Charge de Ivan Cabral |
Há
uma máxima, atribuída ao poeta francês Charles Baudelaire, segundo
a qual o maior truque realizado pelo diabo foi convencer a todos de
sua própria inexistência. Grande esperteza. O diabo sabe que o povo
estará pronto para adotar uma atitude passiva e se acomodar quando
restar convencido de que determinado mal é fruto de lenda urbana, de
teorias da conspiração ou da histeria de poucos. Nada como a inação
popular para quem deseja o poder. Em terra de apáticos, o mal ativo
será rei.
O
diabo, porém, é ainda mais maligno. Não satisfeito em, num passe
de alquimia, transmutar uma existência concreta, a sua própria, em
delírio de poucos para, com isso, se tornar invisível, a liberdade
da invisibilidade lhe proporciona realizar outra façanha alquímica
extraordinária: metamorfosear uma inexistência, o éter, em medo coletivo
palpável. Isso porque o diabo sabe que a melhor maneira de
conquistar, manter e ampliar o seu poder é através da criação de
um inimigo comum que, unindo o povo num propósito, direcione a
energia coletiva para o objetivo desejado pelo mal.
O
diabo, quando encarnado em Hitler, utilizou essas duas ferramentas:
primeiro, para sua ascensão na política alemã, quando a propaganda dissipava os
possíveis medos decorrentes de sua personalidade maligna então já
perfeitamente identificável, e, segundo, quando, já alçado ao
poder, criou dois grandes inimigos comuns dos alemães: os comunistas
e os judeus.
Contra
os comunistas, Hitler utilizou-se da chamada Operação de Bandeira
Falsa (False Flag), incendiando o Reichstag (Parlamento Alemão) e
culpando os comunistas pelo evento, com o apoio da imprensa alemã da
época. Com base no episódio, Hitler conseguiu aprovar uma
legislação com inclinação totalitarista, suspendendo ou mitigando
as liberdades civis do povo alemão.
Com
relação aos judeus, Hitler disseminou a ideia de que a derrocada
alemã na 1ª Guerra e na crise econômica da época era o resultado
de uma grande conspiração internacional de judeus ricos, banqueiros
e industriais.
Mais
contemporaneamente, pensadores sérios sustentam que o diabo, agora
encarnado em George W. Bush, realizou uma nova Operação de Bandeira
Falsa: o atentado de 11 de setembro, contra as torres gêmeas
americanas. Segundo tais analistas, o suposto atentado teria sido
idealizado pela inteligência americana (CIA), com o beneplácito da
Casa Branca, e realizado pelos próprios militares americanos.
Pode
ser, pode não ser, mas é fato que, a partir do evento, foram
criados o Ato Patriota e um órgão ainda mais maligno do que a CIA,
a NSA (National Security Agency). A partir do Ato Patriota, pessoas,
americanas ou não, podem ser presas sem motivação, por tempo
indeterminado, sem direito a advogado, sem direito a habeas corpus
e sem direito a julgamento, bastando que sejam classificados
como suspeitos de prática ou colaboração com o terrorismo. Além
disso, espalhou-se a informação de que a inteligência americana é
capaz de monitorar amplamente as conversas telefônicas e as
informações que transitam pela internet, inclusive e-mails, não
somente de pessoas comuns, mas de autoridades poderosas, como os dos
presidentes de países como a Alemanha, França, Argentina e Brasil.
Sabe-se
que o totalitarismo se alimenta do medo coletivo de violação do sigilo sobre as
crenças e opiniões individuais. Nesse sentido, não há diferença
alguma entre um suposto direito estatal americano de defesa contra o
terrorismo e o direito que os soviéticos possuíam de proteger o
interesse comunista ao exigir que todos vigiassem e denunciassem uns
aos outros, como um eficiente aparato de disseminação do medo
coletivo da atuação do Estado. Em ambos se encontra o vírus da
doença totalitarista e seu consequente sintoma da manutenção de reserva mental sobre ideias e opiniões no seio da população.
Juristas
comparam, com plena razão, o Patriot Act com o nosso famigerado AI-5
dos tempos da ditadura.
No
Brasil, ambos os artifícios - False Flag e criação de inimigo comum - já foram historicamente utilizados, bastando recordar a atuação da
imprensa por ocasião da ditadura militar, quando se utilizou o medo
do comunismo e da degeneração do tecido familiar como supedâneo de
uma suspensão da democracia e dos direitos e liberdades individuais.
Poder-se-ia ainda exemplificar com a atuação de D. Pedro I no
arremedo de independência do Brasil, mudança pensada e
materializada para se manter tudo como já estava, com Portugal no
comando de sua colônia “independente” (no episódio, Portugal
era o diabo que não existia).
