publicado
no portal de notícias GGN em 16/10/2018
O
que verdadeiramente está em jogo, não somente nessa eleição
brasileira, mas nas políticas internas dos países democráticos do
mundo, é a extensão da parcela de poder atribuída aos políticos
eleitos. Poucas vezes na História se pôde observar tão claramente
a ação agressiva do andar de cima para a mitigação do já pouco
poder político entregue ao andar de baixo. O que a expressão
“neoliberalismo” efetivamente significa, no registro de seus
efeitos políticos notáveis, é “o direito dos ricos de ficarem
cada vez mais ricos e não se sentirem culpados pelo genocídio dos
pobres”. Trump, nos Estados Unidos, representa esse ideal.
Bolsonaro, no Brasil, de forma ainda mais violenta, idem.
Experimentamos
um mundo no qual a política institucional serve cada vez menos aos
seus reais objetivos, a razão de ser de seu surgimento na sociedade
humana, os propósitos para os quais foi criada, que são: (a) a
escolha do modo de promover a repartição pacífica dos recursos
escassos; (b) o aumento da liberdade individual e (c) o
estabelecimento de segurança e dignidade para a vida humana.
À
exceção dos interesses coletivos de pouca expressão – regionais
e sem repercussão econômica e social de monta – os agentes
políticos se apresentam mais e mais enfraquecidos quanto à
capacidade de produzir a grande política: aquela que caminha na
direção das utopias.
O
ultraliberalismo econômico e sua filha dileta, a globalização do
capital, que os Trumps, Le Pens e Bolsonaros do mundo representam no
registro servil da capitania do mato, retiraram o poder da mãos dos
políticos profissionais locais, colocando-o na caneta
extraterritorial do CEO’s que falam em nome dos grandes financistas
internacionais. Esvaziados de poder efetivo, que atividades restaram
aos políticos institucionais? Aos concursados, basicamente manter o
cargo e exercer pressão corporativista pelo incremento dos
privilégios aristocráticos (como o auxílio-moradia dos
magistrados) e, aos eleitos, envidar esforços em prol da própria
reeleição e da eleição de seus parentes, para isso atuando na
condição de despachante dos interesses privados que os auxiliarão
nessa empreitada ou os enriquecerão. Demandas sociais estão fora
dessa equação e somente serão atendidas por efeito reflexo e
possivelmente sequer desejados.
A
política institucional aos poucos transforma-se em elemento
insignificante para a solução dos dilemas individuais paridos pelas
contradições sociais criadas coletivamente (somente um alucinado
compreenderia o desemprego a partir das ações dos desempregados ou
como opção individual). Ingressamos na era do cada um por si e
ninguém por todos (ou, talvez, tenhamos apenas retornado a essa
condição de selvageria), que consagra a ação individualista ao
extremo, inclusive em relação a questões supraindividuais, como a
saúde, a educação e a segurança pública.
O
senso comum aponta para a mitigação ou desnecessidade da atuação
estatal. A partir dessa nova angulação para o exame da relação
indivíduo x sociedade, verifica-se um firme caminhar em direção à
atomização das pessoas, que paulatinamente vão sentindo aumentar o
temor pela socialização. Antes, esse registro somente era observado
em sociedades submetidas aos totalitarismos. Aos poucos, torna-se o
novo normal.
Um
dos maiores responsáveis pelo isolamento autoinfligido é a
violência urbana, cuja explicação rasteira segue o modelo maldoso
da opção individual, segundo a qual o criminoso rompe as barreiras
da lei por que assim deseja. Ou seja, um dia a pessoa acorda e
decide: acho que vou roubar um banco. Por essa visão reducionista,
as políticas de Estado e de governo quanto à educação, emprego e
produção de renda não possuem vinculação alguma com a questão
da violência urbana. Não percebem que tal violência nada mais
representa do que uma espécie de guerra civil velada e inconsciente
até para os combatentes de um lado e de outro.
