Atualmente
o tema que mais tem suscitado acaloradas discussões e divergências
na política brasileira vem traduzido na palavra corrupção. Um dos
polos desse debate utiliza o discurso moralista da corrupção para
desacreditar o outro lado, que, por sua vez, devolve a acusação sob
a assertiva de que, no Brasil, nenhum partido detém o monopólio da
corrupção ou da honradez. O questionamento que se impõe, porém, é
se está bem transparente, para ambas as partes, o tema a partir do
qual se digladiam. Afinal, o que é exatamente a corrupção?
Semanticamente
e sob um prisma axiológico, a palavra corrupção busca simbolizar a
perda de valor, de utilidade ou de sentido de alguma coisa pela ação
deletéria de outra. Corrupção é, assim, a degradação, o
apodrecimento, a putrefação de alguma coisa por efeito do mal, da
vilania. Nessa acepção, pode-se entender como mal a oxidação que
torna apodrecida uma fruta até então madura. A oxidação
corruptora transforma aquilo que era alimento numa fruta corrompida.
Contudo,
não é esse o tipo de corrupção que envolve o acalorado debate
político brasileiro atualmente. Trata-se da corrupção entendida
como o desvio ético praticado por algumas pessoas para, em
detrimento do interesse público, satisfazer algum interesse privado.
Nesse ponto é preciso deixar claro que a corrupção sempre envolve,
no mínimo, dois protagonistas: o corrupto e o corruptor. O primeiro
é a pessoa que detém parcela do poder público e que irá receber
alguma vantagem, para si ou para outrem, em troca de favorecer algum
interesse de um terceiro, que é o corruptor.
Costuma-se
denominar de corrupta a pessoa que, sendo guardiã da coisa pública,
aceita a corrupção. Porém, o que de fato foi corrompido foi o
cargo público que ocupa, degradado e deturpado pela ação ilícita
do corruptor. Por esse motivo, o mal da corrupção atinge, de
verdade, não o corrupto, mas a res publica, que assim torna-se
corrompida, apodrecida. Disso se pode concluir que, independentemente
da tipologia penal de corrupção ativa e passiva, sob um prisma
meramente sociológico corrupto e corruptor praticam a corrupção em
sua forma ativa, pois ambos põem em andamento uma ação que visa
deturpar, deformar, o sentido da coisa pública com o objetivo
doloso, desejado, de alcançar um acréscimo patrimonial. Sendo
assim, num sentido mais lato, sob o enfoque do efeito sobre o bem
público, ambos são corruptores do bem público que sofre o seu
ataque, bem esse que é o corrupto, no sentido de corrompido.
E,
se aprofundarmos o efeito maléfico da ação privada sobre o
interesse público, torna-se evidente que toda ação que é
praticada em prejuízo do patrimônio da coletividade é uma forma de
corrupção, ainda que praticada sob a égide da lei. O nepotismo
cruzado é uma forma de corrupção, assim como o fisiologismo e o
clientelismo, todas práticas absolutamente comuns, no cenário
político brasileiro, de apropriação da coisa pública. Essas
formas, agregadas pela corrupção mais comumente conhecida e
combatida, de pagar um servidor público para obter vantagem
indevida, são práticas rotineiras sabidas e repudiadas
veementemente, ao menos na oralidade.
Há,
contudo, um outro tipo de corrupção, talvez mais daninha do que as
tradicionais, que passam ao largo de um enfrentamento mais sério no
debate público.
Sobre
essas, o professor Ladislau Dowbor, economista e professor titular no
departamento de pós-graduação da PUC-SP, em seu pequeno livro “Os
estranhos caminhos do nosso dinheiro” (1), enfatiza que a ação
dos diversos interesses privados que atuam direta e indiretamente na
política, principalmente pela via do financiamento das campanhas
eleitorais, criando bancadas próprias de parlamentares para o fim de
proteger seus interesses, constitui uma forma institucionalizada de
corrupção. Assim, por exemplo, projetos de lei contrários aos
objetivos comerciais das empreiteiras são impedidos de avançar pela
bancada das empreiteiras, que, por outro lado, toma a iniciativa de
criar leis que beneficiem esse setor ainda que com prejuízo para a
sociedade, como, p.ex., reduzindo a taxação do faturamento das
empresas do setor. O mesmo ocorre em relação as tantas outras
bancadas parlamentares corporativas, como a dos ruralistas, dos
evangélicos, dos banqueiros, das montadores e outras. Nas palavras
de Dowbor, “instala-se o clima de 'negócios' ”, com “apropriação
privada do dinheiro público” e “deformação das prioridades nos
investimentos”, chegando-se a “somas extremamente elevadas, que
resultam na corrupção da própria legalidade”.
