Estamos
a poucos dias da data em que o povo se verá obrigado a escolher um
novo presidente da República. Fosse uma eleição comum, a formação
acadêmica de Haddad em três ciências humanas distintas, com
graduação, mestrado e doutorado, além de sua experiência na
gestão pública, como ministro da Educação de um dos maiores
países do mundo e prefeito da maior cidade do Brasil, o colocaria em
vantagem em relação a Bolsonaro, cuja formação se resume a um
curso de paraquedismo, onze anos nas forças armadas das quais foi
expulso por acusação de terrorismo (“Operação Beco Sem
Saída”1),
além de trinta anos como político profissional durante os quais
obteve sucesso na aprovação de meras três leis, uma para cada
década de trabalho. Além disso, Bolsonaro possui exatamente zero
anos como administrador da coisa pública ou em qualquer atividade
que exija negociação de interesses multitudinários.
Sob
outro aspecto, basta assistir desarmado aos vídeos de ambos
existentes na internet para perceber que, se por um lado, Haddad é
dono de um estilo de fala culta, mansa, cordata e educada, se
conduzindo sempre com urbanidade e com a leveza de espírito que os
músicos, como ele, costumam ter, pelo outro Bolsonaro discursa de
forma bronca, grosseira, com conteúdo impregnado de ódio e
violência, sendo costumeiramente deselegante com as pessoas ao seu
redor. Ambos os semblantes definem bem os espíritos que os habitam,
o de Haddad é leve e sorridente, enquanto Bolsonaro é marcado por
vincos faciais e tiques nervosos.
Ao
lado disso, ainda daria suporte a Haddad, como candidato, o fato de
já ter demonstrado, em suas experiências como gestor público, a
preocupação com as humanidades, objetivando integrar pessoas de
todas as classes sociais nos locus de educação e de
convivência urbana. O discurso de Bolsonaro, por outro lado, é de
apoio à tortura e ao assassinato, não somente de criminosos, como
também de adversários políticos, bem como de redução dos
direitos sociais, trabalhistas e previdenciários dos pobres.
Enfim,
a eleição deveria, em condições normais de pressão e
temperatura, ser uma lavada em favor de Haddad, portador de evidente
inclinação humanitária, melhor preparo intelectual, estilo mais
afável e maior experiência administrativa. Todavia, muito embora
apoiado por cerca de um terço dos eleitores brasileiros, assim não
está sendo. Por quê?
A
explicação, em termos singelos, é de que, em relação a Haddad, a
eleição se situa num expressivo viés de negatividade que desloca a
candidatura da pessoa para o partido. Ou seja, não é ele que está
sendo avaliado, mas o passado ético e de eficiência que o PT
apresentou no trato da coisa pública. Estão em julgamento os
governos de Lula e Dilma, o primeiro quanto à honestidade e o
segundo em relação à eficiência. O pálido e quase envergonhado
discurso crítico dirigido a Haddad como político e gestor, ou seja,
que foi o pior prefeito de São Paulo, sequer sendo reeleito, e que
possui diversas ações contra ele, é apresentado apenas como
reforço retórico, à míngua de argumentos com substância a
apresentar. Sem dúvida alguma, a maioria dos possíveis eleitores do
capitão sabem intimamente que não é por tais “defeitos” do
opositor que votarão nele.
Bolsonaro,
por outro lado, concorre apoiado por duas frentes de apoio, sendo
contrariado por uma negativa que, até o momento, não se apresenta suficientemente forte como deveria. A primeira das frentes de suporte é o fato
de representar os eleitores que não desejam mais o retorno do PT ao
governo federal, sendo essa possivelmente a porção
significativamente maior de seus eleitores. A segunda, e penso com
alívio ser a de menor grau, é aquela na qual o deputado é
escolhido pelo que personifica através das ideias que vêm
verbalizando ao longo dos anos, sendo irrelevante sua agremiação
partidária. Ele, porém, está sujeito a uma tremenda força
negativa: a dos eleitores que, independentemente dos sentimentos que
nutrem em relação ao PT, não desejam que o discurso do ódio e da
segregação suba a rampa do Planalto.
