quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A opção entre o “espírito de Davos” e o “espírito de Porto Alegre”



Estamos a poucos dias da data em que o povo se verá obrigado a escolher um novo presidente da República. Fosse uma eleição comum, a formação acadêmica de Haddad em três ciências humanas distintas, com graduação, mestrado e doutorado, além de sua experiência na gestão pública, como ministro da Educação de um dos maiores países do mundo e prefeito da maior cidade do Brasil, o colocaria em vantagem em relação a Bolsonaro, cuja formação se resume a um curso de paraquedismo, onze anos nas forças armadas das quais foi expulso por acusação de terrorismo (“Operação Beco Sem Saída”1), além de trinta anos como político profissional durante os quais obteve sucesso na aprovação de meras três leis, uma para cada década de trabalho. Além disso, Bolsonaro possui exatamente zero anos como administrador da coisa pública ou em qualquer atividade que exija negociação de interesses multitudinários.
Sob outro aspecto, basta assistir desarmado aos vídeos de ambos existentes na internet para perceber que, se por um lado, Haddad é dono de um estilo de fala culta, mansa, cordata e educada, se conduzindo sempre com urbanidade e com a leveza de espírito que os músicos, como ele, costumam ter, pelo outro Bolsonaro discursa de forma bronca, grosseira, com conteúdo impregnado de ódio e violência, sendo costumeiramente deselegante com as pessoas ao seu redor. Ambos os semblantes definem bem os espíritos que os habitam, o de Haddad é leve e sorridente, enquanto Bolsonaro é marcado por vincos faciais e tiques nervosos.

Ao lado disso, ainda daria suporte a Haddad, como candidato, o fato de já ter demonstrado, em suas experiências como gestor público, a preocupação com as humanidades, objetivando integrar pessoas de todas as classes sociais nos locus de educação e de convivência urbana. O discurso de Bolsonaro, por outro lado, é de apoio à tortura e ao assassinato, não somente de criminosos, como também de adversários políticos, bem como de redução dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários dos pobres.
Enfim, a eleição deveria, em condições normais de pressão e temperatura, ser uma lavada em favor de Haddad, portador de evidente inclinação humanitária, melhor preparo intelectual, estilo mais afável e maior experiência administrativa. Todavia, muito embora apoiado por cerca de um terço dos eleitores brasileiros, assim não está sendo. Por quê?
A explicação, em termos singelos, é de que, em relação a Haddad, a eleição se situa num expressivo viés de negatividade que desloca a candidatura da pessoa para o partido. Ou seja, não é ele que está sendo avaliado, mas o passado ético e de eficiência que o PT apresentou no trato da coisa pública. Estão em julgamento os governos de Lula e Dilma, o primeiro quanto à honestidade e o segundo em relação à eficiência. O pálido e quase envergonhado discurso crítico dirigido a Haddad como político e gestor, ou seja, que foi o pior prefeito de São Paulo, sequer sendo reeleito, e que possui diversas ações contra ele, é apresentado apenas como reforço retórico, à míngua de argumentos com substância a apresentar. Sem dúvida alguma, a maioria dos possíveis eleitores do capitão sabem intimamente que não é por tais “defeitos” do opositor que votarão nele.
Bolsonaro, por outro lado, concorre apoiado por duas frentes de apoio, sendo contrariado por uma negativa que, até o momento, não se apresenta suficientemente forte como deveria. A primeira das frentes de suporte é o fato de representar os eleitores que não desejam mais o retorno do PT ao governo federal, sendo essa possivelmente a porção significativamente maior de seus eleitores. A segunda, e penso com alívio ser a de menor grau, é aquela na qual o deputado é escolhido pelo que personifica através das ideias que vêm verbalizando ao longo dos anos, sendo irrelevante sua agremiação partidária. Ele, porém, está sujeito a uma tremenda força negativa: a dos eleitores que, independentemente dos sentimentos que nutrem em relação ao PT, não desejam que o discurso do ódio e da segregação suba a rampa do Planalto.
