Dia
desses, conversava com uma pessoa amiga, a quem admiro pela
inteligência e discernimento, sobre Cuba. Declarou
ela que considerava Cuba um regime totalitarista opressor e que não
acreditava na felicidade do povo cubano, tampouco no seu propalado
eficaz sistema de saúde.
Retruquei
que totalitarismo, segundo a definição da criadora do conceito,
Hanna Arendt, não decorria da mera existência de uma ditadura, mas
da existência de certas condições materiais no seio da sociedade,
como a atomização dos indivíduos e a emergência de um sociedade
de massas, sem identificação coletiva.
Disse,
ainda, que qualquer análise sobre as condições sócio-econômicas
nas quais vive o povo cubano estaria prejudicada pelo embargo
econômico aplicado pelos Estados Unidos, com óbvios reflexos sobre
a economia local.
Também
afirmei que o sistema de saúde cubano, até onde percebia, era
reconhecido não por seu avanço tecnológico, mas pela percepção
de que um sistema arterial de saúde preventiva, os “médicos de
família” com suporte em postos de saúde comunitários, seria mais
eficaz como melhorador da saúde geral do povo do que grandes
investimentos em pesquisa e tecnologia. Esse modelo foi e vem sendo
copiado em diversas cidades do Brasil, com sucesso.
Como
não éramos, os dois, experts em Cuba, faltou-nos, naquele momento,
dados mais efetivos que nos possibilitasse pensar com mais
profundidade sobre a questão cubana, de modo que ficamos empatados
na discussão, cada um mantendo a sua posição inicial. Apenas
concordamos no que concerne ao apreço à democracia e repulsa a
qualquer ditadura, de esquerda ou de direita.
A
discussão continuou a martelar em minha cabeça, de modo que,
chegando em casa, corri para o Senhor das Informações, o sagrado
Google. E obtive algumas informações interessantes.
Claro
que, se nos escudarmos na afirmação de que toda informação sobre
ditaduras é viciada, nada disso importará. Creio, porém, que não
se pode olvidar que, em qualquer época, dificilmente se ocultam
plenamente informações se elas são do conhecimento de muita gente,
principalmente com as facilidades modernas de comunicação. No
regime ditatorial mais obscuro, informações conhecidas do povo
chegavam ao conhecimento do mundo. E existem regras multilaterais que
facilitam o acesso de organismos internacionais a dados de qualquer
país, de regime aberto ou não. Ademais, Cuba não é
particularmente conhecido por ter um regime tão fechado no que tange
ao acesso a informações, como, por exemplo, a Coréia do Norte ou a
China.
Bem,
vamos aos dados que obtive, todos eles oriundos de organismos
internacionais insuspeitos, como a ONU e obtidos da internet,
principalmente da Wikipédia, no verbete “Cuba”.
Cuba
possui cerca de onze milhões de habitantes, taxa de alfabetização
de 99,8%, taxa de mortalidade infantil inferior até mesmo à de
alguns países desenvolvidos, expectativa de vida média de 77,64.
O
índice de pobreza cubano foi o sexto menor em 2004 dentre os 102
países em desenvolvimento pesquisados (de acordo com a Pnud,
organismo da ONU), e Cuba está entre os 83 países do mundo que
ostentam um alto Índice de Desenvolvimento Humano (acima de 0,800).
Em 2007, o IDH de Cuba foi 0,863 (51° lugar - 44º se ajustado pelo
PNB)
Cuba
apresenta baixíssima taxa de natalidade, com cerca de 9,88
nascimentos para cada mil habitantes (2006), sendo uma das mais
baixas do hemisfério ocidental, com uma taxa de fecundidade de 1,43
filhos por mulher.
Em
2006, Cuba foi a única nação no mundo que recebeu a definição da
WWF de desenvolvimento sustentável, por possuir “pegada ecológica”
inferior a 1,8 hectares per capita.
79%
das mulheres cubanas, número 33% maior do que o dos países
ocidentais, utilizam métodos anticoncepcionais e todas tem direito
irrestrito ao aborto legal, realizando-se cerca de 59 abortos para
cada mil gestações (1996), para uma média de 35 no Caribe, 27 na
América Latina em geral e 48 na Europa.
Embora
logo após a revolução cubana a religião tenha sido abolida,
declarando-se um estado ateu, a partir de 1992 a constituição
cubana foi modificada, passando Cuba a declarar-se um estado laico, e
hoje há liberdade religiosa. A religião católica, predominante,
possui onze dioceses, 56 ordens de freiras e 24 ordens de sacerdotes,
e, em janeiro de 1998, a ilha recebeu a visita do Papa João Paulo
II.
Apesar
de Cuba ser considerado um país de regime ditatorial, existindo
somente um partido político, o Partido Comunista Cubano, e não
existir eleição direta para cargos executivos, qualquer cidadão
pode se filiar ao partido e concorrer à eleições democráticas
para os cargos do legislativo. A cada dois anos e meio, as eleições
parciais escolhem os delegados das "Assembleias Municipais do
Poder Popular". Nas eleições gerais, realizadas a cada cinco
anos, o povo vota para escolha de deputados nacionais e dos
integrantes das assembleias provinciais. Não se tem notícia de
manipulação das eleições.