Por
conta desse ângulo de seleção das candidaturas, essa é uma
eleição que se diferenciará de todas as demais ocorridas desde o
final da ditadura militar. Ela não constituirá, como as anteriores,
um modo positivo de opção por distintos processos econômicos para
a condução das políticas públicas a serem desenvolvidas, mas um
negativo de evitar a ascensão de um dos lados da disputa. É o
império do pensamento “não gosto dele mas o outro é pior”. Por
enquanto, as pesquisas eleitorais indicam que infelizmente o discurso
da violência prepondera sobre o das humanidades. No imaginário
popular, equivocado segundo penso, se está optando pelo louco para
evitar o ladrão.
Esse
é um importante ponto a considerar: Haddad não é ladrão e não
foi acusado ou condenado por nenhuma acusação de desvio de dinheiro
público em proveito próprio. É inimaginável que se pense que
todos os candidatos de um partido sejam corruptos somente porque
outras pessoas do partido foram condenadas. Isso inviabilizaria
praticamente todas as candidaturas, inclusive a de Bolsonaro, cujo
partido no qual passou a maior parte de seus mandatos, o Partido
Poular (PP) é um dos campeões de indiciamento e condenações da
Lava Jato.
A
batalha da lucidez sobre a loucura, porém, ainda não está perdida
para a primeira. Ante a percepção de que ainda há esperança para
a luz, a razão desse texto, confessadamente uma tentativa de
sensibilizar os eleitores verdadeiramente honestos, com espírito
aberto à proposta de alcançar a verdade. Não se dirige, por razões
óbivas, aos eleitores que comungam das ideias de Bolsonaro quanto ao
autogolpe prometido, aos assassinatos públicos e ao uso
indiscriminado da tortura. Esses jamais mudarão de opinião, pois
ainda que neguem publicamente, pelo evidente constrangimento que tal
exposição causaria, é isso que almejam: a manutenção da miséria
pacificada em seus guetos e a inserção, no registro da
criminalidade, dos resistentes ao projeto totalitário. Para essa
amostra minoritária de eleitores, a fobia antipetista decorre da
posse de uma alma escravocrata ou feudal, uma que não logrou evoluir
civilizatoriamente, permanecendo agarrada aos princípios da Idade
Média. Como conseguir mão de obra barata, servil, sem a manutenção
do povo em condições sociais que o obriguem a aceitar, e festejar,
qualquer migalha que lhe for oferecida? Por mais que reneguem, esse é
o sentimento oculto que subjaz ao antipetismo presente em parcela das
classes favorecidas.
Entretanto,
essa não é uma eleição comum. Ela é diferente de todas as
eleições anteriores, que sempre nos apresentaram a opção por dois
candidatos que, embora passíveis de críticas, estavam
comprometidos, pelo menos discursivamente, com os princípios
democráticos e com o respeito às instituições. Essa não se
caracteriza pela singela escolha entre duas candidaturas.
Como
vários analistas políticos destacados já afirmaram com
propriedade, a eleição que se avizinha não exigirá do eleitor uma
opção entre candidatos, mas uma escolha entre a inauguração de um
novo ciclo de barbárie no país, com a mitigação ou mesmo extinção
dos direitos mais básicos da cidadania que inexoravalmente
acompanham toda experiência de selvageria, ou o prosseguimento numa
civilização, que, ainda que eivada de erros, está submetida aos
princípios da democracia e do estado de direito que possibilitam
acertos de rumo sempre que necessários.
Nessa,
somente uma das candidaturas, com todos os possíveis defeitos que
lhe possam ser atribuídos, proporciona a segurança da manutenção
do estado de direito e a estabilidade institucional. A outra propõe
a ruptura democrática, a governança pela palavra isolada e
indiscutível do Chefe do Executivo e a instauração de um estado de
terror. Por conta dessa peculiaridade, esse será possivelmente, para
a maior parte de nós, o momento político mais decisivo de todas as
nossas vidas. Trata-se de uma ocasião importante demais que não se
presta a hesitações ou omissões em nome de uma suposta e incerta
moralidade.
