quinta-feira, 18 de outubro de 2018

O vazio de pensamento como gênese do “bolsonarismo”


                                                publicado no portal de notícias GGN em 16/10/2018
O que verdadeiramente está em jogo, não somente nessa eleição brasileira, mas nas políticas internas dos países democráticos do mundo, é a extensão da parcela de poder atribuída aos políticos eleitos. Poucas vezes na História se pôde observar tão claramente a ação agressiva do andar de cima para a mitigação do já pouco poder político entregue ao andar de baixo. O que a expressão “neoliberalismo” efetivamente significa, no registro de seus efeitos políticos notáveis, é “o direito dos ricos de ficarem cada vez mais ricos e não se sentirem culpados pelo genocídio dos pobres”. Trump, nos Estados Unidos, representa esse ideal. Bolsonaro, no Brasil, de forma ainda mais violenta, idem.
Experimentamos um mundo no qual a política institucional serve cada vez menos aos seus reais objetivos, a razão de ser de seu surgimento na sociedade humana, os propósitos para os quais foi criada, que são: (a) a escolha do modo de promover a repartição pacífica dos recursos escassos; (b) o aumento da liberdade individual e (c) o estabelecimento de segurança e dignidade para a vida humana.
À exceção dos interesses coletivos de pouca expressão – regionais e sem repercussão econômica e social de monta – os agentes políticos se apresentam mais e mais enfraquecidos quanto à capacidade de produzir a grande política: aquela que caminha na direção das utopias.
O ultraliberalismo econômico e sua filha dileta, a globalização do capital, que os Trumps, Le Pens e Bolsonaros do mundo representam no registro servil da capitania do mato, retiraram o poder da mãos dos políticos profissionais locais, colocando-o na caneta extraterritorial do CEO’s que falam em nome dos grandes financistas internacionais. Esvaziados de poder efetivo, que atividades restaram aos políticos institucionais? Aos concursados, basicamente manter o cargo e exercer pressão corporativista pelo incremento dos privilégios aristocráticos (como o auxílio-moradia dos magistrados) e, aos eleitos, envidar esforços em prol da própria reeleição e da eleição de seus parentes, para isso atuando na condição de despachante dos interesses privados que os auxiliarão nessa empreitada ou os enriquecerão. Demandas sociais estão fora dessa equação e somente serão atendidas por efeito reflexo e possivelmente sequer desejados.

A política institucional aos poucos transforma-se em elemento insignificante para a solução dos dilemas individuais paridos pelas contradições sociais criadas coletivamente (somente um alucinado compreenderia o desemprego a partir das ações dos desempregados ou como opção individual). Ingressamos na era do cada um por si e ninguém por todos (ou, talvez, tenhamos apenas retornado a essa condição de selvageria), que consagra a ação individualista ao extremo, inclusive em relação a questões supraindividuais, como a saúde, a educação e a segurança pública.
O senso comum aponta para a mitigação ou desnecessidade da atuação estatal. A partir dessa nova angulação para o exame da relação indivíduo x sociedade, verifica-se um firme caminhar em direção à atomização das pessoas, que paulatinamente vão sentindo aumentar o temor pela socialização. Antes, esse registro somente era observado em sociedades submetidas aos totalitarismos. Aos poucos, torna-se o novo normal.
Um dos maiores responsáveis pelo isolamento autoinfligido é a violência urbana, cuja explicação rasteira segue o modelo maldoso da opção individual, segundo a qual o criminoso rompe as barreiras da lei por que assim deseja. Ou seja, um dia a pessoa acorda e decide: acho que vou roubar um banco. Por essa visão reducionista, as políticas de Estado e de governo quanto à educação, emprego e produção de renda não possuem vinculação alguma com a questão da violência urbana. Não percebem que tal violência nada mais representa do que uma espécie de guerra civil velada e inconsciente até para os combatentes de um lado e de outro.
