e no jornal “O Globo” e ouviu na rádio CBN que o
filho de Lula recebeu dinheiro de um lobista que ele não conhece a
pedido de um amigo do pai, então a lógica gabeiriana diz: Dilma é
culpada e deve cair.
O
problema dessa lógica de mico amestrado é que sequer isso ocorreu:
as manchetes não denunciaram crime algum, apenas afirmaram o que
supostamente teria sido relatado numa investigação: alguém teria dito (o lobista) que alguém
teria dito (o amigo de Lula) que alguém precisaria de auxílio financeiro (a nora de Lula) e que esse auxílio teria sido concedido. Até
o momento, é isso e absolutamente nada mais. Nenhuma prova além da
palavra do honestíssimo lobista, segundo a ótica gabeiriana. O lobista está buscando safar-se da
prisão através da delação premiada, mas isso tampouco compromete suas declarações, que são expressão da verdade, não é mesmo Gabeira?
E onde exatamente Gabeira vislumbra responsabilidade da Dilma a ponto de sugerir levianamente sua queda?
A única explicação racional para esse despautério de Gabeira é a total rendição intelectual. O antigo revolucionário aderiu ao pensamento reacionário global uniforme, talvez por necessidade de sobrevivência, talvez por estrelismo, talvez por mero ressentimento. Um detalhe curioso é que ele, no passado, foi perseguido pela Globo. Seria possível estar acometido da Síndrome de Estocolmo? Pode ser que sim, pode ser que não.
A única explicação racional para esse despautério de Gabeira é a total rendição intelectual. O antigo revolucionário aderiu ao pensamento reacionário global uniforme, talvez por necessidade de sobrevivência, talvez por estrelismo, talvez por mero ressentimento. Um detalhe curioso é que ele, no passado, foi perseguido pela Globo. Seria possível estar acometido da Síndrome de Estocolmo? Pode ser que sim, pode ser que não.
Entretanto,
não existe almoço grátis: ontem, dia 1º de novembro de 2015,
morreu o revolucionário Gabeira e seu corpo foi tomado pelo espírito
oportunista, alienador e emburrecedor que está incorporado em
parcela considerável dos homens públicos brasileiros, políticos
eleitos ou não.
Gabeira,
assim como Marina da Silva, sai da minha lista de pessoas políticas
honradas e merecedoras de admiração. Não por serem oposição,
como já esclareci acima, mas por terem se alinhado ao pior tipo de
oposição possível: a que não pretende obter qualquer benefício
para o país, mas somente para si própria.
Na
verdade não acho que isso faça diferença alguma para essas
pessoas. Contudo, para mim faz toda. Gabeira era uma espécie de
herói para mim. Sua capitulação ideológica é um desastre
psicológico que me acomete, pois isso simboliza que mesmo
as pessoas mais esclarecidas, mas cônscias das possibilidades sujas
da política menor, que é a política real, estão sendo cooptadas
pelo pensamento raso, pela análise rasteira, pela pouca preocupação
com a saúde da sociedade, desde que o fim, a retirada do PT do poder, justifique os meios, a ruptura com o bom senso e com a visão de política como busca do bem de todos e proteção aos desfavorecidos.
Gabeira,
em sua coluna dominical no maldito “O Globo”, tornou-me uma
pessoa um pouco mais cinzenta, um pouco menos esperançosa de vir a presenciar uma política mais sadia, mais voltada para o bem da população.
“Gabeirinha”
jamais perdoará Gabeira por isso.
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