segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Fernando Gabeira: a melancólica capitulação de um ex-rebelde



Era o segundo semestre de 1986. Tinha acabado de ingressar na Faculdade de Direito. A vida, e suas vicissitudes, forçaram-me iniciar a faculdade com uma idade em que muitos a completam. Tinha 23 anos e meio, completaria 24 em dezembro.
Durante o segundo grau, terminado quase quatro anos antes, fui ativista estudantil febril e entrei na faculdade com muito do gás político adquirido quando secundarista.
O início da faculdade coincidira com a eleição para governador do estado. A disputa tinha dois fortes concorrentes: Moreira Franco, pelo PMDB, e Darcy Ribeiro, pelo PDT. Correndo por fora, com chances quase nulas, estava o meu candidato, Fernando Gabeira, pelo PT.
Independentemente de Gabeira ser o candidato do PT, nutria uma forte simpatia por ele em virtude de sua história. Gabeira era lendário entre os adolescentes politizados de esquerda. Um cara que ousou desafiar o stablishment não somente político, como no aspecto dos costumes, pautados por uma moral extremamente conservadora, preconceituosa e obscurantista. Quem, com mais de cinquenta, não ouviu falar de Gabeira e sua famosa sunga de crochê?
Gabeira era a novidade verde no seio da política, não no sentido de falta de maturidade, mas de abordagem ecológica. Marina da Silva não passava de mera esperança política quando Gabeira já discutia uma agenda ambiental para o país junto com ativistas como Alfredo Sirkis e Carlos Minc, além de artistas famosos na época, como Lucélia Santos e Lúcia Veríssimo. Eles fundariam o Partido Verde naquele mesmo ano, em 1986.
Por sua história, votaria em Gabeira naquele ano mesmo que não fosse ele o candidato do PT, partido no qual, no ardor da época, eu depositava na urna meu voto, ainda de papel, de forma vinculada, de vereador a presidente da república.
Nesse primeiro semestre de faculdade, fiz uma campanha ardente pelo voto em Gabeira. No final, ele obteve pouco mais de oito por cento da votação, uma votação pouco expressiva, mas ainda assim um recorde para o PT no estado. O conservadorismo carioca venceu dois ótimos candidatos de esquerda, Gabeira e Darcy.
Esse episódio, no início da faculdade, me custou o apelido de “Gabeirinha” durante os cinco anos do curso de Direito. Ainda hoje, quando encontro antigos colegas de faculdade, sou chamado de “Gabeirinha”. Acho que, na verdade, poucos se lembram do meu nome.
Passadas as eleições, Gabeira deixou o PT e iniciou sua trajetória no Partido Verde. Minha admiração por ele em nada foi reduzida. Em 2002, retornou ao PT em curta passagem, saindo novamente por não aceitar a realpolitik conduzida por Lulinha Paz e Amor. O processo foi similar ao que levou à saída de Chico Alencar, Heloísa Helena e a própria Marina, pessoas pelas quais mantive o respeito e a admiração. Até a última eleição para deputado federal, por exemplo, meu candidato a deputado federal, no qual votava desde o PT, continuou a ser o Chico Alencar. Esse noivado antigo com o Chico começou a esfriar esse ano, por sua relutância em se colocar ao lado do governo Dilma contra esse congresso ultraconservador messiânico, mas isso é outra história.
Na última eleição, contudo, minha admiração por Marina da Silva se esvaiu por completo. A acreana se igualou ao que há de pior na política. Como é possível sair do PT atirando contra as imposições do fisiologismo praticado como meio de angariar a governabilidade e, contraditoriamente, se aliar a Aécio Neves no segundo turno? Qual a coerência disso? Em que exatamente a Marina vislumbra diferença ética entre os governos tucanos de Fernando Henrique Cardoso, Alckmin em São Paulo e do próprio Aécio Neves no governo de Minas Gerais? Onde as práticas diferem?
A única explicação, óbvia, é a vontade desmedida de poder, que se rende à opinião publicada com o objetivo de não perder votos na camada mais histérica dos eleitores brasileiros.
Quanto à Heloísa Helena, Chico Alencar e Gabeira, para ficar nesses exemplos, nada havia mudado, mesmo com a decisão da Heloísa de se filiar ao partido da Marina ou da já assinalada relutância do Chico Alencar em batalhar contra o obscurantismo.