Por conta desse ângulo de seleção das candidaturas, essa é uma eleição que se diferenciará de todas as demais ocorridas desde o final da ditadura militar. Ela não constituirá, como as anteriores, um modo positivo de opção por distintos processos econômicos para a condução das políticas públicas a serem desenvolvidas, mas um negativo de evitar a ascensão de um dos lados da disputa. É o império do pensamento “não gosto dele mas o outro é pior”. Por enquanto, as pesquisas eleitorais indicam que infelizmente o discurso da violência prepondera sobre o das humanidades. No imaginário popular, equivocado segundo penso, se está optando pelo louco para evitar o ladrão.
Esse é um importante ponto a considerar: Haddad não é ladrão e não foi acusado ou condenado por nenhuma acusação de desvio de dinheiro público em proveito próprio. É inimaginável que se pense que todos os candidatos de um partido sejam corruptos somente porque outras pessoas do partido foram condenadas. Isso inviabilizaria praticamente todas as candidaturas, inclusive a de Bolsonaro, cujo partido no qual passou a maior parte de seus mandatos, o Partido Poular (PP) é um dos campeões de indiciamento e condenações da Lava Jato.
A batalha da lucidez sobre a loucura, porém, ainda não está perdida para a primeira. Ante a percepção de que ainda há esperança para a luz, a razão desse texto, confessadamente uma tentativa de sensibilizar os eleitores verdadeiramente honestos, com espírito aberto à proposta de alcançar a verdade. Não se dirige, por razões óbivas, aos eleitores que comungam das ideias de Bolsonaro quanto ao autogolpe prometido, aos assassinatos públicos e ao uso indiscriminado da tortura. Esses jamais mudarão de opinião, pois ainda que neguem publicamente, pelo evidente constrangimento que tal exposição causaria, é isso que almejam: a manutenção da miséria pacificada em seus guetos e a inserção, no registro da criminalidade, dos resistentes ao projeto totalitário. Para essa amostra minoritária de eleitores, a fobia antipetista decorre da posse de uma alma escravocrata ou feudal, uma que não logrou evoluir civilizatoriamente, permanecendo agarrada aos princípios da Idade Média. Como conseguir mão de obra barata, servil, sem a manutenção do povo em condições sociais que o obriguem a aceitar, e festejar, qualquer migalha que lhe for oferecida? Por mais que reneguem, esse é o sentimento oculto que subjaz ao antipetismo presente em parcela das classes favorecidas.
Entretanto, essa não é uma eleição comum. Ela é diferente de todas as eleições anteriores, que sempre nos apresentaram a opção por dois candidatos que, embora passíveis de críticas, estavam comprometidos, pelo menos discursivamente, com os princípios democráticos e com o respeito às instituições. Essa não se caracteriza pela singela escolha entre duas candidaturas.
Como vários analistas políticos destacados já afirmaram com propriedade, a eleição que se avizinha não exigirá do eleitor uma opção entre candidatos, mas uma escolha entre a inauguração de um novo ciclo de barbárie no país, com a mitigação ou mesmo extinção dos direitos mais básicos da cidadania que inexoravalmente acompanham toda experiência de selvageria, ou o prosseguimento numa civilização, que, ainda que eivada de erros, está submetida aos princípios da democracia e do estado de direito que possibilitam acertos de rumo sempre que necessários.
Nessa, somente uma das candidaturas, com todos os possíveis defeitos que lhe possam ser atribuídos, proporciona a segurança da manutenção do estado de direito e a estabilidade institucional. A outra propõe a ruptura democrática, a governança pela palavra isolada e indiscutível do Chefe do Executivo e a instauração de um estado de terror. Por conta dessa peculiaridade, esse será possivelmente, para a maior parte de nós, o momento político mais decisivo de todas as nossas vidas. Trata-se de uma ocasião importante demais que não se presta a hesitações ou omissões em nome de uma suposta e incerta moralidade.
