sábado, 23 de fevereiro de 2013

O dilema de Cuba


Dia desses, conversava com uma pessoa amiga, a quem admiro pela inteligência e discernimento, sobre Cuba. Declarou ela que considerava Cuba um regime totalitarista opressor e que não acreditava na felicidade do povo cubano, tampouco no seu propalado eficaz sistema de saúde.
Retruquei que totalitarismo, segundo a definição da criadora do conceito, Hanna Arendt, não decorria da mera existência de uma ditadura, mas da existência de certas condições materiais no seio da sociedade, como a atomização dos indivíduos e a emergência de um sociedade de massas, sem identificação coletiva.

Disse, ainda, que qualquer análise sobre as condições sócio-econômicas nas quais vive o povo cubano estaria prejudicada pelo embargo econômico aplicado pelos Estados Unidos, com óbvios reflexos sobre a economia local.
Também afirmei que o sistema de saúde cubano, até onde percebia, era reconhecido não por seu avanço tecnológico, mas pela percepção de que um sistema arterial de saúde preventiva, os “médicos de família” com suporte em postos de saúde comunitários, seria mais eficaz como melhorador da saúde geral do povo do que grandes investimentos em pesquisa e tecnologia. Esse modelo foi e vem sendo copiado em diversas cidades do Brasil, com sucesso.
Como não éramos, os dois, experts em Cuba, faltou-nos, naquele momento, dados mais efetivos que nos possibilitasse pensar com mais profundidade sobre a questão cubana, de modo que ficamos empatados na discussão, cada um mantendo a sua posição inicial. Apenas concordamos no que concerne ao apreço à democracia e repulsa a qualquer ditadura, de esquerda ou de direita.
A discussão continuou a martelar em minha cabeça, de modo que, chegando em casa, corri para o Senhor das Informações, o sagrado Google. E obtive algumas informações interessantes.
Claro que, se nos escudarmos na afirmação de que toda informação sobre ditaduras é viciada, nada disso importará. Creio, porém, que não se pode olvidar que, em qualquer época, dificilmente se ocultam plenamente informações se elas são do conhecimento de muita gente, principalmente com as facilidades modernas de comunicação. No regime ditatorial mais obscuro, informações conhecidas do povo chegavam ao conhecimento do mundo. E existem regras multilaterais que facilitam o acesso de organismos internacionais a dados de qualquer país, de regime aberto ou não. Ademais, Cuba não é particularmente conhecido por ter um regime tão fechado no que tange ao acesso a informações, como, por exemplo, a Coréia do Norte ou a China.
Bem, vamos aos dados que obtive, todos eles oriundos de organismos internacionais insuspeitos, como a ONU e obtidos da internet, principalmente da Wikipédia, no verbete “Cuba”.
Cuba possui cerca de onze milhões de habitantes, taxa de alfabetização de 99,8%, taxa de mortalidade infantil inferior até mesmo à de alguns países desenvolvidos, expectativa de vida média de 77,64.
O índice de pobreza cubano foi o sexto menor em 2004 dentre os 102 países em desenvolvimento pesquisados (de acordo com a Pnud, organismo da ONU), e Cuba está entre os 83 países do mundo que ostentam um alto Índice de Desenvolvimento Humano (acima de 0,800). Em 2007, o IDH de Cuba foi 0,863 (51° lugar - 44º se ajustado pelo PNB)
Cuba apresenta baixíssima taxa de natalidade, com cerca de 9,88 nascimentos para cada mil habitantes (2006), sendo uma das mais baixas do hemisfério ocidental, com uma taxa de fecundidade de 1,43 filhos por mulher.
Em 2006, Cuba foi a única nação no mundo que recebeu a definição da WWF de desenvolvimento sustentável, por possuir “pegada ecológica” inferior a 1,8 hectares per capita.
79% das mulheres cubanas, número 33% maior do que o dos países ocidentais, utilizam métodos anticoncepcionais e todas tem direito irrestrito ao aborto legal, realizando-se cerca de 59 abortos para cada mil gestações (1996), para uma média de 35 no Caribe, 27 na América Latina em geral e 48 na Europa.
Embora logo após a revolução cubana a religião tenha sido abolida, declarando-se um estado ateu, a partir de 1992 a constituição cubana foi modificada, passando Cuba a declarar-se um estado laico, e hoje há liberdade religiosa. A religião católica, predominante, possui onze dioceses, 56 ordens de freiras e 24 ordens de sacerdotes, e, em janeiro de 1998, a ilha recebeu a visita do Papa João Paulo II.
Apesar de Cuba ser considerado um país de regime ditatorial, existindo somente um partido político, o Partido Comunista Cubano, e não existir eleição direta para cargos executivos, qualquer cidadão pode se filiar ao partido e concorrer à eleições democráticas para os cargos do legislativo. A cada dois anos e meio, as eleições parciais escolhem os delegados das "Assembleias Municipais do Poder Popular". Nas eleições gerais, realizadas a cada cinco anos, o povo vota para escolha de deputados nacionais e dos integrantes das assembleias provinciais. Não se tem notícia de manipulação das eleições.
