domingo, 22 de fevereiro de 2015

O inimigo comum imaginário criado pelo diabo que não existe


Charge de Ivan Cabral
Há uma máxima, atribuída ao poeta francês Charles Baudelaire, segundo a qual o maior truque realizado pelo diabo foi convencer a todos de sua própria inexistência. Grande esperteza. O diabo sabe que o povo estará pronto para adotar uma atitude passiva e se acomodar quando restar convencido de que determinado mal é fruto de lenda urbana, de teorias da conspiração ou da histeria de poucos. Nada como a inação popular para quem deseja o poder. Em terra de apáticos, o mal ativo será rei.
O diabo, porém, é ainda mais maligno. Não satisfeito em, num passe de alquimia, transmutar uma existência concreta, a sua própria, em delírio de poucos para, com isso, se tornar invisível, a liberdade da invisibilidade lhe proporciona realizar outra façanha alquímica extraordinária: metamorfosear uma inexistência, o éter, em medo coletivo palpável. Isso porque o diabo sabe que a melhor maneira de conquistar, manter e ampliar o seu poder é através da criação de um inimigo comum que, unindo o povo num propósito, direcione a energia coletiva para o objetivo desejado pelo mal.
O diabo, quando encarnado em Hitler, utilizou essas duas ferramentas: primeiro, para sua ascensão na política alemã, quando a propaganda dissipava os possíveis medos decorrentes de sua personalidade maligna então já perfeitamente identificável, e, segundo, quando, já alçado ao poder, criou dois grandes inimigos comuns dos alemães: os comunistas e os judeus.
Contra os comunistas, Hitler utilizou-se da chamada Operação de Bandeira Falsa (False Flag), incendiando o Reichstag (Parlamento Alemão) e culpando os comunistas pelo evento, com o apoio da imprensa alemã da época. Com base no episódio, Hitler conseguiu aprovar uma legislação com inclinação totalitarista, suspendendo ou mitigando as liberdades civis do povo alemão.
Com relação aos judeus, Hitler disseminou a ideia de que a derrocada alemã na 1ª Guerra e na crise econômica da época era o resultado de uma grande conspiração internacional de judeus ricos, banqueiros e industriais.
Mais contemporaneamente, pensadores sérios sustentam que o diabo, agora encarnado em George W. Bush, realizou uma nova Operação de Bandeira Falsa: o atentado de 11 de setembro, contra as torres gêmeas americanas. Segundo tais analistas, o suposto atentado teria sido idealizado pela inteligência americana (CIA), com o beneplácito da Casa Branca, e realizado pelos próprios militares americanos.
Pode ser, pode não ser, mas é fato que, a partir do evento, foram criados o Ato Patriota e um órgão ainda mais maligno do que a CIA, a NSA (National Security Agency). A partir do Ato Patriota, pessoas, americanas ou não, podem ser presas sem motivação, por tempo indeterminado, sem direito a advogado, sem direito a habeas corpus e sem direito a julgamento, bastando que sejam classificados como suspeitos de prática ou colaboração com o terrorismo. Além disso, espalhou-se a informação de que a inteligência americana é capaz de monitorar amplamente as conversas telefônicas e as informações que transitam pela internet, inclusive e-mails, não somente de pessoas comuns, mas de autoridades poderosas, como os dos presidentes de países como a Alemanha, França, Argentina e Brasil.
Sabe-se que o totalitarismo se alimenta do medo coletivo de violação do sigilo sobre as crenças e opiniões individuais. Nesse sentido, não há diferença alguma entre um suposto direito estatal americano de defesa contra o terrorismo e o direito que os soviéticos possuíam de proteger o interesse comunista ao exigir que todos vigiassem e denunciassem uns aos outros, como um eficiente aparato de disseminação do medo coletivo da atuação do Estado. Em ambos se encontra o vírus da doença totalitarista e seu consequente sintoma da manutenção de reserva mental sobre ideias e opiniões no seio da população.
Juristas comparam, com plena razão, o Patriot Act com o nosso famigerado AI-5 dos tempos da ditadura.
No Brasil, ambos os artifícios - False Flag e criação de inimigo comum - já foram historicamente utilizados, bastando recordar a atuação da imprensa por ocasião da ditadura militar, quando se utilizou o medo do comunismo e da degeneração do tecido familiar como supedâneo de uma suspensão da democracia e dos direitos e liberdades individuais. Poder-se-ia ainda exemplificar com a atuação de D. Pedro I no arremedo de independência do Brasil, mudança pensada e materializada para se manter tudo como já estava, com Portugal no comando de sua colônia “independente” (no episódio, Portugal era o diabo que não existia).