Por essa razão, acredito na validade das várias iniciativas produzidas de diálogo com os eleitores e demais cidadãos que, embora desconfortáveis com a ideia de votar no candidato do PT, não comungam do desumano ideário pregado pelo outro candidato. Àqueles que, a todo custo, se mantêm aferrados ao ideal humanitário e às conquistas do processo civilizatório. Aos eleitores lúcidos e honestos intelectualmente numa busca pela verdade que constitui um dever nesse momento crucial. O futuro está muito próximo, próximo demais para que relaxemos.
Um ponto importante a atentar é quanto ao momento histórico no qual a eleição se dá, propiciador da ascensão do tipo de pensamento que conduz à validação de candidaturas como a de Bolsonaro, impensável em outras épocas. O capitalismo, principalmente nas duas últimas décadas, vem apresentando sinais claros de exaustão. Os capitalistas não conseguem mais, como antes, lucrar com a produção, suas riquezas aumentam atualmente basicamente a partir da especulação financeira. Independentemente do ramo a que se dedicam, quase todas as grandes empresas lucram mais com o cassino das bolsas de valores do que com a comercialização do produto que fabricam. Essa é a razão pela qual, paradoxalmente, combateram decisões políticas desenvolvimentistas que as favoreciam: não desejam mais produzir, querem apenas especular. Eis o motivo oculto de terem financiado patos amarelos e movimentos políticos descerebrados como o MBL e afins.
Todavia, a especulação, por acarretar uma concentração de riqueza e renda sem precedentes, possui limites intransponíveis, sendo um deles uma brutal redução da oferta de emprego e na renda dos trabalhadores. Especulação não cria emprego e não gera renda de trabalho. Tal circunstância, aliada ao desemprego estrutural provocado pela massificação do uso da tecnologia, causa desequilíbrio no mercado real, fundado na produção. Como comprar os produtos dos capitalistas se não há emprego e, consequentemente, tampouco dinheiro circulando? Hoje, para que o sistema continue operacional, fabrica-se cada vez mais e mais dinheiro sem qualquer âncora confiável, com destaque para o dólar americano. A prensa da casa da moeda americana trabalha incessantemente. Essa bomba-relógio explodirá um dia.
Segundo o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein, autor do livro O Declínio do Império Americano, o modelo capitalista está se esgotando e, em breve, chegará a uma bifurcação com duas principais possibilidades de direcionamento: (a) o retorno a um regime de poder muito centralizado e excludente, similar às antigas monarquias absolutas e, como dantes, muito possivelmente fundado em estamentos que definiriam, desde o nascimento e até a morte, o lugar a ser ocupado pela pessoa na sociedade; ou (b) a criação de um modelo de sociedade menos focado na riqueza e mais na dignidade humana, com redução das diversas desigualdades (econômica, cultural, racial, sexual, etc). Wallerstein denomina a primeira opção de “espírito de Davos” e a segunda, “espírito de Porto Alegre”. A decisão a tomar ante essa encruzilhada será por Davos, se o poder de tomá-la for dos ricos, e Porto Alegre, se dos pobres.
A ascensão da extrema-direita no mundo parece ocorrer, a partir dessa perspectiva, como uma antecipação do futuro, uma espécie de dose homeopática do que virá. A elite de poder do mundo precisa posicionar defensores nos mais estratégicos e importantes cargos políticos dos países, os quais, endurecendo o regime ainda sob o pálio da democracia, facilitarão o encaminhamento do “espírito de Davos” como o novo modelo socioeconômico que emergirá. O que os desfavorecidos podem fazer para vencer essa que é a mais importante eleição de todas? Aquela que definirá o novo mundo que surgirá? Não entre candidatos, mas entre um sistema opressivo e um sistema de libertação?