Apesar do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos desde 1962, e segundo estimativas feitas pela própria agência americana CIA, Cuba obteve um crescimento econômico de 11,1% em 2006, com crescimento da produção industrial da ordem de 17,6%. Nesse mesmo ano, a renda per capita dos cubanos atingiu US$ 4.100. Acordos bilaterais com países europeus e da América Latina, bem como o crescimento do turismo, hoje sua principal fonte de divisas, explicam essa performance econômica.
Não existem analfabetos em Cuba. Segundo o relatório da CIA, denominado The World Factbook, de 2007, 99,8% da população cubana, acima de 15 anos, sabe ler e escrever.
E, segundo a Unesco, a partir do estudo dos resultados obtidos em testes de avaliação com estudantes latino-americanos, Cuba lidera, e com grande vantagem, os resultados obtidos pelas terceiras e quartas séries em matemática e compreensão de linguagem. Nas palavras do painel da Unesco, "Mesmo os integrantes do quartil mais baixo dentre os estudantes cubanos se desempenharam acima da média regional".
Em Cuba, os serviços de saúde são totalmente públicos e gratuitos. Segundo a Organização mundial da saúde (OMS), em 2005, a taxa de mortalidade infantil para crianças abaixo de cinco anos de idade foi de sete para cada mil nascidos, índice superado na América apenas pelo Canadá, onde o índice correspondia a seis crianças a cada mil nascidos. A expectativa de vida ao nascer em Cuba é de 75 anos para os homens e de 79 para as mulheres, índice semelhante ao dos Estados Unidos, que é de 75 e 80 respectivamente. A mortalidade adulta, de 15 a 60 anos, é em Cuba de 128 para homens e de 83 para mulheres, índices somente superados, na América, pelo Canadá e pela Costa Rica. Cuba é o país com a maior proporção demográfica de pessoas com mais de 100 anos. Proporcionalmente, Cuba possui cinco vezes mais centenários do que o Japão (dados do nona edição do Congresso sobre Longevidade Satisfatória).
Segundo a OMS, Cuba não registrou, em 2006, nenhum caso de difteria, sarampo, coqueluche, poliomielite, rubéola, rubéola CRS, tétano neonatal, ou febre amarela.
Segundo a UNICEF, em 2006, 99% da população cubana tomou a vacina BCG, 99% tomou a primeira dose da vacina tríplice DTP1 (difteria, tétano e coqueluche) e 89% tomaram sua terceira dose; 99% tomou a terceira dose da vacina contra poliomielite; 96% tomou a vacina contra sarampo e 89% contra a hepatite B.
Em 2009 a UNICEF reconhece que Cuba é o único país dentre todos da América Latina e Caribe que havia erradicado a desnutrição infantil. Tal informação é confirmada por relatório apresentado pela organização em 2011.
Em Cuba 85% das famílias são donas de suas próprias casas - portanto não pagam aluguel - e os 15% restante pagam de aluguel 1 ou 2 dólares mensais, computado em forma de amortização, pois ao final do pagamento do custo de moradia se converte em seu proprietário.
O esporte é uma paixão nacional de Cuba. O basebol é de longe o mais popular; outros esportes e passatempos incluem o basquete, voleibol, críquete e o atletismo. Cuba é uma força dominante no boxe amador, com desempenho consistente em grandes competições internacionais.
É inegável, contudo, que Cuba esteja dominada politicamente por uma ditadura. A Human Rights Watch acusa o governo de "reprimir quase todas as formas de dissidência política" e que "aos cubanos são sistematicamente negados direitos fundamentais de livre expressão, associação, reunião, privacidade, movimento e devido processo legal”.
Segundo a Anistia Internacional, existiam entre oitenta mil e oitenta mil e quinhentos prisioneiros políticos na ilha em 2006, número que, em 2007, foi reduzido para apenas 234 e, em 2008, minguou para 205. O grupo cubano de resistência política, denominado Comissão Cubana de Direitos Humanos, que é ilegal, mas tolerado pelo governo, afirmou que "O resultado óbvio é que segue a tendência, observada nos últimos vinte anos, da diminuição gradual de pessoas condenadas por motivações políticas". Há muito não mais se registram fuzilamentos políticos regulares em Cuba.
Ainda no quesito liberdade política, é bom ressaltar que, desde 14 de janeiro de 2013, os cubanos não mais precisam pedir permissão ao governo para fazer viagens ao exterior, bastando possuir passaporte.