Atualmente, está mais uma vez em andamento o expediente de criação de um inimigo comum, desta feita personificado em um partido político, o PT. Novamente a mídia é a ponta de lança do processo. Primeiro, esconde-se o diabo, fingindo que ele não existe. O diabo, no caso, é a política econômica ultra liberal exigida pelos grandes conglomerados, com liberdade total de movimentação do capital, intensificação do rentismo, com liberdade para os papéis meramente especulativos, aumento dos juros públicos e redução da taxação, desterritorialização do processo produtivo e mitigação dos direitos trabalhistas. Finge-se que nada disso guarda relação com as sucessivas crises econômicas, que nada mais são do que o freio de arrumação do sistema, com prejuízo conduzido à conta exclusiva da parcela mais pobre da população. Comentaristas econômicos sérios da grande mídia fazem o papel de avalizadores desse sistema podre.
Escondido o diabo, cria-se o inimigo comum: o partido que representa o oposto do que desejam os grandes conglomerados. Para isso, todos os males da nação, que são históricos, sistêmicos e inevitáveis se não realizadas profundas alterações no sistema político, são colocados na conta desse partido. Para isso, esconde-se toda e qualquer conquista, todo resultado positivo. Se a divulgação de algo positivo for inevitável, deve ser relativizado, a ele devendo ser contraposto um ponto negativo com estardalhaço, ainda que ninguém fosse capaz de evitar esse lado negativo imediatamente. Essa estratégia diversionista de argumentação é chamada sofisma do mundo ideal.
Se esse partido permite que as instituições funcionem e notícias de corrupção começam a pipocar e pessoas poderosas comecem a ser presas, nada de congratulações pelo republicanismo. Nada de divulgar opiniões abalizadas, como a do filósofo e professor universitário Mário Sérgio Cortella, segundo o qual “não podemos perder o foco do que vivemos hoje no Brasil, que não é o auge da sujeira, mas o começo da limpeza”.
Pelo contrário, invertam-se os valores e coloque-se na conta desse governo toda corrupção, ainda que seja evidente que sempre tenha existido e que jamais antes alguém tenha investigado.
Criam-se, então, dois gigantescos factoides midiáticos, o “mensalão” e o “petrolão”, omitindo, é claro, que os esquemas não são de partido, mas emergências do próprio sistema político corrompido. Ao invés de se lutar pela modificação desse sistema doente, parte-se para a fulanização e criação de um culpado: o partido político popular que chegou ao poder.
Disseminada a ideia histérica de que a retirada do PT do poder erradicaria todos os males do país, está formado o ambiente perfeito para a modificações legislativas e até mesmo jurisprudenciais que reduzam os direitos e liberdades individuais e permitam alcançar esse resultado.
Grande parte do povo, convencida de que o “partido mais corrupto da história” pretende se “eternizar no poder”, não percebe que certas medidas são extremamente prejudiciais à sociedade.
Amplia-se desmesuradamente o poder do Ministério Público, que deixa de atuar como fiscal da lei e garantidor do devido processo legal para se tornar sócio do resultado da investigação e cúmplice do linchamento midiático. É olvidado o fato de que, na maior parte dos países civilizados, o órgão que investiga (a polícia) não acusa, o órgão que acusa (o MP) não investiga e o órgão que julga (o judiciário) não investiga e nem acusa. Isso é basilar em termos de obediência ao princípio de inocência, garantia do devido processo legal e do amplo direito de defesa, garantindo a ação isenta, imparcial e impessoal do Estado na persecução criminal.
O cidadão, insuflado pela mídia, não percebe que poderá vir a se tornar um Joseph K, personagem de Kafka, e ser esmagado por esse mesmo Ministério Público, agora munido de poderes majestáticos, se por uma dessas desventuras da vida, tiver o azar de se tornar réu numa ação penal.
Enaltece-se largamente o ativismo político judiciário, que se utiliza de uma ação penal para atemorizar o governo, ainda que para tanto tenha que passar por cima do princípio de inocência, criar mecanismos inéditos, casuísticos, para condenações sem provas, como a utilização distorcida da teoria do domínio do fato, além de inaugurar a condenação sem fundamento probatório, “com base na literatura jurídica”. Outros magistrados se utilizam de mecanismos menos nobres, realizando divulgações seletivas de trechos da ação penal como forma de atingir determinados alvos e objetivos.
O cidadão, cegado pelas manchetes, não enxerga o perigo para toda a sociedade de se permitir a um juiz uma condenação sem fundamento em prova concreta de autoria.
Combatem-se iniciativas democráticas, como os conselhos populares, evitando-se à todo custo a participação popular na tomada das decisões públicas, o que inviabiliza o exercício da democracia direta prevista constitucionalmente.
O cidadão, completamente desorientado pela imprensa, reduz-se a si mesmo a massa de manobra e vislumbra a própria participação direta na decisão política como um perigo para si e para a sociedade.
Ridiculariza-se a ideia de uma constituinte exclusiva para a reforma política.