Um primeiro passo firme em direção a essa mudança de paradigma é o abandono da ilusão criada e mantida de que há alguma coincidência entre o interesse do rico e o interesse da grande massa da população humana. Nunca houve, nunca haverá. Em termos econômicos, a sociedade necessita de criadores de emprego e estes necessitam de empregados. E cessa aí qualquer identidade. Daqui em diante, somente conflitos. Ricos não são naturalmente altruístas e somente concedem aos trabalhadores o mínimo exigido pela normatividade. Se forem, como de fato são em grande medida, eles próprios os legisladores, o que concederiam espontaneamente? A história dá a resposta: algemas, comida e senzala.
A escravidão é o exemplo mais importante do que o liberalismo extremado é capaz de produzir. Ela é o paradigma máximo do “espírito de Davos” de que nos fala Wallerstein. Deixem o poder financeiro absolutamente livre para negociar as condições da sociedade e em breve se retornará à escravidão, desta vez voluntária, com as pessoas não mais alugando o seu corpo por salário, mas vendendo-o pela esperança de obter casa e comida para si e sua família. Basta que o leitor utilize sua inteligência e lógica, abandone a vão esperança e credulidade em algum eventual sentido de humanidade presente no espírito dos bilionários, e concluirá que essa é a verdade, tanto que já foi assim e continua a sê-lo aqui e ali ao redor do mundo. O homem é o lobo do homem, sempre foi assim e sempre será se não houver a mediação de leis restritivas. Tais leis nunca serão produzidas por representantes dos ricos, salvo se houver imperiosa necessidade, como houve na criação do estado de bem-estar social europeu, nascido do pensamento liberal, do início até meados do século XX, exclusivamente por conta do medo da ascensão do comunismo, que vinha sendo fortalecido em decorrência do empobrecimento geral da população mundial gerador de grandes tensões sociais nessa época2. Trata-se da aplicação prática do “mudar para manter”.
O medo do comunismo acabou e só existe como discurso, para iludir incautos. Não por acaso, o fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim marcam o retorno sedento do liberalismo econômico, acentuadamente com Reagan, nos EUA, e Thatcher, no Reino Unido. Chega ao Brasil na década de 1990, primeiro com Collor e mais agressivamente com Fernando Henrique Cardoso. Neoliberalismo é apenas o nome dado para essa ressurgência mais intensa de algo que sempre existiu e cuja implementação somente foi mitigada por algumas décadas. O poder sempre atuou de forma livre, sempre fez o que quis, “no limite da irresponsabilidade”, para parafrasear uma conversa entre o Ministro das Comunicações de FHC e um diretor do Banco do Brasil3. Se o poder econômico for absolutamente livre, explorará absolutamente o trabalho humano.
Porém, o espectro que rondava a Europa, segundo Marx, e depois o mundo, o comunismo, não mais assusta ninguém. A existência da União Soviética possuía esse poder de persuasão sobre o capital internacional, que se via obrigado a valorizar o trabalho para evitar a atração gravitacional imposta pelo comunismo. O receio, porém, deixou de existir e, por isso, tudo o que foi concedido aos desfavorecidos sob o medo do comunismo está sendo tomado de volta. Em nosso país, especificamente, a chamada “flexibilização da legislação protetiva do trabalho” é um eufemismo para “retorno gradativo à escravidão”. No mesmo pacote se inserem as indefectíveis reformas da previdência, a redução das despesas públicas por vinte anos (com evidente impacto em educação, saúde, segurança pública e outras políticas públicas), a venda de ativos públicos importantes para o capital privado e tantos outros projetos governamentais conducentes à redução do tamanho do Estado. Tudo isso é colocado nas mentes das pessoas como absolutamente necessárias, sem o que o mundo econômico colapsará.
