publicado
no portal de notícias GGN em 10/10/2018
É
possível admitir o uso da violência como mecanismo de melhoria do
ambiente social? Caso positivo, quem poderia ser considerado o
titular natural de sua utilização? O policial, o juiz, o chefe do
executivo? Escolhido o titular, qual o grau de utilização seria
admissível a ele conceder para o uso da violência? A partir de que
medida a violência exagerada contra o outro retira de nós a
condição de humanidade?
Os
institutos que normatizam o comportamento social dos seres humanos
não foram criados a partir de ideias geniais surgidas do nada em
mentes privilegiadas ou como revelações divinas lançadas pelos
deuses através de seus representantes terrenos. Nada disso. Sem
exceção alguma, foram as próprias pressões e contradições
sociais que os fizeram surgir com o objetivo de tornar menos árdua a
tarefa individual de conviver com os outros. Afinal, segundo Sartre,
o inferno são os outros, querendo com isso dizer, não que os outros
tornem nossa vida um inferno, mas que é sempre terrível ter de
submeter a própria liberdade ao sentido coletivo de moralidade.
Embora, segundo o filósofo, sejamos condenados a ser livres, já que
apenas nossa vontade impede que façamos toda e qualquer ação ou
omissão dentro de nossas possibilidades físicas, o fato é que o
peso das consequências sociais previsíveis tolhe a opção
volitiva. Ainda assim, somos livres, pois a escolha pelo medo das
consequências é exclusivamente nossa. Os institutos mitigam essa
sensação de inferno que a convivência provoca.
Mas,
de que institutos estamos falando? Pensamos no império de uma
Constituição escrita por representantes do povo, da democracia, da
igualdade política entre ricos e pobres, dos direitos humanos, dos
direitos e garantias individuais mínimos, do devido processo legal,
da inexistência de crime sem lei anterior que o defina, da vedação
ao abuso da autoridade, dos direitos sociais, dos direitos dos
trabalhadores e tantos outros.
Esses
institutos buscam impedir que os horrores vivenciados no passado se
repitam. Já houve época em que seres humanos considerados do bem,
religiosos fervorosos, de família e ótimos amigos mandavam para a
fogueira mulheres que apenas se dedicavam a criar poções com ervas
medicinais. Por longos períodos do passado e dentro do que a lei
admitia, ricos podiam espancar, torturar ou matar seres humanos que
fugiam dos feudos e se recusavam a continuar na servidão, além de,
em alguns casos, terem o direito potestativo de desvirginar as filhas
dos servos. Em momentos sombrios de nossa história, senhores da
nobreza ou do clero exerciam poder absoluto sobre o povo, bastando
uma simples palavra para trancafiar pessoas indefinidamente em
calabouços. No alvorecer da Revolução Industrial, a exploração
da mão-de-obra beirava o fisicamente impossível de suportar, até
crianças de cinco ou seis anos laboravam jornadas de 12 horas ou
mais, e não havia a quem recorrer, pois valia o que estava escrito e
aceito, o contrato. Era o liberalismo em estado puro.
Esses
pesadelos, hoje, foram contidos no mundo civilizado pela força dos
institutos que surgiram justamente para combatê-los. Nasceram sob a
urgência do terror e a partir do sacrifício pessoal de diversos
mártires e resistentes. Graças a eles, a humanidade tornou-se mais
humana. Um ser humano civilizado que mereça esse epíteto não mais
pode comungar com tortura ou com o direito do Estado de matar quem
considerar bandido.
O
ser humano, porém, parece esquecer isso quando flerta com o
autoritarismo. Em todas as épocas e em todos os locais nos quais
floresceu, o autoritarismo levou o terror a todos, inclusive aos que
apoiaram o seu nascimento.
Houve
uma nação cujo povo, cansado do descaso de seus líderes,
revoltou-se e os matou sem piedade. Uma nova liderança, advinda do
povo e que em seu nome falava, os sucedeu. Logo surgiram, dentre os
novos líderes, os que exigiam rigor extremo em relação aos
vencidos. Era necessário, segundo eles, matar o velho para parir o
novo. A matança começou. E não cessou até que, anos depois, um
gigantesco percentual da população estivesse morta, inclusive os
novos líderes. Após a terrível mortandade, tudo voltou a ser mais
ou menos como era antes da revolução, o novo governo descuidando do
povo em prol de outros interesses.
Qual
o nome dessa nação? Fique à vontade para escolher. Pode ser
França, pode ser Alemanha, pode ser Espanha, pode ser Rússia, pode
ser China e muitos outros, a história é a mesma. A lição é
idêntica em todos os casos: salvacionistas que prometem a redenção
do povo através da violência em geral tornam-se abissalmente mais
violentos do que o governo que almejaram extirpar, nada resolvem de
fato, são engolidos pelo próprio movimento e ao sair em geral
deixam as coisas piores do que estavam.