Atualmente,
está mais uma vez em andamento o expediente de criação de um
inimigo comum, desta feita personificado em um partido político, o
PT. Novamente a mídia é a ponta de lança do processo. Primeiro,
esconde-se o diabo, fingindo que ele não existe. O diabo, no caso, é
a política econômica ultra liberal exigida pelos grandes
conglomerados, com liberdade total de movimentação do capital,
intensificação do rentismo, com liberdade para os papéis meramente
especulativos, aumento dos juros públicos e redução da taxação,
desterritorialização do processo produtivo e mitigação dos
direitos trabalhistas. Finge-se que nada disso guarda relação com
as sucessivas crises econômicas, que nada mais são do que o freio
de arrumação do sistema, com prejuízo conduzido à conta exclusiva
da parcela mais pobre da população. Comentaristas econômicos
sérios da grande mídia fazem o papel de avalizadores desse sistema
podre.
Escondido
o diabo, cria-se o inimigo comum: o partido que representa o oposto
do que desejam os grandes conglomerados. Para isso, todos os males da
nação, que são históricos, sistêmicos e inevitáveis se não realizadas profundas alterações no sistema político, são colocados na conta
desse partido. Para isso, esconde-se toda e qualquer conquista, todo resultado positivo. Se a divulgação de algo positivo for inevitável,
deve ser relativizado, a ele devendo ser contraposto um ponto negativo com estardalhaço, ainda que
ninguém fosse capaz de evitar esse lado negativo imediatamente. Essa estratégia diversionista de argumentação é chamada sofisma do mundo ideal.
Se
esse partido permite que as instituições funcionem e notícias de
corrupção começam a pipocar e pessoas poderosas comecem a ser
presas, nada de congratulações pelo republicanismo. Nada
de divulgar opiniões abalizadas, como a do filósofo e professor
universitário Mário Sérgio Cortella, segundo o qual “não
podemos perder o foco do que vivemos hoje no Brasil, que não é o
auge da sujeira, mas o começo da limpeza”.
Pelo contrário,
invertam-se os valores e coloque-se na conta desse governo toda corrupção,
ainda que seja evidente que sempre tenha existido e que jamais antes
alguém tenha investigado.
Criam-se,
então, dois gigantescos factoides midiáticos, o “mensalão” e
o “petrolão”, omitindo, é claro, que os esquemas não são de
partido, mas emergências do próprio sistema político corrompido.
Ao invés de se lutar pela modificação desse sistema doente,
parte-se para a fulanização e criação de um culpado: o partido político popular
que chegou ao poder.
Disseminada
a ideia histérica de que a retirada do PT do poder erradicaria todos
os males do país, está formado o ambiente perfeito para a
modificações legislativas e até mesmo jurisprudenciais que reduzam
os direitos e liberdades individuais e permitam alcançar esse resultado.
Grande
parte do povo, convencida de que o “partido mais corrupto da
história” pretende se “eternizar no poder”, não percebe que
certas medidas são extremamente prejudiciais à sociedade.
Amplia-se
desmesuradamente o poder do Ministério Público, que deixa de atuar
como fiscal da lei e garantidor do devido processo legal para se
tornar sócio do resultado da investigação e cúmplice do
linchamento midiático. É olvidado o fato de que, na maior parte dos
países civilizados, o órgão que investiga (a polícia) não acusa,
o órgão que acusa (o MP) não investiga e o órgão que julga (o
judiciário) não investiga e nem acusa. Isso é basilar em termos de
obediência ao princípio de inocência, garantia do devido processo
legal e do amplo direito de defesa, garantindo a ação isenta,
imparcial e impessoal do Estado na persecução criminal.
O
cidadão, insuflado pela mídia, não percebe que poderá vir a se
tornar um Joseph K, personagem de Kafka, e ser esmagado por esse
mesmo Ministério Público, agora munido de poderes majestáticos, se
por uma dessas desventuras da vida, tiver o azar de se tornar réu
numa ação penal.
Enaltece-se
largamente o ativismo político judiciário, que se utiliza de uma
ação penal para atemorizar o governo, ainda que para tanto tenha
que passar por cima do princípio de inocência, criar mecanismos
inéditos, casuísticos, para condenações sem provas, como a
utilização distorcida da teoria do domínio do fato, além de
inaugurar a condenação sem fundamento probatório, “com base na
literatura jurídica”. Outros
magistrados se utilizam de mecanismos menos nobres, realizando
divulgações seletivas de trechos da ação penal como forma de
atingir determinados alvos e objetivos.
O
cidadão, cegado pelas manchetes, não enxerga o perigo para toda a
sociedade de se permitir a um juiz uma condenação sem fundamento em
prova concreta de autoria.
Combatem-se
iniciativas democráticas, como os conselhos populares, evitando-se à
todo custo a participação popular na tomada das decisões públicas,
o que inviabiliza o exercício da democracia direta prevista
constitucionalmente.
O
cidadão, completamente desorientado pela imprensa, reduz-se a si
mesmo a massa de manobra e vislumbra a própria participação direta
na decisão política como um perigo para si e para a sociedade.
Ridiculariza-se
a ideia de uma constituinte exclusiva para a reforma política.
O
cidadão, com a visão estreitada pelos antolhos do “efeito
manada”, não percebe que, inexistindo um modelo perfeito de
parlamento para reformar o sistema pelo qual o parlamentar foi eleito, muito mais
imperfeito será aquele composto por parlamentares que pretendam ser reeleitos pelo mesmo sistema.