Enquanto isso, os bilionários do mundo vão ficando cada vez mais bilionários, como já demonstrou cientificamente o economista francês Thomas Piketty no livro O capital no século XXI. Piketty não é comunista, mas simpatizante de um capitalismo mais sadio e humano. Desafio um economista neoliberal vir a público para explicar detidamente, como se fôssemos crianças de seis anos, como é possível a concentração de riqueza estar aumentando consideravelmente, com ampliação das fortunas, ao tempo em que se diz que a economia anda mal em todo o mundo e que, como única salvação, os Estados devem ser reduzidos de tamanho para uma equivalente redução das despesas públicas e os direitos trabalhistas mitigados ao máximo. As duas ideias – economia mal das pernas e bilionários cada vez mais ricos – são antagônicas e não podem coexistir. Ao que parece, os prejuízos da economia se inserem exclusivamente no campo contábil das empresas, pois os donos das corporações proprietárias aparentemente vão muito bem obrigado.
Essa é a grande questão de fundo, mas sempre oculta, que paira sobre o Brasil desde a eleição de Fernando Collor de Mello e que vem nos assombrando desde então, com aprofundamento a partir da segunda eleição de Lula. Não se trata de corrupção, nunca se tratou.
Vou aqui abrir um parêntese. Existem incontáveis artigos escritos por cientistas sociais, inclusive juristas de renome, que colocam o julgamento do mensalão e dos processos da Lava Jato no campo da fabricação de provas e evidências, paridas a fórceps, e na utilização de interpretações e teorias jurídicas de forma inédita e ainda exclusivas, com vistas a produzir as condenações desejadas pelo sistema. Não entrarei no mérito nesse espaço, pois o alongaria demasiado. É muito simples, para os honestos, buscarem informações verdadeiramente especializadas na internet. Encontrarão aos montes. Apenas ressalto que tais estudos de caso tornam, no mínimo, duvidosa a opinião disseminada de que o PT e seus candidatos são corruptos ou que o são em grau distinto do que se esperaria de qualquer outro partido. Não se trata de concordar com a corrupção, o que seria uma idiotice, ou de perdoar a praticada pelo PT. Trata-se apenas de afirmar que um senso ético de justiça individual necessariamente deve ser atravessado pelo uso de mesmo peso e de mesma medida. Fecho parêntese e volto ao tema do parágrafo anterior.
O que efetivamente está em jogo é o comando da repartição dos recursos públicos num mundo cada vez mais frágil economicamente e com população cada vez maior. Trata-se de decidir, num mundo no qual o emprego escasseia em virtude da tecnologia e da especulação financeira e, com ele, a renda da população, se a dignidade humana é o valor mais essencial de uma civilização que mereça ser chamada de desenvolvida ou se ela perde em benefício de uma suposta liberdade plena de ficar cada vez mais rico. “Suposta” porque tal “liberdade de ficar rico” é atingida por uma ínfima parcela da humanidade, de modo que socialmente não produz impacto benéfico de relevo.
Ao lado disso, impõe-se compreender a democracia na bitola estreita de sua verdadeira dimensão. No Brasil e no mundo, a democracia é, para dizer o mínimo, muito rala, basicamente focada no âmbito insuficiente do direito de votar. Justamente pela consciência coletiva dessa rarefação democrática assiste-se atualmente a uma descrença generalizada na política como mecanismo de mediação dos interesses sociais em conflito. As primaveras e a ascensão da extrema-direita verificadas no mundo foram cozinhadas nesse caldo de desânimo com a política, resumidas nessa frase difusa e inconsequente de “ser contra tudo o que está aí”. A expressão “contra tudo”, cujo similar é “doa a quem doer”, é de uma abrangência espetacular que impressiona, mas que claramente não serve a propósito algum e possui potência de causar maior estrago do que o que busca sanar. A vingar a tese, somente um novo dilúvio daria conta de mudar a humanidade. O problema é que essa cena comporta a salvação de apenas uma família, cujos integrantes haveriam de ser todos santos. A santidade claramente não está em ninguém, valendo rejeitar a fórmula e optar pelo modelo “melhorar tudo o que está aí”, mais eficaz e benéfica para um maior número de pessoas, talvez até para todas.