A violência urbana e o terrorismo são, atualmente, as armas mais úteis à manutenção do status quo. O poder real dela necessita pois é sua fonte de normatização do uso da violência estatal, motivo pelo qual somente a combaterá como farsa. Bolsonaro, que promete, como tantos outros antes dele, exterminar a criminalidade em pouco tempo, é um exemplo dessa farsa repetida à exaustão, mas sempre bem-sucedida no intuito de iludir o eleitor. Como usualmente ocorre, será um tiro no pé. Por meio da representação simbólica da violência, que supera em terror a violência real, a sociedade convalida a adoção de políticas estatais violadoras de suas próprias liberdades individuais. No fim das contas, são úteis apenas para incutir em pobres e miseráveis o temor de vindicar coletivamente as ações políticas de que necessitam ou excluí-los do convívio social através do Direito Penal.
Não se trata de apologia dos criminosos, mas de destacar o papel secundário, ineficaz na verdade, da atividade penal-prisional do Estado na solução do problema. O que pacificará as favelas será simplesmente a extinção do conceito de favela promovida por políticas públicas eficazes no sentido da oferta de educação de qualidade, de emprego e de renda, assim propiciando a redução das desigualdades existentes na aquisição dos capitais econômico e cultural. Quando as favelas forem bairros, ninguém temerá adentrá-las.
Melhorar as condições sociais é possível, mas não interessa ao poder estabelecido. O ganho do centésimo superior é maior quando se sonega a dignidade do pobre. Ademais, qual seria o propósito disso para quem não vive a realidade da maioria? Não há violência urbana para a elite econômica; não há problema de educação, de saúde, de segurança pública, enfim, não há problema algum para quem vive em mansões ou condomínios exclusivos, cruza os mares nos próprios iates, os ares em suas aeronaves e a terra em veículos blindados cercados por seguranças armados. Essa gente não lida com o povão e, portanto, não os teme. Luís XVI e Maria Antonieta também viviam assim, nessa bolha de segurança, até que perceberam, tarde demais, que milhões sempre podem ser levantar contra dezenas. Foram guilhotinados.
Uma outra importante característica de nossos tempos, no seio da qual todos somos vítimas e algozes, porque atinge cidadãos, eleitores e talvez mais pesadamente os agentes políticos, é a inserção coletiva no processo de consumismo leviano e exibicionismo fútil, fios condutores do vazio de pensamento que caracteriza a pós-modernidade. Vazio de pensamento vem a ser a redução ou perda da capacidade de reflexão provocada, em grande medida, pela avalanche de informações recebidas de toda parte pelos indivíduos, tornando impossível o devido processamento mental e a consequente avaliação crítica dos conteúdos. O fenômeno atinge a todos os que não resistem à avalanche informacional, inclusive graduados e pós-graduados com formação unidisciplinar.
Ante a força avassaladora da mente esvaziada de reflexão, as redes sociais transformam-se em fábricas de zumbis pautados pelo senso comum construído em bases falsas como uma nota de três reais. No que toca a tais zumbis, é inócua a apresentação por escrito de longos argumentos; eles foram “twiterizados” e não suportam nada além de 140 caracteres. A disseminação virótica das notícias falsas (fake news), peculiaridade da eleição brasileira de 2018, se inscreve à perfeição nesse mesmo registro, além de criar uma outra dificuldade, a ausência de distinção entre notícias verdadeiras e falsas, todas se misturando no mesmo caldo geral de incredulidade.
O resultado disso: um discurso claramente nocivo como o de Bolsonaro se impôs, elegendo com votação esmagadora dois filhos dele, uma incrível bancada parlamentar composta por pessoas que naturalizam o fascismo e está prestes a eleger ele próprio presidente da república. Seremos objeto de constrangimento e vergonha perante os cidadãos de outros países e, também, às futuras gerações de brasileiros, incapazes de compreender como pudemos eleger uma pessoa do nível de Bolsonaro para o mais alto cargo político.