E um último e interessante elemento a ser considerado: a felicidade do povo cubano. Existem duas organizações inglesas, a New Economics Foundation, ou simplesmente NEF, e a Friends of the Earth, esta relacionada ao meio ambiente, que desde 1981 investigam os níveis de bem-estar da população de diversos países. Elas criaram o índice de felicidade. Esse é o ranking dos países americanos mais felizes, segundo a NEF:
1 - Vanuatu - 68.2%
2- Colômbia - 67.2%
3- Costa Rica - 66.0%
4- República Dominicana - 64.5%
5- Panamá - 63.5%
6- Cuba - 61.9%
7- Honduras - 61.8%
8- Guatemala - 61.7%
9- El Salvador - 61.7%
10- São Vicente e Granadinas - 61.4%
O Brasil é 63º mais feliz, a Argentina o 47º, o Chile 51º, o Uruguai o 57º, os Estados Unidos o 150º. Os norte-americanos, por sinal, são tão infelizes quanto o Zimbabwe no último posto (178).
Aqui termina o jorro de informações. Delas, a não ser que se recuse fé aos dados, a outra conclusão não se pode chegar senão que Cuba é uma ditadura e necessita enquadrar-se no padrão democrático e devolver a liberdade política e individual de seus cidadãos. Porém, está muito longe de ser uma ditadura sanguinária e opressora de seu povo. A ilha é habitada por pessoas que, entre si, não guardam abissais disparidades sócio-econômicas, ou seja, há equidade no país. Embora ditatorial, o governo cria condições materiais dignas de existência, com a população tendo onde morar, com acesso a saúde e educação de qualidade.
Não há como comparar Cuba com Arábia Saudita e outros países teocráticos muçulmanos ou com a China, por exemplo, onde a opressão chega ao ponto da indignidade e sem a contrapartida de dar solução aos problemas sociais dos cidadãos.
Hanna Arendt somente classifica de totalitário o governo de país que exerça o terrorismo de Estado, ou seja, um regime de violência estatal que admita, inclusive, o extermínio de parte da população como meio de manutenção do poder. Além disso, é necessária a coexistência do autoritarismo, situação em que, aos cidadãos comuns, é vedada a participação nas decisões políticas do Estado. Em Cuba, contudo, como dito, existem eleições para o parlamento local e nacional, com qualquer cidadão podendo candidatar-se, ainda que através de partido único. Por fim, o totalitarismo culmina na emergência da atomização e de uma sociedade de massas. Nas palavras da livre pensadora:
Na verdade, as massas se desenvolvem a partir dos fragmentos de uma sociedade altamente atomizada, cuja estrutura competitiva, e a solidão daí resultante, só é limitada pela circunstância de pertencer a uma classe. A principal característica do homem de massa não é a brutalidade ou o atraso mental, mas o isolamento e ausência de relações sociais normais. Estas massas provêm de uma sociedade de classes cravadas de cisões que fortalecem o sentimento nacionalista: é pois natural que em seu desespero inicial se tenham inclinado por um nacionalismo particularmente violento...”(O sistema totalitário. Tradução francesa com base na edição de 1966, Paris, Editions du Seuil, 1972, p. 40).
A atomização da sociedade exige o terror incutido no espírito da pessoa, que busca refúgio em si mesma através da solidão, do isolamento. A partir daí, passa a não mais existir propriamente uma coletividade, um conjunto de pessoas vivendo em comum sob a argamassa da identidade de propósitos, mas uma massa de indivíduos, cada um buscando manter-se vivo, sobreviver, ainda que à custa do sacrifício do outro. Tal situação de desespero somente pode ocorrer em locais onde a ocorrência de longos aprisionamentos ou fuzilamentos sumários seja corriqueira e decorram do patrulhamento ideológico exercido por um número de pessoas cuja magnitude seja tamanha que ninguém saiba mais distinguir quem é amigo de quem é fiscal do estado, incutindo em todos o medo de todos.
Os dados concretos por mim assinalados permitem concluir que Cuba, embora uma ditadura, não é, ao menos atualmente, um estado totalitário. O número de prisões é pequeno e o de fuzilamentos praticamente acabou. Não se tem notícia de que os cubanos vigiam-se entre si como ocorria, por exemplo, na Rússia stalinista ou na Alemanha nazista. E é muito difícil imaginar uma sociedade com acesso a moradia, saúde e educação que viva infeliz e encapsulada em suas próprias casas, com medo de tudo e de todos. Pelo contrário, imagina-se que esse povo, bem provido nos maiores anseios de todo indivíduo (moradia, saúde, educação e segurança), seja, em geral, feliz. O índice de felicidade, que coloca os cubanos como o sexto povo mais feliz das Américas, confirma essa impressão.
Enfatizo que sou uma criatura democrática, intensamente favorável à maior amplitude possível das liberdades individuais, de modo que discordo do regime ditatorial de Cuba. A democracia deve prevalecer.
Contudo, na análise de Cuba não cabe maniqueísmo. Existem ótimas notícias vindas da ilha. Elas não podem ser simplesmente omitidas no discurso anti-castrista (que é idêntico ao antibolivarianista), que podemos tranquilamente alcunhar de Discurso Ricupero às avessas: “o que é bom a gente esconde e que é ruim a gente mostra”.

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