Um parlamento limitado no tempo e no objeto certamente terá mais
liberdade de atuação, pois não se verá imediatamente vinculado ao
modelo que lhe conferiu o poder.
Legaliza-se
a participação dos conglomerados financeiros no financiamento das
campanhas, fortalecendo o desequilíbrio entre as forças eleitorais
de cada eleitor, fazendo letra morta do mais importante princípio da
democracia, que é dar a cada um um voto de igual valor e peso, e,
assim, garantindo o domínio do Congresso Nacional pelas bancadas
de interesses corporativos, como a rural, a religiosa, a das
empreiteiras, a dos bancos e outras.
O
cidadão, idiotizado pela escandalização seletiva, não se incomoda
pela quase total inexistência de formação da única bancada que,
de fato, importa: a bancada parlamentar do povo. Caminho aberto para
a perpetuação da perversa desigualdade de patrimônios e rendas.
Propagandeia-se
incansavelmente que uma empresa estatal, a Petrobras, fez um mal
negócio em Pasadena e foi envolvida em um esquema gigantesco de
corrupção e que, por isso, está a um passo da falência, por culpa
do PT, ainda que os números desmintam essa versão e mesmo que isso
resulte em um prejuízo várias vezes maior para a empresa e para o
país do que o valor supostamente roubado.
O
cidadão, embalado por essa cantilena de sereia midiática, é
afogado sem se dar conta de que a empresa quadruplicou sua
lucratividade desde a troca de partido no governo federal (de 8
bilhões de reais, em 2002, para 24 bilhões, em 2013), aumentou em
oito vezes o seu valor de mercado, até antes da escandalização, de
US$ 15,4 bilhões, em 2002, para US$ 116,3 bilhões, em 2014.
E
não se fala, ou se fala bem baixinho, sobre todo e qualquer
resultado positivo. Nada sobre o incremento, a partir do governo
Lula, no efetivo da Polícia Federal, no incrível aumento na
quantidade de operações policiais que esse aumento do efetivo
permitiu, na desenvoltura com que o Ministério Público começou a
funcionar como instituição e a produzir ações penais a partir
dessas operações, sobre a multiplicação no número de varas
federais a permitir o andamento dessas ações penais e mesmo sobre o
mérito na nomeação de ministros do Supremo que se sentiram livres
para julgar de acordo com suas convicções.
E
tampouco se vêem noticiados os avanços no ensino técnico a partir
de centenas de novas escolas federais inauguradas, a abertura do
ensino superior às pessoas mais necessitadas proporcionada por
iniciativas como Prouni e Fies, a melhoria do atendimento médico de
base alcançado pelo super-atacado programa Mais Médicos. Programas
como Caminhos da Escola, que fornece veículos para a condução
escolar de qualidade para regiões carentes jamais são mencionados,
sequer em notinhas de pé-de-página.
O
terreno político atual está preparado para a guerra total que está
prestes a se iniciar a partir da Operação Lava-Jato: a retirada do PT do poder ainda que ao custo de
quebrar a economia brasileira. A única coisa que interessa, para
esses grupos financeiros aflitos, é extirpar o PT do governo
brasileiro, pouco importando as consequências. Se a Petrobras
quebrar, se as maiores empreiteiras do Brasil quebrarem, isso será
considerado apenas um efeito colateral aceitável.
Interessante
lembrar que, quando o governo era do PSDB, partido desejado pelos
conglomerados financeiros, a quebra de grandes empresas, como os
bancos, era considerada inaceitável, dados os custos sociais e
econômicos envolvidos. Por conta disso, bilhões foram transferidos
aos banqueiros para salvar a banca, através do Proer, praticamente
sem demonstração de indignação dignas de monta.
Aliás,
o governo da própria metrópole tucana, os Estados Unidos, injetaram
trilhões de dólares nos cofres particulares da banca para salvar
sua economia. Nisso, porém, parece que nossos vira-latas não seguem
o modelo.
Repetindo
a estratégia política trágica que gerou 1964, o Brasil encontra-se
novamente nesse estado político perigoso, onde as instituições
democráticas são esgarçadas constantemente, sem reflexão crítica
e sem que se pesem as consequências.
Já
se ouvem, aqui e ali, rumores de insatisfação que vão se
avolumando. Mas tais rumores não são unívocos, possuem dois tons.
Um de cada lado.
O
ponto de rompimento não está longe. O Brasil de hoje, porém, não
é mais o país antiquado da década de 1960. Se lá a tragédia foi
silenciosa, porque somente a imprensa detinha o poder de divulgação, hoje as vozes são múltiplas pela internet e a farsa poderá resultar em sangrenta coloração.
Tomara o Brasil não seja tragado na luta entre o inimigo comum imaginário e seu criador, o diabo que não existe.
Postagens Relacionadas: estao bugadas...tem ate http://click-download-gratis.blogspot.com.br/ isso linkado no Súbito pensamento...corrija isso
ResponderExcluir