Contudo, o sinal de alerta em relação ao Gabeira já havia piscado quando ele foi contratado pela Globo. O problema é que a Globo não contrata ninguém sem brilho próprio, incapaz de trazer audiência, sem que essa pessoa tenha afinidade com a ideologia global. E se uma grande estrela, com luz própria, como Jô Soares, começa a destoar do seu cântico medieval, começa a enfrentar problemas, como ver reduzido o tempo de seu programa e, além disso, ser colocado de madrugada, com visibilidade prejudicada.
A Folha de São Paulo, para disfarçar um pouco sua inclinação retrógrada, mantém um Jânio de Freitas como colunista. Em quaisquer das empresas da Globo, não existe uma só pessoa defendendo qualquer ato do governo, unanimidade de opiniões que, por si só, expõe a tendenciosidade. Quando há contratação, a escolha recai sobre um Lauro Jardim, que desmerece maiores considerações.
Como não é faticamente possível que, dentre milhares de pessoas contratadas pela Globo, uma só não seja simpatizante do governo, não necessita ser gênio para, daí, concluir que há controle de opiniões na empresa, que as opiniões obrigatoriamente devem reproduzir o pensamento do patrão, passar pelo filtro Kamel ou Bonner.
Como dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra.
Mas, o que isso tem a ver com Gabeira? Lamentavelmente, constato que Gabeira foi cooptado pelo padrão global de opiniões e suspeito que sequer houve necessidade de algum filtro. Sua coluna desse domingo, no jornal “O Globo” é uma ode ao raciocínio tendencioso, tortuoso e intelectualmente desonesto. É lamentável testemunhar uma personalidade como Gabeira utilizar seu alcance político nas comunicações para objetivos absolutamente escusos e contrários à democracia, aliando-se ao discurso do falso moralista Fernando Henrique Cardoso no tema “Dilma deve sair para o bem do Brasil”.
O texto é iniciado com uma indagação: “Dilma cai ou não?”, prossegue falando exclusivamente sobre a opinião que o próprio Gabeira desenvolveu em relação ao episódio noticiado sobre a acusação de um lobista, produzida no âmbito da Operação Zelotes, de que um amigo de Lula teria solicitado dinheiro para o filho de Lula.
Gabeira não deixa margem para dúvida de que, em sua opinião, o lobista estaria dizendo a verdade. Com essa conclusão simplista e subjetiva, advinda de premissas equivocadas, o antigo rebelde conclui: Dilma deve cair.
Indago a Gabeira: ainda que o lobista tenha dito a verdade, Dilma deve cair porque o filho de Lula recebeu vantagem indevida? É essa mesma a sua opinião? Não necessita sequer existir um indício, por menor que seja, de responsabilidade da própria Dilma pelo suposto malfeito?
Surpreendentemente, Gabeira, que não é um imbecil ou um ignorante, possui a seguinte opinião: se ele, que era deputado federal por um determinado partido, tiver um amigo que durante o seu mandato, frequentava o seu gabinete indiscriminadamente, e esse amigo solicitar e conseguir ajuda de um lobista para a Maya Gabeira disputar um torneio de surf em Portugal, então o colega de partido que atualmente é deputado federal deve ser cassado.
O raciocínio gabeiriano é simples assim: o sucessor responde pelo sucedido, exatamente como ocorre com quem compra uma padaria que já possua empregados.
Fico me perguntando em que país o Gabeira aprendeu as lições que ora dissemina sobre democracia. Terá sido nos países nos quais morou durante o período em que a ditadura o expulsou do país, Suécia, Itália ou Chile? Duvido muitíssimo.
Gabeira, como seu ex-eleitor e ex-admirador, te aviso: em países nos quais reina o estado de direito, a pena não pode passar da pessoa que praticou a ação ou omissão delituosa. Se o estado de direito estivesse vigorando no país nos anos sessenta, não teríamos a ditadura e você não teria sido exilado, junto com tantas outras pessoas. É inacreditável que você esteja advogando contra o estado de direito.
Não bastasse isso, Gabeira confessa que funda sua opinião distorcida nas informações igualmente deformadas que são produzidas pela imprensa e pelos blogs. Duvido muito que tal opinião tenha sido construída a partir da análise de textos produzidos nos sites do jornalista Luis Nassif, do Miguel do Rosário, do Azenha em seu Viomundo, do Cafezinho, da Carta Capital do Mino Carta, do Diário do Centro do Mundo e de tantos outros.