Por essa razão, acredito na validade das várias iniciativas produzidas de diálogo com os eleitores e demais cidadãos
que, embora desconfortáveis com a ideia de votar no candidato do PT,
não comungam do desumano ideário pregado pelo outro candidato.
Àqueles que, a todo custo, se mantêm aferrados ao ideal humanitário
e às conquistas do processo civilizatório. Aos eleitores lúcidos e
honestos intelectualmente numa busca pela verdade que constitui um
dever nesse momento crucial. O futuro está muito
próximo, próximo demais para que relaxemos.
Um
ponto importante a atentar é quanto ao momento histórico no qual a
eleição se dá, propiciador da ascensão do tipo de pensamento que
conduz à validação de candidaturas como a de Bolsonaro, impensável
em outras épocas. O capitalismo, principalmente nas duas últimas
décadas, vem apresentando sinais claros de exaustão. Os
capitalistas não conseguem mais, como antes, lucrar com a produção,
suas riquezas aumentam atualmente basicamente a partir da especulação
financeira. Independentemente do ramo a que se dedicam, quase todas
as grandes empresas lucram mais com o cassino das bolsas de valores
do que com a comercialização do produto que fabricam. Essa é a
razão pela qual, paradoxalmente, combateram decisões políticas
desenvolvimentistas que as favoreciam: não desejam mais produzir,
querem apenas especular. Eis o motivo oculto de terem financiado
patos amarelos e movimentos políticos descerebrados como o MBL e
afins.
Todavia,
a especulação, por acarretar uma concentração de riqueza e renda
sem precedentes, possui limites intransponíveis, sendo um deles uma
brutal redução da oferta de emprego e na renda dos trabalhadores.
Especulação não cria emprego e não gera renda de trabalho. Tal
circunstância, aliada ao desemprego estrutural provocado pela
massificação do uso da tecnologia, causa desequilíbrio no mercado
real, fundado na produção. Como comprar os produtos dos
capitalistas se não há emprego e, consequentemente, tampouco
dinheiro circulando? Hoje, para que o sistema continue operacional,
fabrica-se cada vez mais e mais dinheiro sem qualquer âncora
confiável, com destaque para o dólar americano. A prensa da casa da
moeda americana trabalha incessantemente. Essa bomba-relógio
explodirá um dia.
Segundo
o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein, autor do livro O
Declínio do Império Americano, o modelo capitalista está se
esgotando e, em breve, chegará a uma bifurcação com duas
principais possibilidades de direcionamento: (a) o retorno a um
regime de poder muito centralizado e excludente, similar às antigas
monarquias absolutas e, como dantes, muito possivelmente fundado em
estamentos que definiriam, desde o nascimento e até a morte, o lugar
a ser ocupado pela pessoa na sociedade; ou (b) a criação de um
modelo de sociedade menos focado na riqueza e mais na dignidade
humana, com redução das diversas desigualdades (econômica,
cultural, racial, sexual, etc). Wallerstein denomina a primeira opção
de “espírito de Davos” e a segunda, “espírito de Porto
Alegre”. A decisão a tomar ante essa encruzilhada será por Davos,
se o poder de tomá-la for dos ricos, e Porto Alegre, se dos pobres.
A
ascensão da extrema-direita no mundo parece ocorrer, a partir dessa
perspectiva, como uma antecipação do futuro, uma espécie de dose
homeopática do que virá. A elite de poder do mundo precisa
posicionar defensores nos mais estratégicos e importantes cargos
políticos dos países, os quais, endurecendo o regime ainda sob o
pálio da democracia, facilitarão o encaminhamento do “espírito
de Davos” como o novo modelo socioeconômico que emergirá. O que
os desfavorecidos podem fazer para vencer essa que é a mais
importante eleição de todas? Aquela que definirá o novo mundo que
surgirá? Não entre candidatos, mas entre um sistema opressivo e um
sistema de libertação?