Apesar
do embargo comercial imposto pelos Estados Unidos desde 1962, e
segundo estimativas feitas pela própria agência americana CIA, Cuba
obteve um crescimento econômico de 11,1% em 2006, com crescimento da
produção industrial da ordem de 17,6%. Nesse mesmo ano, a renda per
capita dos cubanos atingiu US$ 4.100. Acordos bilaterais com países
europeus e da América Latina, bem como o crescimento do turismo,
hoje sua principal fonte de divisas, explicam essa performance
econômica.
Não
existem analfabetos em Cuba. Segundo o relatório da CIA, denominado
The World Factbook, de 2007, 99,8% da população cubana, acima de 15
anos, sabe ler e escrever.
E,
segundo a Unesco, a partir do estudo dos resultados obtidos em testes
de avaliação com estudantes latino-americanos, Cuba lidera, e com
grande vantagem, os resultados obtidos pelas terceiras e quartas
séries em matemática e compreensão de linguagem. Nas palavras do
painel da Unesco, "Mesmo os integrantes do quartil mais baixo
dentre os estudantes cubanos se desempenharam acima da média
regional".
Em
Cuba, os serviços de saúde são totalmente públicos e gratuitos.
Segundo a Organização mundial da saúde (OMS), em 2005, a taxa de
mortalidade infantil para crianças abaixo de cinco anos de idade foi
de sete para cada mil nascidos, índice superado na América apenas
pelo Canadá, onde o índice correspondia a seis crianças a cada mil
nascidos. A expectativa de vida ao nascer em Cuba é de 75 anos para
os homens e de 79 para as mulheres, índice semelhante ao dos Estados
Unidos, que é de 75 e 80 respectivamente. A mortalidade adulta, de
15 a 60 anos, é em Cuba de 128 para homens e de 83 para mulheres,
índices somente superados, na América, pelo Canadá e pela Costa
Rica. Cuba é o país com a maior proporção demográfica de pessoas
com mais de 100 anos. Proporcionalmente, Cuba possui cinco vezes mais
centenários do que o Japão (dados do nona edição do Congresso
sobre Longevidade Satisfatória).
Segundo
a OMS, Cuba não registrou, em 2006, nenhum caso de difteria,
sarampo, coqueluche, poliomielite, rubéola, rubéola CRS, tétano
neonatal, ou febre amarela.
Segundo
a UNICEF, em 2006, 99% da população cubana tomou a vacina BCG, 99%
tomou a primeira dose da vacina tríplice DTP1 (difteria, tétano e
coqueluche) e 89% tomaram sua terceira dose; 99% tomou a terceira
dose da vacina contra poliomielite; 96% tomou a vacina contra sarampo
e 89% contra a hepatite B.
Em
2009 a UNICEF reconhece que Cuba é o único país dentre todos da
América Latina e Caribe que havia erradicado a desnutrição
infantil. Tal informação é confirmada por relatório apresentado
pela organização em 2011.
Em
Cuba 85% das famílias são donas de suas próprias casas - portanto
não pagam aluguel - e os 15% restante pagam de aluguel 1 ou 2
dólares mensais, computado em forma de amortização, pois ao final
do pagamento do custo de moradia se converte em seu proprietário.
O
esporte é uma paixão nacional de Cuba. O basebol é de longe o mais
popular; outros esportes e passatempos incluem o basquete, voleibol,
críquete e o atletismo. Cuba é uma força dominante no boxe amador,
com desempenho consistente em grandes competições internacionais.
É
inegável, contudo, que Cuba esteja dominada politicamente por uma
ditadura. A Human Rights Watch acusa o governo de "reprimir
quase todas as formas de dissidência política" e que "aos
cubanos são sistematicamente negados direitos fundamentais de livre
expressão, associação, reunião, privacidade, movimento e devido
processo legal”.
Segundo
a Anistia Internacional, existiam entre oitenta mil e oitenta mil e
quinhentos prisioneiros políticos na ilha em 2006, número que, em
2007, foi reduzido para apenas 234 e, em 2008, minguou para 205. O
grupo cubano de resistência política, denominado Comissão Cubana
de Direitos Humanos, que é ilegal, mas tolerado pelo governo,
afirmou que "O resultado óbvio é que segue a tendência,
observada nos últimos vinte anos, da diminuição gradual de pessoas
condenadas por motivações políticas". Há muito não mais se
registram fuzilamentos políticos regulares em Cuba.
Ainda
no quesito liberdade política, é bom ressaltar que, desde 14 de
janeiro de 2013, os cubanos não mais precisam pedir permissão ao
governo para fazer viagens ao exterior, bastando possuir passaporte.