A
violência urbana e o terrorismo são, atualmente, as armas mais
úteis à manutenção do status quo. O poder real dela necessita
pois é sua fonte de normatização do uso da violência estatal,
motivo pelo qual somente a combaterá como farsa. Bolsonaro, que
promete, como tantos outros antes dele, exterminar a criminalidade em
pouco tempo, é um exemplo dessa farsa repetida à exaustão, mas
sempre bem-sucedida no intuito de iludir o eleitor. Como usualmente
ocorre, será um tiro no pé. Por meio da representação simbólica
da violência, que supera em terror a violência real, a sociedade
convalida a adoção de políticas estatais violadoras de suas
próprias liberdades individuais. No fim das contas, são úteis
apenas para incutir em pobres e miseráveis o temor de vindicar
coletivamente as ações políticas de que necessitam ou excluí-los
do convívio social através do Direito Penal.
Não
se trata de apologia dos criminosos, mas de destacar o papel
secundário, ineficaz na verdade, da atividade penal-prisional do
Estado na solução do problema. O que pacificará as favelas será
simplesmente a extinção do conceito de favela promovida por
políticas públicas eficazes no sentido da oferta de educação de
qualidade, de emprego e de renda, assim propiciando a redução das
desigualdades existentes na aquisição dos capitais econômico e
cultural. Quando as favelas forem bairros, ninguém temerá
adentrá-las.
Melhorar
as condições sociais é possível, mas não interessa ao poder
estabelecido. O ganho do centésimo superior é maior quando se
sonega a dignidade do pobre. Ademais, qual seria o propósito disso
para quem não vive a realidade da maioria? Não há violência
urbana para a elite econômica; não há problema de educação, de
saúde, de segurança pública, enfim, não há problema algum para
quem vive em mansões ou condomínios exclusivos, cruza os mares nos
próprios iates, os ares em suas aeronaves e a terra em veículos
blindados cercados por seguranças armados. Essa gente não lida com
o povão e, portanto, não os teme. Luís XVI e Maria Antonieta
também viviam assim, nessa bolha de segurança, até que perceberam,
tarde demais, que milhões sempre podem ser levantar contra dezenas.
Foram guilhotinados.
Uma
outra importante característica de nossos tempos, no seio da qual
todos somos vítimas e algozes, porque atinge cidadãos, eleitores e
talvez mais pesadamente os agentes políticos, é a inserção
coletiva no processo de consumismo leviano e exibicionismo fútil,
fios condutores do vazio de pensamento que caracteriza a
pós-modernidade. Vazio de pensamento vem a ser a redução ou perda
da capacidade de reflexão provocada, em grande medida, pela
avalanche de informações recebidas de toda parte pelos indivíduos,
tornando impossível o devido processamento mental e a consequente
avaliação crítica dos conteúdos. O fenômeno atinge a todos os
que não resistem à avalanche informacional, inclusive graduados e
pós-graduados com formação unidisciplinar.
Ante
a força avassaladora da mente esvaziada de reflexão, as redes
sociais transformam-se em fábricas de zumbis pautados pelo senso
comum construído em bases falsas como uma nota de três reais. No
que toca a tais zumbis, é inócua a apresentação por escrito de
longos argumentos; eles foram “twiterizados” e não suportam nada
além de 140 caracteres. A disseminação virótica das notícias
falsas (fake news), peculiaridade da eleição brasileira de 2018, se
inscreve à perfeição nesse mesmo registro, além de criar uma
outra dificuldade, a ausência de distinção entre notícias
verdadeiras e falsas, todas se misturando no mesmo caldo geral de
incredulidade.
O
resultado disso: um discurso claramente nocivo como o de Bolsonaro se
impôs, elegendo com votação esmagadora dois filhos dele, uma
incrível bancada parlamentar composta por pessoas que naturalizam o
fascismo e está prestes a eleger ele próprio presidente da
república. Seremos objeto de constrangimento e vergonha perante os
cidadãos de outros países e, também, às futuras gerações de
brasileiros, incapazes de compreender como pudemos eleger uma pessoa
do nível de Bolsonaro para o mais alto cargo político.