Claro
que a Revolução Francesa possui importância histórica no
nascimento de institutos que defendo veementemente, como os próprios
direitos humanos. O que se pretende indagar aqui é a dimensão da
violência que se pode admitir para derrotar o sistema. Chega, por
exemplo, ao ponto de sonegar os direitos humanos ou o próprio
sentido da democracia representativa?
Essa
é a principal questão que, nesse momento, se coloca para os
eleitores. Desejamos de fato compactuar com a redução de nossa
própria condição humana em nome de um suposto combate à
corrupção? A corrupção efetivamente é um tema de maior relevo do
que a dignidade humana, cuja maior salvaguarda são os institutos
colocados em dúvida nesse processo eleitoral? A violência urbana se
resolve de fato com tortura, mais prisões e assassinato dos bandidos
ou trata-se de questão mais profunda, vinculada à necessidade de
produção de emprego e renda?
E
mais: estamos dimensionando corretamente o perigo que se nos
avizinha?
Quando
a ditadura militar impôs o Ato Institucional nº 5, que endureceu o
regime e praticamente institucionalizou a tortura no país, o
vice-presidente da época, Pedro Aleixo, advertiu o presidente Costa
e Silva: o problema mais grave não são os escalões superiores da
hierarquia social, mas o guarda da esquina. Ele estava corretíssimo,
como a história demonstrou. Os barnabés da administração pública
civil e militar sentiram-se empoderados de tal forma que o povo
passou duas décadas temendo desagradar, por qualquer motivo besta,
um deles, mesmo uma simples diretora de colégio público. A
retaliação burocrática poderia causar sérios reveses na vida das
pessoas e podia mesmo ser fatal se o ofendido fosse um representante
da (in)segurança pública, como policiais e militares de baixa
patente.
O
discurso legitimador da banalização do mal, agora, é o combate à
corrupção.
Quando
um líder aquiesce com a violência, seu discurso até pode ser
meramente retórico ou eleitoreiro, mas a sua condescendência
irresponsável dá início, ladeira administrativa abaixo, a um
inexorável processo de condicionamento psíquico da burocracia que
culmina com o fortalecimento do autoritarismo administrativo. Hanna
Arendt lamentavelmente constatou, no julgamento do nazista Eichmann,
que o mal banal faz residência no ser humano médio, que não hesita
em cometer atrocidades em nome de institutos pueris como a
obediência. A obediência é importante, mas não mais do que a
ética e o respeito à vida e à dignidade do ser humano. Diante da
ética, a obediência e mesmo a lei devem ceder espaço.
Estamos
ainda no limiar desse processo de glamourização da violência e já
são muitas as notícias de pessoas mortas ou violentadas por conta
de sua opção política, de sua orientação sexual ou da região em
que nasceram. Um candidato a governador, ex-juiz, ameaçou prender em
flagrante o adversário em debate eleitoral que ainda farão, caso
venha a entender como injúria a fala do oponente. Outro candidato a
governador, de outro estado mas mesmo discurso, disse que, a partir
de sua posse, a polícia passará a atirar em bandidos para matar.
Esses
candidatos certamente desconhecem a história. Pessoas como eles, que
estimulavam no povo a vontade do terror, foram vítimas do próprio
remédio que receitavam. O advogado Robespierre, o político Danton e
o jornalista Marat, que, durante a Revolução Francesa, advogavam o
terror como meio de pacificação social, terminaram condenados à
mesma pena que ditavam para os adversários políticos: a guilhotina.
Dezenas de milhares de cidadãos franceses sucumbiram frente ao
terror político que tanto invocaram e que achavam que seria
redentor. Engano fatal.
O
problema, repito, é o guarda da esquina; quando a euforia acabar e a
rotina retornar, poderemos nos surpreender com a arrogância com que
ele nos tratará. Um dia, um jovem filho de classe média, com a
irresponsabilidade inerente à sua faixa etária, poderá
embebedar-se e não ser, na visão da “autoridade”, cordial ou
respeitoso o suficiente. Corre o risco de, na fala popular, “acabar
na vala” com uma arma na mão e alguns papelotes no bolso. Saiu de
casa como um promissor estudante e terminou na madrugada como mais um
traficante morto pela valorosa polícia. E o povo, lendo as
manchetes, ficará contente com a eficiência policial.
Estamos
mesmo pedindo por isso? Por favor, digam que não. Digam que ainda
somos humanos, pois, do contrário e em breve, pode ser que não mais
mereçamos tal classificação.
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