O
presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski,
manifestando-se sobre o caso do juiz que deu voz de prisão à agente
da Lei Seca, disse que "o juiz é um homem comum. É um cidadão
como outro qualquer".
Certamente
existem juízes, desembargadores e ministros que se mostram
despreocupados em realizar ações que envergonham a magistratura
brasileira, talvez em número maior do que seria adequado. O mesmo
elemento que justifica a criminalidade em geral, justifica esse
despudor: a sensação de impunidade, neste caso provocada pelo
corporativismo.
Cientes
da improbabilidade de serem punidos ou, nos raros casos em que isso
ocorre, de que sua maior punição é a aposentadoria compulsória,
provavelmente a melhor punição do mundo (a conferir), essa parcela
da magistratura pouco afeita à ética delira com a ideia de que são
superiores aos cidadãos, os mesmos que pagam seus salários.
Consideram-se acima do comum do povo. Imaginam-se deuses à salvo do
alcance da lei.
Como
tudo que é ruim pode ficar pior, esse quadro é agravado pela
existência de juízes que, ainda mais delirantes, confirmam essa
superioridade divina por sentença ou acórdão.
Há,
porém, o outro lado da moeda: existem juízes que orgulham a
magistratura.
Apenas
como exemplo desse lado virtuoso da magistratura, há o caso de um
juiz que julgou improcedente a ação de um colega que queria porque
queria ser chamado de "doutor" pelo porteiro de seu prédio.
Ficou irado porque o porteiro o chamava de "senhor",
exatamente como tratava os demais condôminos. Destaco que isso não
é piada, é fato. Aconteceu aqui em Niterói, no Rio de Janeiro.
O
juiz que indeferiu tal ridícula pretensão merece aplausos,
primeiro, por não sucumbir ao corporativismo, segundo, porque sua
sentença confirma o que tem por dentro: humildade. Esse juiz
certamente não estava nem aí para ser chamado de "doutor",
caso contrário não teria decidido como decidiu. Vale lembrar que a
imensa maioria dos "doutores" do Brasil são fraudadores,
já que admitem ser assim chamados apesar de jamais terem enfrentado
uma banca de doutorado para defender qualquer tese.
O
mesmo não se pode dizer dos juízes que julgaram o caso da agente da
Lei Seca. Consideraram normal um seu colega dar voz de prisão à
agente que determinou a apreensão de seu carro, "só"
porque o juiz estava sem habilitação e o carro não portava placas.
Segundos os meritíssimos, não houve dano moral nesse abuso de
autoridade. Aliás, houve sim, mas foi praticado pela agente que
ousou dizer que ele era juiz, mas não era Deus. Deus deve ter dado
pulos lá no céu: o monoteísmo corre perigo, a concorrência
arrisca aumentar.
Sempre
que uma pessoa comum enfrenta um poderoso é imediatamente tachado de
"abusado". Nesse sentido, o porteiro que não chama de
"doutor" é abusado e a agente da Lei Seca foi condenada
por ser abusada. Parabéns para o porteiro e parabéns para a agente.
Precisamos de mais gente abusada nesse país. São os abusados que
colocam as coisas nos seus devidos lugares.
Lewandowski
é também um desses juízes que dão orgulho. Já havia demonstrado
sua integridade, moral e intelectual, quando do julgamento do
mensalão, recusando-se a ceder à pressão da mídia.
Agora
confirma sua sabedoria ao afirmar que juízes são pessoas comuns.
Com essa afirmação, Lewandowski chama a magistratura à razão e dá
um tapa de pelica em decisões judiciais que dão a entender que a
pessoa comum tem que usar de salamaleques para lidar com juízes,
como se fossem faraós ou divindades intocáveis, acima de crítica,
do cumprimento da lei e da fiscalização. O povo já havia
sinalizado, com a campanha da vaquinha em favor da agente da Lei
Seca, discordar veementemente desse tipo de entendimento. A justiça
oficial foi substituída pela justiça do povo, que resolveu
homenagear quem de fato representa a moralidade pública: a agente da
Lei Seca.
É
sempre importante lembrar que formas de tratamento constituem vias de
mão dupla. Quando alguém chama o outro de "senhor" está
indicando que quer ser tratado por senhor. Se utiliza o informal
"você", está autorizando idêntico tratamento para si
mesmo. O juiz merece o tratamento de meritíssimo no meio jurídico e
exclusivamente no Tribunal. O senador é excelência no parlamento.
Aliás, o tratamento "excelência" é na verdade uma
excrescência, uma forma de tratamento que deveria ser extinta, mesmo
no parlamento e nas cortes. Ninguém é excelente e não existem
santos.
Fora
do ambiente institucional, a forma de tratamento é a social. Será
senhor ou você, conforme for acertado entre os interlocutores.
Da
mesma forma, pouco importa a posição social da pessoa ou o cargo
que ocupa, se ela se acha no direito de ser rude com o interlocutor,
está autorizando receber reciprocidade.
Nenhuma
autoridade pública merece tratamento diferenciado em relação
àquele que é dispensado ao povo. A Constituição Federal proclama
a igualdade entre os brasileiros. Um juiz, mais do que qualquer
outro, deveria fazer prevalecer o mandamento constitucional.
Primeiro
o CNJ se manifestou, aparentemente objetivando dar um andamento
correto ao caso. Agora, um ministro do STF se põe ao lado do bom
senso. É um alívio saber que existem pessoas comuns, humildes e
sábios na magistratura brasileira. Nem tudo está perdido.
E
que todos saibam, Lewandowski fixou nova jurisprudência no Supremo:
juiz não é deus.
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