Um
primeiro passo firme em direção a essa mudança de
paradigma é o
abandono
da ilusão criada e mantida
de que há alguma coincidência entre o interesse do rico e o
interesse da grande massa da população humana. Nunca houve, nunca
haverá. Em termos econômicos, a sociedade necessita de criadores de
emprego e estes necessitam de empregados. E cessa aí qualquer
identidade. Daqui em diante, somente conflitos. Ricos
não são naturalmente altruístas e somente concedem aos
trabalhadores o mínimo exigido pela
normatividade. Se forem, como
de fato são em grande medida,
eles próprios os legisladores, o que concederiam
espontaneamente? A história dá a resposta: algemas, comida e
senzala.
A
escravidão é o exemplo mais importante do que o liberalismo
extremado é capaz de produzir. Ela
é o paradigma máximo do “espírito de Davos” de que nos fala
Wallerstein. Deixem o poder
financeiro absolutamente livre para negociar as condições da
sociedade e em breve se retornará à escravidão, desta vez
voluntária, com as pessoas não mais alugando o seu corpo por
salário, mas vendendo-o
pela esperança de obter casa e comida para
si e sua família. Basta
que o leitor utilize sua
inteligência e lógica, abandone a vão esperança e credulidade em
algum eventual sentido de humanidade presente no espírito dos
bilionários, e concluirá que essa
é a verdade,
tanto que já foi assim e
continua a sê-lo aqui e ali
ao redor do mundo. O
homem é o lobo do homem, sempre foi assim e sempre será se não
houver a mediação de leis restritivas. Tais leis nunca serão
produzidas por representantes dos ricos, salvo se houver imperiosa
necessidade, como houve na criação do estado de bem-estar social
europeu, nascido do pensamento liberal, do início até meados do
século XX, exclusivamente por conta do medo da ascensão do
comunismo, que vinha sendo fortalecido em decorrência do
empobrecimento geral da população mundial gerador de grandes
tensões sociais nessa época2.
Trata-se
da aplicação prática do “mudar para manter”.
O
medo do comunismo acabou e só existe como discurso, para iludir
incautos. Não por acaso, o
fim da União Soviética e a queda do muro de Berlim marcam o retorno
sedento do
liberalismo econômico, acentuadamente com Reagan, nos EUA, e
Thatcher, no Reino Unido. Chega ao Brasil na década de 1990,
primeiro com Collor e mais agressivamente com Fernando Henrique
Cardoso. Neoliberalismo é
apenas o nome dado para essa
ressurgência mais
intensa
de algo que sempre existiu e
cuja implementação somente foi mitigada por algumas décadas. O
poder sempre atuou de forma livre, sempre fez o que quis, “no
limite da irresponsabilidade”, para parafrasear uma
conversa entre o Ministro das Comunicações de FHC
e um diretor do Banco do
Brasil3.
Se o poder econômico for
absolutamente livre, explorará absolutamente o
trabalho
humano.
Porém,
o espectro que rondava a Europa, segundo Marx, e depois o mundo, o
comunismo, não mais assusta
ninguém. A existência da União Soviética possuía esse poder de
persuasão sobre o capital internacional, que se via obrigado a
valorizar o
trabalho para evitar a atração gravitacional imposta pelo
comunismo. O receio, porém, deixou de existir e, por isso, tudo
o que foi concedido aos desfavorecidos sob o medo do comunismo está
sendo tomado de volta. Em
nosso país, especificamente, a
chamada “flexibilização da legislação protetiva do trabalho”
é um eufemismo para “retorno gradativo à escravidão”. No mesmo
pacote se inserem as indefectíveis reformas da previdência, a
redução das despesas públicas por vinte anos (com evidente impacto
em educação, saúde, segurança pública e outras políticas
públicas), a venda de ativos
públicos importantes para o capital privado e tantos outros projetos
governamentais conducentes à redução do tamanho do Estado. Tudo
isso é colocado nas mentes das pessoas como absolutamente
necessárias, sem o que o mundo econômico colapsará.
Enquanto
isso, os bilionários do mundo vão ficando cada vez mais
bilionários, como já demonstrou cientificamente o economista
francês Thomas Piketty no livro O capital no século XXI.