O cidadão, com a visão estreitada pelos antolhos do “efeito manada”, não percebe que, inexistindo um modelo perfeito de parlamento para reformar o sistema pelo qual o parlamentar foi eleito, muito mais imperfeito será aquele composto por parlamentares que pretendam ser reeleitos pelo mesmo sistema. Um parlamento limitado no tempo e no objeto certamente terá mais liberdade de atuação, pois não se verá imediatamente vinculado ao modelo que lhe conferiu o poder.
Legaliza-se a participação dos conglomerados financeiros no financiamento das campanhas, fortalecendo o desequilíbrio entre as forças eleitorais de cada eleitor, fazendo letra morta do mais importante princípio da democracia, que é dar a cada um um voto de igual valor e peso, e, assim, garantindo o domínio do Congresso Nacional pelas bancadas de interesses corporativos, como a rural, a religiosa, a das empreiteiras, a dos bancos e outras.
O cidadão, idiotizado pela escandalização seletiva, não se incomoda pela quase total inexistência de formação da única bancada que, de fato, importa: a bancada parlamentar do povo. Caminho aberto para a perpetuação da perversa desigualdade de patrimônios e rendas.
Propagandeia-se incansavelmente que uma empresa estatal, a Petrobras, fez um mal negócio em Pasadena e foi envolvida em um esquema gigantesco de corrupção e que, por isso, está a um passo da falência, por culpa do PT, ainda que os números desmintam essa versão e mesmo que isso resulte em um prejuízo várias vezes maior para a empresa e para o país do que o valor supostamente roubado.
O cidadão, embalado por essa cantilena de sereia midiática, é afogado sem se dar conta de que a empresa quadruplicou sua lucratividade desde a troca de partido no governo federal (de 8 bilhões de reais, em 2002, para 24 bilhões, em 2013), aumentou em oito vezes o seu valor de mercado, até antes da escandalização, de US$ 15,4 bilhões, em 2002, para US$ 116,3 bilhões, em 2014.
E não se fala, ou se fala bem baixinho, sobre todo e qualquer resultado positivo. Nada sobre o incremento, a partir do governo Lula, no efetivo da Polícia Federal, no incrível aumento na quantidade de operações policiais que esse aumento do efetivo permitiu, na desenvoltura com que o Ministério Público começou a funcionar como instituição e a produzir ações penais a partir dessas operações, sobre a multiplicação no número de varas federais a permitir o andamento dessas ações penais e mesmo sobre o mérito na nomeação de ministros do Supremo que se sentiram livres para julgar de acordo com suas convicções.
E tampouco se vêem noticiados os avanços no ensino técnico a partir de centenas de novas escolas federais inauguradas, a abertura do ensino superior às pessoas mais necessitadas proporcionada por iniciativas como Prouni e Fies, a melhoria do atendimento médico de base alcançado pelo super-atacado programa Mais Médicos. Programas como Caminhos da Escola, que fornece veículos para a condução escolar de qualidade para regiões carentes jamais são mencionados, sequer em notinhas de pé-de-página.
O terreno político atual está preparado para a guerra total que está prestes a se iniciar a partir da Operação Lava-Jato: a retirada do PT do poder ainda que ao custo de quebrar a economia brasileira. A única coisa que interessa, para esses grupos financeiros aflitos, é extirpar o PT do governo brasileiro, pouco importando as consequências. Se a Petrobras quebrar, se as maiores empreiteiras do Brasil quebrarem, isso será considerado apenas um efeito colateral aceitável.
Interessante lembrar que, quando o governo era do PSDB, partido desejado pelos conglomerados financeiros, a quebra de grandes empresas, como os bancos, era considerada inaceitável, dados os custos sociais e econômicos envolvidos. Por conta disso, bilhões foram transferidos aos banqueiros para salvar a banca, através do Proer, praticamente sem demonstração de indignação dignas de monta.
Aliás, o governo da própria metrópole tucana, os Estados Unidos, injetaram trilhões de dólares nos cofres particulares da banca para salvar sua economia. Nisso, porém, parece que nossos vira-latas não seguem o modelo.
Repetindo a estratégia política trágica que gerou 1964, o Brasil encontra-se novamente nesse estado político perigoso, onde as instituições democráticas são esgarçadas constantemente, sem reflexão crítica e sem que se pesem as consequências.
Já se ouvem, aqui e ali, rumores de insatisfação que vão se avolumando. Mas tais rumores não são unívocos, possuem dois tons. Um de cada lado.
O ponto de rompimento não está longe. O Brasil de hoje, porém, não é mais o país antiquado da década de 1960. Se lá a tragédia foi silenciosa, porque somente a imprensa detinha o poder de divulgação, hoje as vozes são múltiplas pela internet e a farsa poderá resultar em sangrenta coloração.
Tomara o Brasil não seja tragado na luta entre o inimigo comum imaginário e seu criador, o diabo que não existe.

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