Na verdade, ele nomeia apenas um desses meios de comunicação brasileiro: a rádio CBN. A partir disso, já se presume o seu cardápio na aquisição de informação: revista Veja, jornal O Globo, Folha de São Paulo, Estadão, Isto É, Época e quetais.
Mesmo assim, fosse Gabeira um ignorante, que consome a notícia em seu estado bruto e sem qualquer mastigação, estaria explicado. A CBN é da Globo, afinal, e o padrão Kamel de informação global é bem conhecido e, de fato, possui alto teor destrutivo nas mentes mais incautas. Mas, como já dito, ele não é um inculto qualquer.
A acreditar no que diz Gabeira em sua coluna, ele entende que temos uma imprensa tão ética, tão moralmente perfeita, tão comprometida com a lisura, que somente publica reportagens após exaustiva investigação, profunda e honesta, que basta uma manchete denunciar um crime que ele estará comprovado, passemos à condenação. O Poder Judiciário, no pensamento gabeiriano, seria assim dispensável: deixe por conta de investigação isenta patrocinada pela revista Veja e pelo jornal O Globo.
Quem duvida da honestidade dessas empresas?
O problema fiscal da Globo, com sonegação bilionária e sumiço do procedimento na Receita Federal, que gerou a demissão de uma servidora ocupante de um dos mais altos cargos da hierarquia administrativa do Ministério da Fazenda, em nada reduz a conduta ética e moral da platinada. O problema do envolvimento da revista Veja com um criminoso em Brasília, que a auxiliava a produzir manchetes negativas contra o governo, tampouco.
Gabeira leu na Veja e no jornal “O Globo” e ouviu na rádio CBN que o filho de Lula recebeu dinheiro de um lobista que ele não conhece a pedido de um amigo do pai, então a lógica gabeiriana diz: Dilma é culpada e deve cair.
O problema dessa lógica de mico amestrado é que sequer isso ocorreu: as manchetes não denunciaram crime algum, apenas afirmaram o que supostamente teria sido relatado numa investigação: alguém teria dito (o lobista) que alguém teria dito (o amigo de Lula) que alguém precisaria de auxílio financeiro (a nora de Lula) e que esse auxílio teria sido concedido. Até o momento, é isso e absolutamente nada mais. Nenhuma prova além da palavra do honestíssimo lobista, segundo a ótica gabeiriana. O lobista está buscando safar-se da prisão através da delação premiada, mas isso tampouco compromete suas declarações, que são expressão da verdade, não é mesmo Gabeira?
E onde exatamente Gabeira vislumbra responsabilidade da Dilma a ponto de sugerir levianamente sua queda?

A única explicação racional para esse despautério de Gabeira é a total rendição intelectual. O antigo revolucionário aderiu ao pensamento reacionário global uniforme, talvez por necessidade de sobrevivência, talvez por estrelismo, talvez por mero ressentimento. Um detalhe curioso é que ele, no passado, foi perseguido pela Globo. Seria possível estar acometido da Síndrome de Estocolmo? Pode ser que sim, pode ser que não.
Entretanto, não existe almoço grátis: ontem, dia 1º de novembro de 2015, morreu o revolucionário Gabeira e seu corpo foi tomado pelo espírito oportunista, alienador e emburrecedor que está incorporado em parcela considerável dos homens públicos brasileiros, políticos eleitos ou não.
Gabeira, assim como Marina da Silva, sai da minha lista de pessoas políticas honradas e merecedoras de admiração. Não por serem oposição, como já esclareci acima, mas por terem se alinhado ao pior tipo de oposição possível: a que não pretende obter qualquer benefício para o país, mas somente para si própria.
Na verdade não acho que isso faça diferença alguma para essas pessoas. Contudo, para mim faz toda. Gabeira era uma espécie de herói para mim. Sua capitulação ideológica é um desastre psicológico que me acomete, pois isso simboliza que mesmo as pessoas mais esclarecidas, mas cônscias das possibilidades sujas da política menor, que é a política real, estão sendo cooptadas pelo pensamento raso, pela análise rasteira, pela pouca preocupação com a saúde da sociedade, desde que o fim, a retirada do PT do poder, justifique os meios, a ruptura com o bom senso e com a visão de política como busca do bem de todos e proteção aos desfavorecidos.
Gabeira, em sua coluna dominical no maldito “O Globo”, tornou-me uma pessoa um pouco mais cinzenta, um pouco menos esperançosa de vir a presenciar uma política mais sadia, mais voltada para o bem da população.
Gabeirinha” jamais perdoará Gabeira por isso.

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