Piketty não é comunista, mas simpatizante de um capitalismo mais
sadio e humano. Desafio um economista neoliberal vir a público para
explicar detidamente, como se fôssemos crianças de seis anos, como
é possível a concentração de riqueza estar aumentando
consideravelmente, com ampliação das fortunas, ao tempo em que se
diz que a economia anda mal em todo o mundo e que, como única
salvação, os Estados devem ser reduzidos de tamanho para uma
equivalente redução das despesas públicas e os direitos
trabalhistas mitigados ao máximo. As duas ideias – economia mal
das pernas e bilionários cada vez mais ricos – são antagônicas e
não podem coexistir. Ao que parece, os prejuízos da economia se
inserem exclusivamente no campo contábil das empresas, pois os donos
das corporações proprietárias aparentemente vão muito bem
obrigado.
Essa
é a grande questão de fundo, mas sempre oculta, que paira sobre o
Brasil desde a eleição de Fernando Collor de Mello e que vem nos
assombrando desde então, com aprofundamento a partir da segunda
eleição de Lula. Não se trata de corrupção, nunca se tratou.
Vou
aqui abrir um parêntese. Existem incontáveis artigos escritos por
cientistas sociais, inclusive juristas de renome, que colocam o
julgamento do mensalão e dos processos da Lava Jato no campo da
fabricação de provas e evidências, paridas a fórceps, e na
utilização de interpretações e teorias jurídicas de forma
inédita e ainda exclusivas, com vistas a produzir as condenações
desejadas pelo sistema. Não entrarei no mérito nesse espaço, pois
o alongaria demasiado. É muito simples, para os honestos, buscarem
informações verdadeiramente especializadas na internet. Encontrarão
aos montes. Apenas ressalto que tais estudos de caso tornam, no
mínimo, duvidosa a opinião disseminada de que o PT e seus
candidatos são corruptos ou que o são em grau distinto do que se
esperaria de qualquer outro partido. Não se trata de concordar com a
corrupção, o que seria uma idiotice, ou de perdoar a praticada pelo
PT. Trata-se apenas de afirmar que um senso ético de justiça
individual necessariamente deve ser atravessado pelo uso de mesmo
peso e de mesma medida. Fecho parêntese e volto ao tema do parágrafo
anterior.
O
que efetivamente está em jogo é o comando da repartição dos
recursos públicos num mundo cada vez mais frágil economicamente e
com população cada vez maior. Trata-se de decidir, num mundo no
qual o emprego escasseia em virtude da tecnologia e da especulação
financeira e, com ele, a renda da população, se a dignidade humana
é o valor mais essencial de uma civilização que mereça ser
chamada de desenvolvida ou se ela perde em benefício de uma suposta
liberdade plena de ficar cada vez mais rico. “Suposta” porque tal
“liberdade de ficar rico” é atingida por uma ínfima parcela da
humanidade, de modo que socialmente não produz impacto benéfico de
relevo.
Ao
lado disso, impõe-se compreender a democracia na bitola estreita de
sua verdadeira dimensão. No Brasil e no mundo, a democracia é, para
dizer o mínimo, muito rala, basicamente focada no âmbito
insuficiente do direito de votar. Justamente pela consciência
coletiva dessa rarefação democrática assiste-se atualmente a uma
descrença generalizada na política como mecanismo de mediação dos
interesses sociais em conflito. As primaveras e a ascensão da
extrema-direita verificadas no mundo foram cozinhadas nesse caldo de
desânimo com a política, resumidas nessa frase difusa e
inconsequente de “ser contra tudo o que está aí”. A expressão
“contra tudo”, cujo similar é “doa a quem doer”, é de uma
abrangência espetacular que impressiona, mas que claramente não
serve a propósito algum e possui potência de causar maior estrago
do que o que busca sanar. A vingar a tese, somente um novo dilúvio
daria conta de mudar a humanidade. O problema é que essa cena
comporta a salvação de apenas uma família, cujos integrantes
haveriam de ser todos santos. A santidade claramente não está em
ninguém, valendo rejeitar a fórmula e optar pelo modelo “melhorar
tudo o que está aí”, mais eficaz e benéfica para um maior número
de pessoas, talvez até para todas.