Essa
é a corrupção privada que se imiscui, travestida de legalidade, na
coisa pública de forma avassaladora.
Existe,
porém, a corrupção que opera exclusivamente no âmbito interno da
gestão da coisa pública, também sob a aparência da legalidade,
que é a manipulação da legislação em favor de alguns grupos de
pessoas com função pública. Ocorre quando as ações benéficas e
necessárias à população deixam de ser praticadas por aquele que
deveria fazê-lo, por conta de interesse pessoais. Como se sabe, um
dos apanágios do exercício da função pública é a impessoalidade
que deve pautar as ações de quem detém a função pública.
Segundo esse princípio, a ação do servidor público (lato sensu)
somente deve visar o interesse público, ainda que de alguma forma o
“bem da vida” pretendido pela coletividade traga pessoalmente
algum prejuízo. Assim, mesmo que a lei autorize e legitime uma ação
diferente, há um imperativo ético-moral do servidor público a ser
observado que veda sua atuação de forma contrária. Por exemplo,
evidenciando-se uma necessidade orçamentária, o administrador
público não pode deixar de determinar uma elevação tributária
somente pelo fato de que o aumento de imposto atingirá seus lucros
ou rendas. Num outro exemplo, age contra o interesse público o
político eleito que aumenta o próprio mandato, ainda que através
de lei, porque o povo, que detém o poder de fato, somente outorgou
mandato, pelo voto, para um período certo. Admitir que a
representação pelo voto estenda a legitimidade de sua representação
política até o ponto do elastecimento do próprio mandato, por um
dia que seja, é, logicamente, similar a admitir o elastecimento para
a vitaliciedade.
Num
exemplo atual, é de se indagar se a tentativa de obstrução à
regulamentação da participação popular na determinação das
prioridades públicas, através dos Conselhos Populares, não
constitui um ato de corrupção legal, através do qual o
representante violenta o direito do representado.
Esse
arranjo político de legitimar o estupro da coisa pública por meio
da legalização da iniquidade e do desvio do patrimônio público é
destacado por Dowbor (2) através de uma citação ao Tax Justice
Network que adverte para o fato de ser essa uma prática
absolutamente comum, que é possibilitada e facilitada pela
circunstância de que corrompidos e corruptores buscam posições de
poder para fazê-lo. Nossos corruptos e corruptores oficiais e
normativamente legitimados, portanto, são a versão contemporânea
dos corsários contratados pela rainha. A diferença é que agora
assaltam os porões dos navios do próprio reino que os contrata.
É
certo que o povo, de um modo muito firme, é contrário a todo tipo
de corrupção e costuma identificar esse ou aquele político como
corrupto, tecendo críticas ferozes contra o tal meliante. Isso é
salutar. Todavia, os políticos identificados como corruptos não são
seres de origem extraterrestre. Eles nascem aqui mesmo, nesse pequeno
planeta chamado Terra, em seus respectivos países, sob cuja cultura
é forjado o tipo de corrupção e o modo com que será realizada.
Nenhum
país e nenhuma classe política do mundo está imune à corrupção.
Quanto
aos nossos corruptos, nascidos no Brasil, são forjados da mesma
têmpera que forja o povo que representam. Os valores que conduzem à
corrupção do político são os que são admitidos na sociedade com
frouxidão moral.
Por
exemplo, o pai que quer dar uma caixinha ao policial para o jovem
filho não ser autuado por falta de habilitação ou por dirigir
embriagado e produz o sermão de que “a polícia devia estar
subindo morro atrás de bandido e não de pessoas do bem”, traz em
si a arrogância e o caráter preconceituoso e discriminatório que
embute a semente da corrupção política.
Quando
a pressa faz o motorista andar pela contramão, furando a fila do
trânsito na estrada de ida ou de volta da viagem, esse impulso de
sobreposição da vontade individual sobre a dos demais motoristas é
representativo da mesma inclinação sentida pelo político que não
vê mal algum em se favorecer primeiro para depois pensar na
coletividade.
A
pessoa que recebe um troco a mais e não devolve ao caixa do comércio
age exatamente da mesma maneira que o político que se apropria de
algo que não é seu.
Enfim,
a corrupção não é um apanágio do político, mas da cultura
humana do egocentrismo. A corrupção nasce no seio da sociedade e é
transplantada para o ambiente político e para qualquer outro
ambiente em que alguém possua uma posição de poder sobre as
demais, inclusive nas igrejas, templos erigidos em honra da virtude.