Quem
diria que, após quase três séculos de profunda reflexão humana,
período no qual nossas maiores mazelas foram investigadas e
desveladas ao mundo, com indicação do caminho a trilhar,
regrediríamos culturalmente tanto? Como poderíamos imaginar que,
após uma fase racional e iluminista, de ilustração, de avanço da
ciência e da tecnologia, involuiríamos do fantástico homo sapiens
sapiens para o desprezível homo consumens ignarus que não se
constrange em escolher políticas contrárias à manutenção da
dignidade do ser humano?
O
que assusta, nisso, é que a instituição generalizada da banalidade
sempre prenuncia o império do mal. A História se faz presente para
nos ensinar, mas estamos recusando suas lições.
Houve
épocas em que a grande produção humana era o conhecimento
direcionado ao engrandecimento e empoderamento do ser humano, como
indivíduo e como membro da coletividade. Gregos clássicos,
renascentistas e iluministas foram celebrizados por pensar o ser
humano em sua dimensão existencial material e espiritual, sem dar
grande relevo a interesses cartoriais.
Qual
a grande produção cultural da pós-modernidade, aquilo pelo qual as
gerações futuras (se houver) nos reconhecerão? Não, não seremos
reconhecidos pela filosofia, como foram os clássicos gregos.
Tampouco pela oratória política, como os romanos. Nem pela
colocação do ser humano no centro do interesse do conhecimento,
como os iluministas.
Seremos
conhecidos essencialmente por nossa produção de lixo, em todos os
sentidos. A era do consumismo fluido e descartável representa também
a apoteose dos lixões, o surgimento da ilha de plástico no Oceano
Pacífico, a destruição de ecossistemas inteiros, a extinção em
números inacreditáveis de espécies. Não será somente o lixo
decorrente dos resíduos humanos que nos denotará, mas também os
lixos cultural e político.
A
qualidade da produção cultural do pensamento dominante (mainstream)
se descortina na safra dos grandes filmes de Hollywood, plenos de
ação, lugares-comuns e odes ao consumo, mas paupérrimos no que
toca à crítica social. A sensação do momento são os super-heróis
e suas batalhas impossíveis de serem vencidas por simples mortais. A
moral implícita é de que devemos nos conscientizar de nossas tantas
impotências e orar pela ação magnânima dos poderosos. Nessa cena
hollywoodiana, muitos inevitavelmente morrerão, mas é o preço a
pagar pela “liberdade” de ser um faminto.
Na
política, poucas vezes estivemos tão mal representados. Nossos
representantes agora são milionários com realidades e necessidades
completamente distintas das nossas, ou são palhaços, ou
celebridades, ou filhos de dinastias políticas, ou brutamontes com
discursos de ódio e violência. Ficou para trás o tempo dos grandes
discursos, da oratória, dos políticos que representavam uma ideia,
um objetivo, e eram eleitos por isso. Testemunha-se a carência de
grandes figuras públicas, munidos de uma visão mais acurada sobre o
real e, por isso mesmo, capazes de gestos de nobreza. Ainda existem,
todavia transformadas em inimigas públicas pela máquina midiática
de moer reputações, porque, como em todos os tempos, seu discurso
contraria a ótica que interessa ao poder vigente.
O
interesse financeiro atual é fundado na criação de necessidades
ilusórias e consequente ausência de expressividade quanto às reais
demandas coletivas. O protótipo do novo ser humano desejado pelo
poder, o homo consumens ignarus, há de ser essencialmente um
solitário desprovido de capacidade crítica. Preferencialmente, suas
amizades devem se restringir à rede social e não se espraiarem em
demasiado pelo plano do real. Excetuados eventos episódicos de
alegria, em geral promovidos pelo uso compartilhado de álcool ou
qualquer outro entorpecente, cada um deve se responsabilizar por
empurrar a própria solidão social e cultural em direção ao
horizonte da vida.
Esse
é o mundo perfeito para a eleição de bolsonaros.
E
eles estão sendo eleitos ao redor do planeta.
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