E
um último e interessante elemento a ser considerado: a felicidade do
povo cubano. Existem duas organizações inglesas, a New Economics
Foundation, ou simplesmente NEF, e a Friends of the Earth, esta
relacionada ao meio ambiente, que desde 1981 investigam os níveis de
bem-estar da população de diversos países. Elas criaram o índice
de felicidade. Esse é o ranking dos países americanos mais felizes,
segundo a NEF:
1 - Vanuatu - 68.2%
2- Colômbia - 67.2%
3- Costa Rica - 66.0%
4- República
Dominicana - 64.5%
5- Panamá - 63.5%
6- Cuba - 61.9%
7- Honduras - 61.8%
8- Guatemala - 61.7%
9- El Salvador - 61.7%
10- São Vicente e
Granadinas - 61.4%
O
Brasil é 63º mais feliz, a Argentina o 47º, o Chile 51º, o
Uruguai o 57º, os Estados Unidos o 150º. Os norte-americanos, por
sinal, são tão infelizes quanto o Zimbabwe no último posto (178).
Aqui
termina o jorro de informações. Delas, a não ser que se recuse fé
aos dados, a outra conclusão não se pode chegar senão que Cuba é
uma ditadura e necessita enquadrar-se no padrão democrático e
devolver a liberdade política e individual de seus cidadãos. Porém,
está muito longe de ser uma ditadura sanguinária e opressora de seu
povo. A ilha é habitada por pessoas que, entre si, não guardam
abissais disparidades sócio-econômicas, ou seja, há equidade no
país. Embora ditatorial, o governo cria condições materiais dignas
de existência, com a população tendo onde morar, com acesso a
saúde e educação de qualidade.
Não
há como comparar Cuba com Arábia Saudita e outros países
teocráticos muçulmanos ou com a China, por exemplo, onde a opressão
chega ao ponto da indignidade e sem a contrapartida de dar solução
aos problemas sociais dos cidadãos.
Hanna
Arendt somente classifica de totalitário o governo de país que
exerça o terrorismo de Estado, ou seja, um regime de violência
estatal que admita, inclusive, o extermínio de parte da população
como meio de manutenção do poder. Além disso, é necessária a
coexistência do autoritarismo, situação em que, aos cidadãos
comuns, é vedada a participação nas decisões políticas do
Estado. Em Cuba, contudo, como dito, existem eleições para o
parlamento local e nacional, com qualquer cidadão podendo
candidatar-se, ainda que através de partido único. Por fim, o
totalitarismo culmina na emergência da atomização e de uma
sociedade de massas. Nas palavras da livre pensadora:
“Na
verdade, as massas se desenvolvem a partir dos fragmentos de uma
sociedade altamente atomizada, cuja estrutura competitiva, e a
solidão daí resultante, só é limitada pela circunstância de
pertencer a uma classe. A principal característica do homem de massa
não é a brutalidade ou o atraso mental, mas o isolamento e ausência
de relações sociais normais. Estas massas provêm de uma sociedade
de classes cravadas de cisões que fortalecem o sentimento
nacionalista: é pois natural que em seu desespero inicial se tenham
inclinado por um nacionalismo particularmente violento...”(O
sistema totalitário. Tradução francesa com base na edição de
1966, Paris, Editions du Seuil, 1972, p. 40).
A
atomização da sociedade exige o terror incutido no espírito da
pessoa, que busca refúgio em si mesma através da solidão, do
isolamento. A partir daí, passa a não mais existir propriamente uma
coletividade, um conjunto de pessoas vivendo em comum sob a argamassa
da identidade de propósitos, mas uma massa de indivíduos, cada um
buscando manter-se vivo, sobreviver, ainda que à custa do sacrifício
do outro. Tal situação de desespero somente pode ocorrer em locais
onde a ocorrência de longos aprisionamentos ou fuzilamentos sumários
seja corriqueira e decorram do patrulhamento ideológico exercido por
um número de pessoas cuja magnitude seja tamanha que ninguém saiba
mais distinguir quem é amigo de quem é fiscal do estado, incutindo
em todos o medo de todos.
Os
dados concretos por mim assinalados permitem concluir que Cuba,
embora uma ditadura, não é, ao menos atualmente, um estado
totalitário. O número de prisões é pequeno e o de fuzilamentos
praticamente acabou. Não se tem notícia de que os cubanos vigiam-se
entre si como ocorria, por exemplo, na Rússia stalinista ou na
Alemanha nazista. E é muito difícil imaginar uma sociedade com
acesso a moradia, saúde e educação que viva infeliz e encapsulada
em suas próprias casas, com medo de tudo e de todos. Pelo contrário,
imagina-se que esse povo, bem provido nos maiores anseios de todo
indivíduo (moradia, saúde, educação e segurança), seja, em
geral, feliz. O índice de felicidade, que coloca os cubanos como o
sexto povo mais feliz das Américas, confirma essa impressão.
Enfatizo
que sou uma criatura democrática, intensamente favorável à maior
amplitude possível das liberdades individuais, de modo que discordo
do regime ditatorial de Cuba. A democracia deve prevalecer.
Contudo,
na análise de Cuba não cabe maniqueísmo. Existem ótimas notícias
vindas da ilha. Elas não podem ser simplesmente omitidas no discurso
anti-castrista (que é idêntico ao antibolivarianista), que podemos
tranquilamente alcunhar de Discurso Ricupero às avessas: “o que é
bom a gente esconde e que é ruim a gente mostra”.
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