Isso
não significa que devemos relaxar e aceitar a corrupção
passivamente, de forma nenhuma. Assim como a habitualidade do
homicídio não implica concordância a autorizar sua
descriminalização, a corrupção deve continuar a ser combatida até
que atinja um ponto mínimo em que seja suportável e cause o menor
prejuízo possível.
Nunca
deixará de existir, mas pode ser bastante mitigada. Deve-se pontuar,
todavia, que a fulanização da corrupção não é saudável para o
seu combate.
Tratando-se
de mazela que se encontra disseminada no próprio tecido social que
dá origem à política, a corrupção integra a estrutura do próprio
poder e é independente da coloração do governo que se encontrar
eventualmente no poder.
Quando
se afirma que toda a corrupção do Brasil é responsabilidade de um
único partido, joga-se uma cortina de fumaça sobre o assunto e é
deixado de lado a adoção de medidas efetivamente eficientes para o
controle dessa mazela. Eleito um novo governo sob o pálio do combate
à corrupção, ele estará comprometido com essa bandeira. Ao se
defrontar com uma corrupção resiliente, pois esta resiliência é
de sua natureza, não será capaz de produzir o resultado ansiado
pelos eleitores, abrindo as portas para a possibilidade de maquiagem
que garanta a aparência de vitória e a possibilidade de novo
sucesso eleitoral. Isso será feito a partir da cessação das
investigações, da fiscalização e do “engavetamento” dos
poucos casos que surgirem, já que a corrupção não cessará por
rezas e milagres.
Por
outro lado, um governo que resolva enfrentar esse grande problema e
que não invista pesadamente em divulgação institucional desse
combate, a fim de transformar o cidadão em um companheiro nessa
frente de batalha, sofrerá a marca provocada pelas repercussões. O
combate à corrupção evidencia a corrupção, coloca-a nas
manchetes e traz a falsa aparência de que o número de casos
aumentou exponencialmente.
Um
outro aspecto a ser observado é que a corrupção também deriva do
sistema político atual, cuja fragilidade obriga todo governante, de
prefeito a presidente da república, a compor uma base parlamentar
que envolva uma multiplicidade de partidos, como meio de alcançar a
chamada “governabilidade”. Eleito o governante, é obrigado a
distribuir cargos a roldão para pacificar sua base de apoio. Nessa
barafunda de nomeações fisiológicas, é inescapável a assunção
de corruptos ao poder. Nesse caso, a nomeação de um corrupto não
necessariamente guarda relação com a honradez de quem o nomeou. É
possível que um subordinado seja corrupto em conluio com seu chefe.
Porém, é muito comum que o subordinado seja corrupto apesar de seu
chefe. Nesse último caso, se o superior hierárquico, tomando
ciência do ilícito, vem a adotar as medidas disciplinares que a lei
permite, seu papel de combate à corrupção estará sendo
devidamente exercido.
O
governo Itamar Franco, com seu Ministro da Fazenda, Fernando Henrique
Cardoso, enfrentou e venceu a principal mazela do país: a inflação
até então incontrolável. O governo Lula enfrentou e venceu o
segundo maior problema do Brasil: a miséria absoluta e a pobreza
extrema. Ao governo Dilma parece ter sido destinado o combate ao
terceiro maior problema do Brasil: a corrupção em todos os seus
aspectos, lícitos e ilícitos.
Esse
enfrentamento passa inexoravelmente por uma profunda reforma política
que imperiosamente deverá eliminar por completo a possibilidade de
financiamento empresarial de campanhas políticas e eliminar ou
reduzir ao máximo o financiamento individual. Esse financiamento de
campanhas pelas empresas ou particulares, se em valor alto, é o
nascedouro e o fomentador de quase a totalidade da corrupção
brasileira, tanto a tipificada como ilegal, como a que é aceita pela
norma.
No
Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo, a promiscuidade aguda
entre as corporações e a política é a expressão atual da
banalidade do mal.
A
fulanização, dando origem às patéticas marchas pelo impeachment
de uma presidente recém-eleita, parece fazer o jogo jogado daqueles
que se aproveitam da ingenuidade coletiva. Autêntico diversionismo,
inclusive com a participação de ex-cantores desempregados para
animar o movimento, serve para distrair e ajuda a manter as coisas
exatamente como estão.
(1)
Dowbor, Ladislau - São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013
(Coleção O que saber).
(2)
idem.
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