Como
já tive a oportunidade de expor em outro texto4,
pode-se desfiar um rosário de causas que colaboram para esse
sentimento de desalento com a democracia, porém há um elemento que
contribui para isso de forma mais pesada e desequilibra fortemente o
valor individual da participação política. Trata-se da intromissão
indevida, legal ou ilegalmente, da força econômica no processo
democrático. Uma sociedade fundada na prevalência do interesse
financeiro, sobreposto ao de manutenção e incremento da dignidade
humana, é uma sociedade portadora de um câncer na democracia. Se
não tratado, ocorre a metástase, o enfraquecimento geral e a morte
da democracia. Sociedades, todavia, não morrem, elas se transformam
em outra coisa. Já tive a oportunidade de asseverar que, quando a
democracia morre, nasce o lobo do totalitarismo, disfarçado ou não
de cordeiro da liberdade.
Ante
a fragilidade da democracia, tem-se que, mesmo para um mandatário
honesto, chegando ao poder, não há possibilidade de materialização
da integralidade do programa político que o elegeu. As forças
econômicas, representadas politicamente de forma majoritária no
governo, nas legislaturas e no judiciário, impedem ferozmente
qualquer mudança de profundidade. As conquistas hão de ser obtidas
gradativa e suavemente, uma de cada vez, como forma de amenizar as
resistências. Nesse aspecto, impõe-se, a cada um de nós, a
investigação de uma questão que se imbrica com uma das mais
profundas verdades em nós estabelecida e em relação a que somente
nós temos acesso, centrada na alteridade e sem a qual nenhum
julgamento ético possui valor: o que eu faria se estivesse no lugar
do outro? Como eu, presidente da República, agiria para equilibrar
as gigantescas forças contrárias que se digladiam no parlamento?
Eu, general, escolheria lutar todas as batalhas de uma vez, sob
imenso risco de perder a guerra em curto tempo, ou mais lucidamente
selecionaria guerrear uma de cada vez, segundo uma escala de
prioridades, facilitando a vitória final? A resposta é bastante
simples para qualquer mente honesta.
Não
existem santos ou milagreiros na política, nem os eleitores, nem os
candidatos, nem os eleitos. Dos políticos não se pode exigir, nem
eles podem prometer realizar, milagres, apenas que honrem a
representação que receberam dos eleitores. Em geral, os ocupantes
de cargos públicos que mais ficam em evidência, principalmente
chefes do Executivo, mal esquentam a cadeira recebida dos eleitores e
já estampam capas de jornais e revistas como objeto de matérias que
os vinculam a grandes feitos e também a suspeitas de corrupção.
É
preciso estar atento à natureza humana e limites de qualquer
candidato a cargo político. Políticos são humanos como nós e
carregam com o mandato, para o governo, suas melhores qualidades e
também seus piores defeitos, o que têm de melhor e o que têm de
pior, todas as suas idiossincrasias e historicidade. É essa condição
humana a causa da evolução política para o sistema de pesos e
contrapesos da democracia, com um dos poderes do Estado sofrendo a
moderação dos outros dois. Se alguém se apresentar como um messias
político, afirmando ser capaz de resolver todas as grandes questões
do país com um tiro só, de um só golpe e num só mandato, não
vote nele, é apenas mais um mentiroso.
Em
paralelo, se o eleitor optar ou não se importar com a escolha,
hipoteticamente falando, de um declarado simpatizante da tortura e do
assassinato, saiba que é essa a natureza humana de quem escolheu ou
omitiu-se em impedir que chegasse ao poder: um torturador e
assassino. É essa a própria condição humana que será levada a
mais importante cadeira política do país.
Ao
que parece, a escolha entre a brutalidade inerente ao “espírito de
Davos” e a dignidade humana presente no “espírito de Porto
Alegre” já se antecipou para o Brasil. Ela ocorrerá no domingo,
dia 28 de outubro de 2018.
Estou
convicto quanto à minha opção. E você?
1 - Extraído
de https://pt.wikipedia.org/wiki/Jair_Bolsonaro.
Ao que parece, Bolsonaro foi reintegrado por força de decisão
judicial que, aparentemente, não entrou no mérito da acusação,
absolvendo-o por detalhe técnico.
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