Quem diria que, após quase três séculos de profunda reflexão humana, período no qual nossas maiores mazelas foram investigadas e desveladas ao mundo, com indicação do caminho a trilhar, regrediríamos culturalmente tanto? Como poderíamos imaginar que, após uma fase racional e iluminista, de ilustração, de avanço da ciência e da tecnologia, involuiríamos do fantástico homo sapiens sapiens para o desprezível homo consumens ignarus que não se constrange em escolher políticas contrárias à manutenção da dignidade do ser humano?
O que assusta, nisso, é que a instituição generalizada da banalidade sempre prenuncia o império do mal. A História se faz presente para nos ensinar, mas estamos recusando suas lições.
Houve épocas em que a grande produção humana era o conhecimento direcionado ao engrandecimento e empoderamento do ser humano, como indivíduo e como membro da coletividade. Gregos clássicos, renascentistas e iluministas foram celebrizados por pensar o ser humano em sua dimensão existencial material e espiritual, sem dar grande relevo a interesses cartoriais.
Qual a grande produção cultural da pós-modernidade, aquilo pelo qual as gerações futuras (se houver) nos reconhecerão? Não, não seremos reconhecidos pela filosofia, como foram os clássicos gregos. Tampouco pela oratória política, como os romanos. Nem pela colocação do ser humano no centro do interesse do conhecimento, como os iluministas.
Seremos conhecidos essencialmente por nossa produção de lixo, em todos os sentidos. A era do consumismo fluido e descartável representa também a apoteose dos lixões, o surgimento da ilha de plástico no Oceano Pacífico, a destruição de ecossistemas inteiros, a extinção em números inacreditáveis de espécies. Não será somente o lixo decorrente dos resíduos humanos que nos denotará, mas também os lixos cultural e político.
A qualidade da produção cultural do pensamento dominante (mainstream) se descortina na safra dos grandes filmes de Hollywood, plenos de ação, lugares-comuns e odes ao consumo, mas paupérrimos no que toca à crítica social. A sensação do momento são os super-heróis e suas batalhas impossíveis de serem vencidas por simples mortais. A moral implícita é de que devemos nos conscientizar de nossas tantas impotências e orar pela ação magnânima dos poderosos. Nessa cena hollywoodiana, muitos inevitavelmente morrerão, mas é o preço a pagar pela “liberdade” de ser um faminto.
Na política, poucas vezes estivemos tão mal representados. Nossos representantes agora são milionários com realidades e necessidades completamente distintas das nossas, ou são palhaços, ou celebridades, ou filhos de dinastias políticas, ou brutamontes com discursos de ódio e violência. Ficou para trás o tempo dos grandes discursos, da oratória, dos políticos que representavam uma ideia, um objetivo, e eram eleitos por isso. Testemunha-se a carência de grandes figuras públicas, munidos de uma visão mais acurada sobre o real e, por isso mesmo, capazes de gestos de nobreza. Ainda existem, todavia transformadas em inimigas públicas pela máquina midiática de moer reputações, porque, como em todos os tempos, seu discurso contraria a ótica que interessa ao poder vigente.
O interesse financeiro atual é fundado na criação de necessidades ilusórias e consequente ausência de expressividade quanto às reais demandas coletivas. O protótipo do novo ser humano desejado pelo poder, o homo consumens ignarus, há de ser essencialmente um solitário desprovido de capacidade crítica. Preferencialmente, suas amizades devem se restringir à rede social e não se espraiarem em demasiado pelo plano do real. Excetuados eventos episódicos de alegria, em geral promovidos pelo uso compartilhado de álcool ou qualquer outro entorpecente, cada um deve se responsabilizar por empurrar a própria solidão social e cultural em direção ao horizonte da vida.
Esse é o mundo perfeito para a eleição de bolsonaros.
E eles estão sendo eleitos ao redor do planeta.

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