Como já tive a oportunidade de expor em outro texto4, pode-se desfiar um rosário de causas que colaboram para esse sentimento de desalento com a democracia, porém há um elemento que contribui para isso de forma mais pesada e desequilibra fortemente o valor individual da participação política. Trata-se da intromissão indevida, legal ou ilegalmente, da força econômica no processo democrático. Uma sociedade fundada na prevalência do interesse financeiro, sobreposto ao de manutenção e incremento da dignidade humana, é uma sociedade portadora de um câncer na democracia. Se não tratado, ocorre a metástase, o enfraquecimento geral e a morte da democracia. Sociedades, todavia, não morrem, elas se transformam em outra coisa. Já tive a oportunidade de asseverar que, quando a democracia morre, nasce o lobo do totalitarismo, disfarçado ou não de cordeiro da liberdade.
Ante a fragilidade da democracia, tem-se que, mesmo para um mandatário honesto, chegando ao poder, não há possibilidade de materialização da integralidade do programa político que o elegeu. As forças econômicas, representadas politicamente de forma majoritária no governo, nas legislaturas e no judiciário, impedem ferozmente qualquer mudança de profundidade. As conquistas hão de ser obtidas gradativa e suavemente, uma de cada vez, como forma de amenizar as resistências. Nesse aspecto, impõe-se, a cada um de nós, a investigação de uma questão que se imbrica com uma das mais profundas verdades em nós estabelecida e em relação a que somente nós temos acesso, centrada na alteridade e sem a qual nenhum julgamento ético possui valor: o que eu faria se estivesse no lugar do outro? Como eu, presidente da República, agiria para equilibrar as gigantescas forças contrárias que se digladiam no parlamento? Eu, general, escolheria lutar todas as batalhas de uma vez, sob imenso risco de perder a guerra em curto tempo, ou mais lucidamente selecionaria guerrear uma de cada vez, segundo uma escala de prioridades, facilitando a vitória final? A resposta é bastante simples para qualquer mente honesta.
Não existem santos ou milagreiros na política, nem os eleitores, nem os candidatos, nem os eleitos. Dos políticos não se pode exigir, nem eles podem prometer realizar, milagres, apenas que honrem a representação que receberam dos eleitores. Em geral, os ocupantes de cargos públicos que mais ficam em evidência, principalmente chefes do Executivo, mal esquentam a cadeira recebida dos eleitores e já estampam capas de jornais e revistas como objeto de matérias que os vinculam a grandes feitos e também a suspeitas de corrupção.
É preciso estar atento à natureza humana e limites de qualquer candidato a cargo político. Políticos são humanos como nós e carregam com o mandato, para o governo, suas melhores qualidades e também seus piores defeitos, o que têm de melhor e o que têm de pior, todas as suas idiossincrasias e historicidade. É essa condição humana a causa da evolução política para o sistema de pesos e contrapesos da democracia, com um dos poderes do Estado sofrendo a moderação dos outros dois. Se alguém se apresentar como um messias político, afirmando ser capaz de resolver todas as grandes questões do país com um tiro só, de um só golpe e num só mandato, não vote nele, é apenas mais um mentiroso.
Em paralelo, se o eleitor optar ou não se importar com a escolha, hipoteticamente falando, de um declarado simpatizante da tortura e do assassinato, saiba que é essa a natureza humana de quem escolheu ou omitiu-se em impedir que chegasse ao poder: um torturador e assassino. É essa a própria condição humana que será levada a mais importante cadeira política do país.
Ao que parece, a escolha entre a brutalidade inerente ao “espírito de Davos” e a dignidade humana presente no “espírito de Porto Alegre” já se antecipou para o Brasil. Ela ocorrerá no domingo, dia 28 de outubro de 2018.
Estou convicto quanto à minha opção. E você?
1 - Extraído de https://pt.wikipedia.org/wiki/Jair_Bolsonaro. Ao que parece, Bolsonaro foi reintegrado por força de decisão judicial que, aparentemente, não entrou no mérito da acusação, absolvendo-o por detalhe técnico.

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